A expressão popular “no apagar das luzes” é costumeiramente empregada na política brasileira para se referir a atos inesperadamente adotados no final de mandatos. Por conseguinte, no término das gestões públicas dos diferentes órgãos federativos o cidadão comum preciso ficar de sobreaviso pois nessa época coisas estranhas acontecem nas entranhas do poder, e, em muitos casos, as suas consequências não são facilmente identificadas.
Infelizmente no final do governo Michel Temer essa sina se repetiu. Elevação no valor da conta de luz, aumento de 16% para o Poder Judiciário, Refinanciamento de Dívidas Fiscais (Refis), etc. Na Educação, no dia 28 de dezembro de 2018, circulou um comunicado da Presidência da República anunciando o desmembramento dos Institutos Federais da Bahia, Baiano e de São Paulo e da Universidade Federal do Amazonas.
Nos primeiros dias deste ano divulgou-se o Projeto de Lei n. 11.279 e descobrimos que a proposta lançada aos 45 minutos do segundo tempo pelos tecnocratas do governo Temer é mais terrível do que o anunciado. O PL em questão altera a lei de criação dos Institutos Federais (11.892/2008); a lei que cria cargos efetivos, cargos em comissão e funções gratificadas no âmbito do Ministério da Educação destinados as instituições federais de educação (11.740/2008); a lei de criação da empresa pública Amazônia Azul Tecnologias de Defesa S.A.; e cria novos Institutos Federais (IF’s), a Universidade Federal do Médio e Baixo Amazonas e a Universidade Federal do Médio e Alto Solimões.
Assim, o Projeto de Lei assinado por Rossieli Soares, até então Ministra da Educação, propõe a criação de duas novas universidades para o Estado do Amazonas – o qual atuou como Secretário de Educação; e a constituição de 3 novos Institutos Federais a partir do desmembramento dos IF’s Baiano, da Bahia e de São Paulo. Dessa maneira, os baianos que já possuem 2 reitores do IF passariam a ter 3 Institutos Federais, com a nova reitoria em Ilhéus. No IFSP, o maior do Brasil com 36 campi, decorreria algo semelhante: desmembramento da escola e a constituição de mais duas reitorias, assim, teríamos uma sede em São Paulo (Instituto Federal de São Paulo), uma sede em Campinas (Instituto Federal do Centro Paulista) e uma sede em São José do Rio Preto (Instituto Federal do Oeste Paulista) - estranhamente esta última cidade não possui um campus em funcionamento, a proximidade entre o atual prefeito e o ex-presidente Temer seria o motivador principal.
O desmembramento das instituições federais de educação provoca espanto e desconfiança pelo fato de não ter ocorrido discussão ampla e participativa nos fóruns adequados dessas organizações escolares: conselhos superior e universitário. No caso dos Institutos Federais, nem mesmo o CONIF (O Conselho Nacional das Instituições da Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica) tinha conhecimento detalhado da proposta. O documento em sim até registra que a decisão será regulamenta por órgãos competentes, mas não destrincha o processo, gerando dúvidas se isso ocorrerá realmente. “§ 7º Os desmembramentos do Instituto Federal de São Paulo e do Instituto Federal da Bahia e do Instituto Federal Baiano para as criações a que se referem os incisos XXXIX, XL e XLI do caput serão regulamentados em ato do Poder Executivo federal.” Transmite, dessa forma, a sensação que o interesse nobre de criação de novas instituições educacionais de qualidade tem, na verdade, motivação político (ocupar cargos). Além disso, o PL:
1) propõe a alteração na lei que estabelece as normas para a ocupação dos cargos de Reitor(a) e Diretor(a) nos Institutos Federais. Na prática, torna o processo mais rígido ao elevar as exigências para a disputa desses cargos: “ter o mínimo de quatro anos de experiência comprovada em gestão na Educação Profissional e Tecnológica” para o cargo de reitor(a); e “ter concluído, com aproveitamento, curso de formação para o exercício de cargo ou função de gestão em instituições da administração pública” para Diretor(a).
2) restringe nos IF’s a oferta de cursos de pós-graduação stricto sensu mestrado e doutorado na categoria profissional, impossibilitando que essas instituições ofereçam pós-graduação acadêmica e, consequentemente, prejudicando o desenvolvimento de pesquisa de base e inovação de ponta: “cursos de pós-graduação stricto sensu de mestrado e doutorado profissional, alinhados com a oferta verticalizada, que contribuam para promover o estabelecimento de bases sólidas em educação, ciência e tecnologia, com vistas no processo de geração e inovação tecnológicas.”
3) desobriga os IF’s a disponibilizar vagas para os cursos de Licenciatura. Atualmente a lei prevê que 20% das vagas sejam ofertas para os cursos de Licenciatura, bem como programas especiais de formação pedagógica, com vistas à formação de professores para a educação básica, sobretudo nas áreas de ciências e matemática, disciplinas carentes de docentes.
Desempenho coreano no PISA
O Projeto de Lei n. 11.279 também modifica medida que determina que 50% das vagas dos Institutos Federais sejam destinadas aos cursos técnicos de ensino médio, prioritariamente na forma integrada. Atualmente a lei de criação dos IF’s (11.892/2008) estabelece no seu artigo 7º, inciso I, que um dos seus objetivos é “ministrar educação profissional técnica de nível médio, prioritariamente na forma de cursos integrados, para os concluintes do ensino fundamental e para o público da educação de jovens e adultos” (BRASIL, 2008). No entanto, o PL propõe algo genérico: “ministrar educação profissional técnica de nível médio, para os concluintes do ensino fundamental e para o público da educação de jovens e adultos”.
O Ensino Médio Integrado nos Institutos Federais tem contribuído para modificar uma pequena parcela da combalida escola média brasileira. Na rede federal, os educandos têm a possibilidade de cursar, de maneira integrada e equilibrada, as formações geral e profissional. Essa recente experiência (modelo se consolida a partir de 2008) apresenta números expressivos nos diferentes instrumentos de avaliação do ensino, levando a mídia a noticiar que os “Institutos Federais apresentam desempenho coreano no PISA”.
Portanto, constituídos em 2008 a partir das Escolas Técnicas Federais, Escolas Agrotécnicas Federais e os Centros de Educação Federal e Tecnológica (CEFET’s), os Institutos Federais transformaram-se, rapidamente, em referência educacional em todo o país, ocupando rotineiros espaços nos noticiários com matérias ressaltando pesquisas, invenções e projetos pedagógicos inovadores desenvolvidos nos seus campi; prêmios internacionais; e o desempenho dos seus estudantes nos diferentes testes de avaliação. Sobre esse último ponto, ganhou destaque o resultado no PISA (Programa Internacional de Avaliação de Estudantes), prova organizada pela OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico) e que revelou que os estudantes dos cursos de Ensino Médio Integrado dos IF’s apresentam índices acima da média nacional em Ciências, Leitura e Matemática, aproximando-se do desempenho daquelas nações que são consideradas as grandes potências educacionais.
Atualmente os Institutos Federais estão organizados em 38 reitorias, possuem mais de 640 campi espalhados por todo o país e registram mais de 1 milhão de estudantes, com uma demanda crescente. Localizadas em diferentes cidades do Brasil, principalmente naquelas do interior, as unidades apresentam uma estrutura de ensino verticalizado e ofertam cursos técnicos de nível médio, superiores (com destaque para as Licenciaturas e Engenharias) e pós-graduação. Por conseguinte, os educandos nos diferentes níveis de ensino trabalham com docentes qualificados e encontram na Instituição oportunidades para desenvolver pesquisa e extensão.
Mas essa iniciativa corre o risco de ser interrompida pois além de não mencionar o Ensino Médio Integrado, o documento determina que os IF’s reservem 70% das suas vagas para cursos técnicos de nível médio. “No desenvolvimento da sua ação acadêmica, as unidades dos Institutos Federais, em cada exercício, deverão garantir o mínimo de setenta por cento de suas matrículas-equivalentes em cursos de educação profissional técnica de nível médio.”
Concatenado à Reforma do Ensino Médio (Lei n. 13.415/2017), esse PL poderá, no limite, forçar os IF’s a ofertar cursos técnicos de nível médio de tipo concomitante, e as suas vagas serão preenchidas pelos estudantes que se matricularem em uma escola de ensino médio regular. Em outras palavras, o governo federal resolveria dois problemas da educação brasileira com esse PL: ofertar o 5º itinerário da Reforma do Ensino Médio e diminuir a taxa de evasão dos cursos técnicos de nível médio de tipo concomitante país afora. Contudo, a experiência bem sucedida dos cursos de Ensino Médio Integrado desenvolvida nos Institutos Federais seria interrompida, pois mais uma vez o país assistiria a sua triste sina: jogar fora o bebê junto com a água do banho.
IFSP e a divisão
O Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo (IFSP) possui mais de 45 mil estudantes e hoje é a maior instituição da Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica (RFEPCT) do Brasil. Fundado em 1910 como Escola de Aprendizes Artífices, o IFSP recebeu diferentes denominações (Liceu Industrial, Escola Industrial, Escola Técnica Federal e CEFET) e tornou-se, ao longo dos tempos, referência nos ensinos técnico e superior – seu curso de Arquitetura e Urbanismo é, ano após ano, o mais concorrido do SiSU (Sistema Unificação de Seleção).
Atualmente o IFSP é constituído por 36 campi, mais de 2.900 docentes (principalmente mestres e doutores) e quase de 2.000 técnico-administrativos. Assim, está entre as maiores instituições de ensino técnico de nível médio e superior público do país.
Para a surpresa dessa grande comunidade, no dia 23 de novembro, durante uma rotineira cerimônia de entrega e assinatura da ordem de serviço do prédio que abrigará o futuro campus São José do Rio Preto, o então Ministro da Educação, Rossieli Soares, fez o anúncio de que o Estado de São Paulo receberá duas novas reitorias, ou seja, dois novos Institutos serão constituídos no interior paulista. “Nós estamos trabalhando e pretendemos apresentar, ainda nesse ano, a criação de mais dois novos Institutos Federais no Estado de São Paulo”, disse o ministro (confira no vídeo). Hoje, as 36 unidades estão situadas em diferentes municípios (multicampi) e são administradas por uma única reitoria, localizada na cidade de São Paulo.
O anúncio provocou espanto geral pois o país encontra-se em uma crise econômica, com mais de 13 milhões de desempregados, e o atual governo do presidente eleito fala em contingenciamento e sanar as contas públicas. O pronunciamento de Soares também chamou a atenção porque esse tema sobre a divisão do IFSP não é novidade e em março do ano passado circulou pelas redes sociais estudo do Ministério da Educação (MEC) que apontava para o reordenamento e criação de reitorias pelo país. Na ocasião, após manifestação contrária de alguns gestores, sindicatos dos servidores, organizações estudantis e o CONIF (Conselho Nacional das Instituições da Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica), a Secretaria de Educação Profissional e Tecnológica (SETEC-MEC) divulgou nota (Ofício 322/2018) assinalando que “eventuais alterações no arranjo estrutural das instituições que compõem a Rede Federal somente deverão ser realizadas após ampla discussão e profundo debate entre SETEC, instituições e comunidade em que estão inseridas.” Contudo, não é isso que ocorre.
Ainda no primeiro semestre de 2018 os constrangimentos foram de tal monta que a reitoria do IFSP realizou, às pressas, uma consulta sobre a divisão. Os participantes (servidores) demonstraram ser a favor de uma divisão desde que esta seja fruto de ampla discussão e conte com a participação ativa da comunidade interna.
Como Soares tornou-se Secretário de Educação do Estado de São Paulo (gestão João Doria), o PL aparenta desejar agradar o novo “chefe” e o eleitor paulista, pois o documento assinado não apresenta dados, estudo de impacto, metodologia e fontes de recursos para a divisão do IFSP. Ou seja, de maneira inconsequente e na véspera do período de recesso e férias de estudantes e docentes, o então Ministro da Educação criou incerteza jurídica e instabilidade pedagógica para milhares de pessoas ligadas diretamente aos Institutos Federais.
Diante do exposto, cabe à comunidade das instituições federais de ensino em questão e aos movimentos sociais ligados à Educação rechaçarem a forma como esse Projeto de Lei foi constituído e proposto, isto é, exigir a participação ativa e republicana dos envolvidos diretamente. Para isso, a conversa e, no limite, pressão aos novos e antigos congressistas para ampliar o debate e que este passe pelas instituições de ensino envolvidas seria um salutar caminho.
* Rogério de Souza é professor do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo (IFSP)
Edição: Brasil de Fato