O crime socioambiental em Brumadinho (MG) foi consequência de uma tentativa de manter margens elevadas de lucro com a exploração do minério de ferro -- um critério básico do capitalismo, seguido pela Vale, ex-estatal privatizada em 1997. De acordo com o professor e geógrafo Luiz Jardim, o preço internacional da tonelada do minério de ferro em alta foi decisivo para a expansão das instalações de barragens, principalmente, em Minas Gerais.
"O tipo de comportamento corporativo é que leva essas barragens a romperem", disse Jardim, pesquisador da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), especialista no setor de mineração.
O megaciclo pode ser associado ao período entre 2003 e 2013, quando as importações globais de minérios saltaram de US$ 38 bilhões para US$ 277 bilhões (um aumento de 630%); e, em particular, quando a tonelada do minério de ferro passou de US$ 32 (em janeiro de 2003) ao pico de US$196 (em abril de 2008). A partir de 2011, iniciou-se uma tendência de queda, chegando a US$ 53 (em outubro de 2015).
No período de queda do preço, as empresas aumentaram a produção e cortaram gastos com segurança e monitoramento, criando um ambiente de risco ambiental que explicam crimes como o de Mariana, em novembro de 2015, e o de Brumadinho, em novembro de 2019
Confira os principais trechos da entrevista:
Brasil de Fato: Como foi o megaciclo econômico da exploração do minério de ferro no mundo, e como o Brasil se insere neste cenário?
Luiz Jardim: Nós vivemos a partir de 2003 um crescimento do preço e da demanda por minério no mundo. No Brasil, no caso do minério de ferro (mas também de outros minérios), houve uma aceleração de expansão de empreendimentos pelo país. Foi um fenômeno que expandiu novas áreas, onde tinha menos minérios e em minas mais gastas, porque o preço estava alto. Cogitou-se inclusive nessa época, minerar rejeitos, coisa que era inviável antes quando se tinha o preço US$ 40 a tonelada.
E o que aconteceu?
Neste período, que a gente chama de boom das commodities, houve uma aceleração desses empreendimentos e as corporações visaram uma instalação cada vez mais rápida por causa da necessidade de maximizar os lucros neste período de expansão [do preço]. Eles veem que o preço está subindo e aceleram os empreendimentos, flexibilizam licenciamentos junto com os governos, e instalam muitas vezes sem o estudo devido e sem o cuidado devido da obra. Obras rápidas, executadas de maneira rápida. No período de pós-boom, que foi a partir de 2011, a gente vê uma queda de preço que afeta diretamente a capacidade de lucro das empresas.
Qual a consequência imediata da queda do preço?
A queda do preço dos minérios [no mercado internacional] faz com que a receita e o lucro baixem, obrigando as corporações a um movimento de tentativa de manutenção da sua margem de lucro.
Como é que se mantém essa margem de lucro?
Em primeiro momento, ela acelera a sua produção. É contraditória, apesar da demanda baixar, as corporações aceleram a produção para compensar no volume vendido. Ou seja, passa-se a explorar mais, numa velocidade maior, pressionando ainda mais as estruturas existentes. Sejam elas as barragens, os minerodutos e até mesmo os funcionários. Por outro lado, as empresas começam a cortar custos. Demite-se profissionais mais caros, com mais tempo de casa, com mais experiência, por exemplo. Passam a trabalhar com menos homens e a cortar custos de monitoramento ambiental, de cuidado ambiental.
Quais outros exemplos de afrouxamento da segurança no setor de minério neste período pós-boom?
Diminuição de salários ou aumento da carga horária de trabalho. Esse panorama de cortes e aumento de produção permite uma tendência de maior número de rompimentos de barragens e incidentes em geral. No período de boom tem essa aceleração que faz construir de maneira atabalhoada novas áreas, novas minas, novas barragens e novas infraestruturas. Essas infraestruturas passam a não ser tão bem monitoradas e passam a operar no limite da sua capacidade. Então, com a queda do preço, a gente tende a ter um aumento dos incidentes nas áreas de mineração.
Sobre a Vale, o que aconteceu após a privatização?
A Vale é hoje muito maior do que era quando era estatal. Ela tem uma possibilidade de violência muito maior. A sua capacidade de destruição aumentou com o seu tamanho. A capacidade de ter mais crimes ambientais aumentou.
A lei brasileira de segurança em barragens é de 2010. Ela recebe muitas críticas por ser branda. Qual a sua análise?
É uma lei muito recente. Acho que o Brasil não está preocupado com a segurança no geral, a barragem é só uma delas. A engenharia parte de um pressuposto que essas obras não estouram, elas não rompem. Um pressuposto equivocado na minha opinião. É tão hipotético, do ponto de vista da engenharia, que se coloca uma refeitório embaixo da barragem. Em Brumadinho, pra mim, isso foi muito sintomático. As pessoas ali não tiveram tempo de sair. É uma certeza da engenharia que, pra mim, é quase uma crença. É preocupante pra mim essa crença na engenharia e a não preocupação com o monitoramento e a segurança.
A barragem é a única alternativa para os rejeitos da mineração?
É a mais barata, mas não é a única, mas você sempre vai ter o problema de onde colocar o rejeito. Ele não desaparece com nenhuma técnica. Ele é um problema de origem na mineração. A gente pode criar outros mecanismos [para o rejeitos] na deposição, mas vão haver outros problemas que não é o de romper, não vai ter um tsunami, porque ela não vai ser líquida, por exemplo, uma deposição seca, em blocos. Você espreme o rejeito tira a água e faz o bloco que pode ser colocado numa cava ou num buraco. Existem diversos estudos para se usar os rejeitos em outras coisas, mas não se sabe muito o efeito disso nas vidas humanas. Existem sim outros modelos, mas não são ausentes de impactos.
No crime ambiental de Brumadinho, de quem é a responsabilidade?
O maior responsável é a corporação. É a Vale, no caso. Como em Mariana foi a Vale, a Samarco e a BHP, são as três que operam. Os acionistas da Vale também são os responsáveis, porque o tipo de comportamento corporativo é que leva essas barragens a romperem. Tem responsabilidade o órgão ambiental porque foi frágil na fiscalização e num diagnóstico mais amplo. Também tem culpa quem faz o diagnóstico de estabilidade da barragem. Ela não está estável porque rompeu. Temos barragens que não estão estáveis e temos barragens que estão estáveis e rompem. Então, qual é a barragem que está estável?
Quem está pagando a conta do desastre e quem deveria pagar?
O que está acontecendo agora, e aconteceu em Mariana também, é que a sociedade brasileira, desde o início do desastre, começa a arcar com os custos. Todo o gasto tem sido público, o custo dos bombeiros é público, o custo da Defesa Civil é público. A gente tem uma sobrecarga do orçamento público neste momento em que nada indica que vai ser ressarcido. Além disso, a sociedade brasileira solidária vem fazendo doações, nenhum problema com isso, mas há de se entender que quem tem o dever de atender as vítimas é a Vale.
Edição: Mauro Ramos