O esforço para embelezar a investida de Donald Trump, de cinco dezenas de governos e também de Juan Guaidó para derrubar o governo de Nicolás Maduro se explica por uma questão higiênica.
Após um mês de um baile de máscaras, protestos cívicos e discursos de tom altruísta, aproxima-se o momento em que a crise deve mudar de patamar.
O mundo irá acompanhar em ambiente de suspense, ao vivo e a cores, os acontecimentos de 23 de fevereiro, quando um conjunto de caravanas de inimigos de Maduro pretende entrar no país, num gesto de desafio político encoberto pela fantasia da filantropia internacional.
O objetivo político da operação não é difícil de compreender.
Após mobilizar aliados internos, a oposição ao chavismo pretende produzir uma provocação a Maduro capaz de justificar uma intervenção militar de fora para dentro, que a Casa Branca de Trump estimula desde sempre, sem receber até agora o apoio necessário.
Mesmo nos Estados Unidos, o apoio está longe de formar uma maioria ampla, como se verifica no Congresso, onde os democratas fizeram a maioria nas eleições de 2018. Chamado para uma audiência, um veterano das intervenções norte-americanas na América Central, Elliot Abrams, foi recebido por manifestantes que portavam camisetas com a frase "Mãos Fora da Venezuela", que já serviu de título a um editorial do New York Times, mais respeitado jornal do mundo. "Eu quero deixar claro a todos: uma intervenção militar norte-americana na Venezuela não é uma opção", disse nessa quinta-feira (14) o deputado Elliot Engel, líder democrata no Comitê de Relações Exteriores.
Não vamos nos enganar sobre o espetáculo em curso. Trump continua dizendo que, além do plano A, "tem o plano B, C e D". Um bom sinal de seus movimentos foi denunciado pelo governo de Cuba, apontando para vôos de aviões militares que deixaram os Estados Unidos para pousar em ilhas do Caribe -- ponto ideal para um desembarque rápido na Venezuela.
Depois de organizar, com precisão científica, uma sabotagem econômica num país de 32 milhões de habitantes e as maiores reservas de petróleo do planeta, onde hoje falta comida, faltam remédios e não há moeda, promove-se uma operação final disfarçada em altruísmo e boas intenções.
Embarcando na aventura venezuelana organizada por Washington, governos comprovadamente incapazes de garantir uma vida decente aos pobres e excluídos pretendem ser chamados a agir como polícia do mundo e da democracia.
Nota-se o compromisso democrático do principal aliado sul-americano da operação, Jair Bolsonaro, pelos elogios permanentes do guru econômico Paulo Guedes a Augusto Pinochet, o carrasco de Santiago, referência de duas décadas de ditadura. Não é preciso dizer mais nada, vamos combinar.
Se fosse para levar a sério a intenção declarada de amenizar o sofrimento da população local, não seria preciso fazer nenhuma caravana externa. Bastaria determinar, civilizadamente, o fim das sanções e bloqueios financeiros que impedem o país de receber o devido pagamento por suas exportações bilionárias, mais do que suficientes para pagar todas as contas -- com sobra.
Em vez disso, a opção é outra. Produzir uma paisagem de cemitério, ideal para a dominação externa e o saque de riquezas, numa tragédia sem fim que abre um caminho que lembra os meses terríveis de sufoco de 2003 que antecederam a invasão do Iraque de Saddam Hussein e prepararam sua queda, quando o país-alvo da Casa Branca de George W Bush já não conseguia importar comida.
Com auxílio do mesmo assessor de segurança John Bolton, que hoje se move nos bastidores latino-americanos, no início deste século XXI as plateias endinheiradas do chamado Primeiro Mundo foram levadas a acreditar no falso pesadelo das armas de destruição em massa escondidas em Bagdá, quando a verdadeira riqueza local eram imensas reservas de petróleo -- como em Caracas, 2019.
Não se pode ignorar que há menos de um ano, os líderes da oposição venezuelana desperdiçaram uma oportunidade única de debater ideias e oferecer sugestões para o futuro do país, recusando-se a participar das eleições presidenciais de maio.
Em vez disso, num gesto típico de quem sabia que mais tarde poderia contar com ajuda externa para obter aquilo que o eleitorado não iria entregar, pela enésima vez preferiam o boicote às urnas. Foi o primeiro movimento em direção à guerra.
Não se pretende, aqui, ignorar os erros e falhas dos governantes de Caracas.
Ainda que tenha enfrentado um ambiente de gigantesca adversidade externa, após a reeleição o governo Maduro não soube encontrar uma saída para alimentar a economia e ampliar as bases políticas de seu governo, mantendo uma situação que hoje se volta contra a sobrevivência do chavismo, responsável por um conjunto inegável de conquistas das camadas subalternas da população.
Quem costuma associar democracia e oposição na Venezuela, precisa ser mais cauteloso.
No espectro político venezuelano, o radicalismo de Guaidó e seu partido político, Vontade Popular, fazem dele uma versão local de governos de extrema direita bem conhecidos, como Bolsonaro e o colombiano Iván Duque. O preço da projeção de um ilustre desconhecido da Assembleia Nacional, cujo mandato termina no ano que vem, foi o enfraquecimento de lideranças moderadas, como o ex-candidato presidencial Henrique Capriles, crítico e que agora se transformou em aliado de Guaidó.
Ainda que este faça questão do adjetivo "interino" ao lado da palavra presidente, as conversas em seu entorno envolvem medidas de longa duração -- como privatização de 3 mil empresas estatais, abertura do petróleo para empresas estrangeiras e assim por diante. A promessa de anistia a militares que mudarem de lado indica que haverá punição e perseguição para quem for fiel a juramentos e compromissos com as Forças Armadas e o país.
Às vésperas do que pode ser uma tragédia sem volta, é indispensável recordar que o direito a autodeterminação dos povos não é uma ideia vazia nem um enfeite nos gabinetes políticos.
Como a história não se cansa de ensinar, invasões estrangeiras são incapazes de resolver os problemas que pretendem solucionar. Seu destino inevitável é criar um problema novo, muito mais difícil de ser enfrentado pela população local -- livrar o país invadido das forças ocupantes e de seus interesses.
Edição: Brasil 247