Em dez estados brasileiros, milhares de manifestantes foram às ruas no domingo (17) e na segunda-feira (18) em protesto contra a rede de supermercados Extra, do Grupo Pão de Açúcar (GPA), por conta do assassinato por estrangulamento do jovem Pedro Gonzaga, de 19 anos, em uma unidade da rede na Barra da Tijuca, área nobre do Rio de Janeiro (RJ), no último dia 14. O GPA é vice-líder do setor supermercadista no Brasil, que fatura o equivalente a 5,5% do Produto Interno Bruto (PIB) nacional. Os cinco maiores grupos, entre eles o GPA, abocanham mais de 40% do faturamento do setor.
Os atos aconteceram em São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais, Sergipe, Ceará, Mato Grosso do Sul, Rio Grande do Norte, Bahia, Goiás e Pernambuco. Em cada localidade, os manifestantes se concentraram em frente a uma unidade de supermercado Extra e atuaram para impedir o atendimento enquanto ocorria o protesto.
Gonzaga foi morto pelo segurança Davi Amâncio, por volta do meio-dia, diante da mãe que gritava alertando sobre o estrangulamento do filho. O segurança diz que o jovem tentou tirar a arma dele e, por isso, foi necessário imobilizá-lo. Imagens do assassinato divulgadas na internet não sustentam a versão do segurança. A polícia considera a hipótese de homicídio doloso, quando há a intenção de matar.
“Temos o histórico de que os corpos negros não merecem respeito, não merecem estar na sociedade nos lugares onde estão o povo branco e a elite. E é mais ou menos assim a orientação dada em todas as redes de mercados”, lamenta Regina Lúcia dos Santos, 64 anos, há 24 anos no Movimento Negro Unificado (MNU), que existe desde 1978.
Em 2017, último dado disponibilizado pela Associação Brasileira de Supermercados (Abras), o setor faturou R$ 353,2 bilhões, um crescimento de 4,3% em relação aos R$ 338,7 bilhões de 2016. O GPA registrou faturamento de R$ 44,9 bilhões em 2016 e de R$ 48,4 bilhões em 2017.
Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), mais de 54,9% da população do país é preta ou parda. Ou seja, são cerca de 110 milhões de consumidores de supermercados, que mantêm em alta o faturamento do setor.
“A morte de Pedro Gonzaga é mais uma gota no caldo do genocídio da população negra no nosso país. Ela demonstra muito o que a nossa população vive cotidianamente quando entra numa loja, quando entra em um supermercado, quando ocupa territórios que, por conta do racismo estrutural, não seriam seus”, afirma Luka Franca, militante do MNU em São Paulo (SP).
O ator e escritor Oswaldo Faustino vê como positiva a adoção do boicote contra o Extra -- como símbolo do boicote ao racismo estrutural.
“Resta-nos agora boicotar o Extra, o Pão de Açúcar, esse grupo que contrata uma empresa de segurança e não prepara e não abre o olhar desses profissionais para entendimento de suas limitações enquanto atuação, que cumpram o seu dever que é garantir a nossa segurança. E a segurança deles, muitas vezes é a morte dos nossos”, analisa.
O cineasta Thiago Fernandes, dono da produtora Toco Filmes, de Diadema, na região metropolitana de São Paulo, lançou em 2018 o filme “Eu Pareço Suspeito?”, sobre a história do jovem negro Ulisses Araújo, que estava pagando boletos em uma casa lotérica quando testemunhou um assalto. Assim como os outros clientes, ele tentou procurar um abrigo, mas foi atingido pela polícia. O rapaz agonizou na calçada, sem socorro médico, porque foi confundido com um assaltante. Fernandes vê semelhanças com o caso de Gonzaga.
“Os olhos são voltados para nos acusar, para não ficarmos sossegados. Tem um sinal de alerta de que o negro vai roubar, de que o negro causa perigo. Nesses lugares não vemos negros. Onde estão os negros na chefia? Mesmo sendo consumidor, mesmo pagando impostos, mesmo tendo direito ao voto, não temos o direito de estar em determinados lugares sem sermos incomodados”, questiona.
A única resposta possível, segundo Fernandes, é "incomodar" também. “O Extra emitiu uma nota pedindo desculpas. Isso não basta. Quando o Movimento Negro e outras organizações populares pararam o mercado, mesmo que por alguns minutos, isso abala. Isso causa incomodo. Diminui o lucro deles, mexe no bolso dos caras”, interpreta o cineasta, que também faz parte da UneAfro, rede popular de cursinho pré-universitário, e da rede de proteção ao genocídio da população negra.
O Brasil de Fato entrou em contato com a Abras e com o Grupo Pão de Açúcar para repercutir os protestos contra o assassinato de Pedro Gonzaga.
Os questionamentos sobre a atuação dos seguranças e vigilantes não foram respondidos. O Extra enviou uma nota à reportagem ressaltando que “repudia toda forma de racismo”, “que não vai se eximir das responsabilidades” e que instaurou uma sindicância interna para apurar o caso. O texto acrescenta que o supermercado se solidariza com os familiares de Pedro Gonzaga neste “momento de perda e dor”.
A Abras informou que acompanha o caso e aguarda os resultados da investigação.
Edição: Daniel Giovanaz