Dizem que em Maceió viveu um sujeito famoso por aplicar pequenos golpes. Na época a cidade era miúda, e quando sua fama correu pelas ruas do Comércio, ele teve que encontrar outras formas de artimanha para sobreviver. Uma delas foi a criação do espetáculo do absurdo, até hoje presente nas retinas de alguns idosos – que testemunharam com os olhos de criança. A técnica consistia em assombrar os passantes com cenas insólitas. Uma das apresentações mais lembradas envolvia um rato e uma cobra. Ele anunciava o espetáculo mostrando a serpente faminta no interior da gaiola, à medida que aglomerado de curiosos se formava, retirava o ratinho vivo do bolso do paletó e, lentamente, o colocava na boca da cobra. O roedor era segurado pelo rabo, enquanto a víbora deslocava a mandíbula e o engolia devagarinho. Grande parte da plateia, saciada por assistir o horror da catita, recompensava atirando moedas e notas de dois cruzados. A segunda artimanha consistia em aplicar pequenos golpes nos turistas e em jovens marinheiros que desembarcavam no porto. Dentre os seus preferidos, estava o do filhote de condor. Mostrava a foto do condor e dizia que estava vendendo um pássaro raro: a maior ave das Américas. Os turistas e os marinheiros desavisados imaginavam que seria um ótimo negócio, mas acabavam levando para seus países um legítimo filhote de urubu.
Se o perito de golpes engenhosos ainda estivesse vivo, olharia para o presente com espanto. Não conseguiria viver em um tempo no qual a astúcia é simplesmente desnecessária. O golpe do condor não precisaria de turistas e marinheiros estrangeiros para vingar, poderia ser feito em qualquer lugar, inclusive pelo Facebook e Whatsapp. O filhote de urubu se apresentaria como filhote de urubu, tal qual é, sem disfarce algum. Várias pessoas o levariam para casa insistindo que o filhote era diferente do que era, do que dizia ser. A senhora, que vivia da pensão da aposentadoria do ex-marido, postaria que o urubu na verdade não era um carniceiro, pois parecia importado e limpo. O servidor público concursado no Ministério do Trabalho alimentaria o bicho porque em seu âmago se tratava de uma ave de estirpe única que fingia viver como um urubu. Vários levariam para a sala de casa um bicho que tinha bico, pena, cheiro e asas de urubu, e mesmo sabendo disso, acreditariam que no fundo o animal era outra coisa: seria o condor da liberdade e da salvação.
A ave de rapina acabaria sendo muito bem alimentada, cresceria e ganharia poderes para fazer o que sempre disse que faria, para ser o que sempre foi: comeria a carne crua da geladeira, defecaria por sobre as sobras da carteira de trabalho, bicaria a aposentadoria, ciscaria em roupas rosa ou azul e rasgaria páginas de livros, além das carniças rugitadas no passeio público, haveria ainda as carniças bem escondidas no porão. Em suas aparições físicas ou pelo Twitter, seus seguidores gritariam: “Condor! Condor! Condor!”
Tempos depois, muitos se arrependeriam, outros, mesmo com os olhos bicados e com o mal-estar do fedor instaurado, continuariam dizendo que o urubu seria um condor mal interpretado. O urubu continuaria bicando e revirando o lixo sem remorso, pois ele sempre soube o que era. Ele continuaria bicando até que completasse o seu serviço, a sua missão, ou até que dessem um basta e o tirassem da sala. Nesse momento saberiam finalmente que ele era um simples urubu, e que por detrás dele havia abutres de patentes mais altas.
*Lúcio Verçoza é professor do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal de Alagoas e autor do livro “Os homens-cangurus dos canaviais alagoanos: um estudo sobre trabalho e saúde” (Edufal/Fapesp).
Edição: Pedro Ribeiro Nogueira