Convidei-os a viver um dos valores mais bonitos, que é o internacionalismo
Por Olívia Carolino*
Na quarta-feira, 20 de fevereiro, participei - a convite da gestão Nossa Voz - das atividades da calourada do DCE USP, contribuindo na mesa O avanço do neoliberalismo na América Latina e perspectivas de resistência no governo Bolsodória, evento que lotou o auditório do curso de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH), com jovens que recém ingressaram na universidade, sendo recebidos por seus veteranos e por um fraterno debate entre forças da esquerda.
Ao ser convidada para contribuir nessa mesa, recordei um texto publicado na Revista Civilização Brasileira que vem a ser uma oração de Celso Furtado como paraninfo da turma de formandos da Escola Politécnica da USP - que não pode ser lida na Colação de Grau em 1964 - o título é: Brasil de Hoje: problemas do futuro com homens do passado.
E ao se dirigir àqueles jovens formandos na engenharia da USP, Furtado localiza um diálogo estéril entre os ufanistas ingênuos e derrotistas sistemáticos ao buscar compreender a crise brasileira.
O ufanista como aquele que oculta a realidade nacional e evita problemas de consciência; o derrotista, nas palavras de Furtado, o mais realista e, por isso, o mais perigoso, usa informações que podem ser expressas quantitativamente, compara dados, exibe estatísticas e citações em línguas estrangeiras para mostrar que o Brasil é inviável.
O retrato da crise no Brasil hoje nos aproxima do contexto dos estudantes daquela época em que Furtado caracterizou a crise como um período de desenvolvimento industrial que provocara transformações significativas em alguns aspectos da sociedade sem, contudo, afetar outros de igual importância, ou seja, crescimento econômico sem transformações estruturais, que arrasta “temas do passado” e os transmite a épocas posteriores.
Na quarta-feira (20), indo para a atividade da calourada do DCE da USP, pensei que trataríamos, nessa mesa, de temas do passado (estruturais) como imperialismo, fascismo social, socialismo junto a homens e mulheres “do futuro”.
Seguindo a recomendação de Furtado de fugir do diálogo estéril entre ufanistas e derrotistas, pensei numa frase precisa do meu amigo Fernando Heredia: o principal problema deve ser o principal assunto.
O problema principal é a crise capitalista e esse deve ser o principal assunto da vida universitária. Trata-se de uma reestruturação do modo de produção capitalista, intensificada com a crise de 2008, cujo polo dinâmico da financeirização está concentrado nos EUA e no centro comercial na China. A disputa entre essas duas potências se dá no terreno da tecnologia, com destaque para robótica, inteligência artificial e biogenética. A dinâmica financeira hegemoniza a acumulação capitalista por meio dos fundos de investimento e do agronegócio.
O capital financeiro está mundialmente em ofensiva para adequar as instituições políticas e os Estados Nacionais às suas necessidades de acumulação e a essa realidade de reestruturação da produção capitalista de produção e realização de valor.
Na América Latina, o objeto dessa disputa é a intensificação da exploração da força de trabalho e o saque de recursos naturais como água, minério, áreas agricultáveis, petróleo, e dos fundos públicos.
Não se entende o crime de Brumadinho (MG) sem compreender essa dimensão da crise capitalista e sua ofensiva sobre os minérios.
Enquanto estávamos naquele auditório, nossos companheiros e companheiras das centrais sindicais e movimentos populares estavam fazendo história na Praça da Sé, no centro de São Paulo, no Ato Unificado contra a Reforma da Previdência. É nossa obrigação compreender que o que está por trás dessa reforma é um regime hibrido, um modelo de capitalização e privatização do fundo público. Ou seja, não se trata de fazer uma escolha entre propostas de reforma com mais ou menos perdas de benefícios; o que está em jogo é a derrota de uma visão de mundo de direitos coletivos e o triunfo da visão de mercadorização e individualização dos direitos.
Esta reestruturação do Estado para atender ao novo ciclo de acumulação capitalista é incompatível até mesmo com a democracia liberal burguesa, e a onda conservadora e intolerante de extrema direita, estimuladora do fascismo social - deflagrada mundialmente - chega ao Brasil e é coroada na eleição de Bolsonaro.
A arquitetura formada por judiciário, mídias e capital financeiro, que solapa a América Latina com medidas antinacionais e antipopulares, encontra uma resistência heroica que é a Venezuela. A indagação que deixei para os estudantes é que cada um e cada uma deve se perguntar por que a Venezuela não caiu.
Diferente do Brasil, para não falar dos outros processos latino-americanos, nesse período de 20 anos (1999-2019), na Venezuela, o povo aprendeu a participar da política, exercer poder e tomar as rédeas da construção e do destino do país. Neste momento, a Brigada Che Guevara, formada por mais de 400 jovens, está na Venezuela em uma missão internacionalista e podem contar o que estão vivendo lá e driblar o bloqueio de informação sobre o país.
A ação do império estadunidense se deslocou do Oriente para a América Latina, e a Venezuela é a batalha crucial do nosso tempo histórico, em uma ação colonial que coloca em risco a paz mundial, portanto a solidariedade e a luta pela autodeterminação dos povos é uma luta que importa a todos nós.
No Brasil, o principal problema é que nós, como esquerda, devemos reconhecer que sofremos uma derrota. Uma derrota profunda, estratégica, ideológica. O principal assunto deve ser o que temos chamado de resistência ativa.
Sofremos com o Golpe que destituiu a presidenta Dilma, com a prisão de Lula e a eleição de Bolsonaro, uma derrota estratégica, mas que, diferentemente de 1964, não destruiu a esquerda. As forças progressistas têm capacidade de luta e resistência. Temos que aproveitar as contradições, não nos isolar (portanto, construir um amplo movimento na sociedade por democracia) e zelar pela iniciativa política e garantir a liberdade de ação.
Nesse sentido, a campanha Lula Livre é estratégica como uma luta pelas liberdades democráticas e contra a criminalização de lutadores do povo.
Para evitar o cerco à esquerda, o trabalho de base é fundamental. A esquerda está diante de uma oportunidade histórica de utilizar as ferramentas de luta construídas no último período para retomar o vínculo com o povo e realizar um debate estrutural sobre a construção de um país democrático, soberano e com direitos.
Não dava para encarar aquele auditório de olhos brilhantes e ávidos sem apontar o que fazer. Foi aí que convidei-os a conhecer iniciativas como o Projeto Brasil Popular e o Congresso do Povo, no bojo da Frente Brasil Popular. Esse é um convite de uma lente bifocal: um olho na concretude do trabalho de base, enraizado, persistente, que passa por uma confiança profunda no povo brasileiro, acreditando que são protagonistas dos processos; e o outro olho no futuro, no debate estratégico e estrutural do país.
Convidei-os a viver um dos valores mais bonitos da juventude, que é o internacionalismo. As paredes dessa universidade já estiveram forradas de cartazes, com slogans como “tirem as patas da Nicarágua”. A Venezuela hoje é o Vietnã, é a revolução para chamarmos de nossa.
Convidei-os a participar do movimento estudantil, da UNE, a conhecer os movimentos populares. É preciso se organizar, lutar, estudar, ou seja, ter uma postura militante diante da vida, como mulheres e homens que ousam pensar o futuro.
É preciso ser radical como Celso Furtado. Radical no sentido de ir à raiz dos problemas nacionais, não ficar na superfície, não achar que ser radical é fazer uma ação radical e atirar pedras num momento de arrefecimento da luta de classes.
Esta é uma geração que ingressa na universidade em tempos que os inimigos dizem que o populismo de direita é o futuro, no momento em que uma batalha crucial está sendo travada na Venezuela, em que o Brasil está voltando ao mapa da fome, tempos de acerto de contas com nosso processo de redemocratização e revanchismo militar e um período de ataques à universidade pública e ao pensamento critico.
Esses calouros que estão entrando na universidade em 2019, se tudo der certo, irão se formar em 2022. Olhei para cada um e cada uma e vi a geração do bicentenário da Independência do Brasil (2022), portadora da necessidade de realizar a libertação nacional de um país que só conquistará direitos, democracia e soberania quando a luta dos povos entrar na construção nacional.
Terminei emprestando a voz a Furtado, como ele convocou os jovens da USP naquela ocasião:
“Cabe-vos exorcizar os fantasmas que penetram de todos os lados na cena política nacional e enfrentar a realidade com objetividade e confiança.
Cabe-vos exercer com coragem e imaginação política, pois acima de tudo o país necessita superar as mitologias ideológicas importadas e transformadas em leitos de Procusto da realidade nacional.
Cabe-vos, enfim, com vossa intuição de jovens, olhar para o futuro e aí descobrir o sentido das soluções que requerem os problemas do presente".
Este mês, o Instituto Tricontinental de Pesquisa Social lança o dossiê número 13, intitulado O novo intelectual. Fica o convite para a juventude acessar e se lançar nas trincheiras da Batalha das Ideias tão necessária ao nosso tempo histórico.
*Olívia Carolino é economista e pesquisadora do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social.
Edição: Luiza Mançano