Não há nada de humanitário aqui
Por Vijay Prashad*
Enquanto os Estados Unidos e seus aliados pressionam a Venezuela, um poema do radical salvadorenho Roque Dalton (1935-1975) esclarece a estrutura da política na América Latina. Dalton veio de um dos menores países da América Latina, El Salvador, que ele costumava chamar de pequeno polegar (pulgarcito em espanhol). Um poeta profundamente compassivo, Dalton também foi um militante do Exército Revolucionário do Povo, cujas lutas internas exigiram de sua curta vida. El Salvador, como tantos outros Estados latino-americanos, luta para conquistar sua soberania dos tentáculos de poder estadunidense. A hedionda Doutrina Monroe (1823) parecia dar aos EUA a presunção de que têm o poder sobre todo o hemisfério; "nosso quintal" é a expressão coloquial. Pessoas como Dalton lutaram para acabar com essa ideia. Eles queriam que seus países fossem governados por e para seu próprio povo - uma parte elementar da ideia de democracia. Tem sido uma luta difícil.
Dalton escreveu um poderoso poema, OEA, em referência à Organização dos Estados Americanos (fundada em 1948). É um poema que cataloga acidamente como a democracia é uma farsa na América Latina. É do poema que retiramos o título da nossa carta desta semana.
OEA
O presidente do meu país
se chama hoje Coronel Fidel Sánchez Hernández
mas o General Somoza, Presidente da Nicarágua,
também é presidente do meu país.
E o General Stroessner, presidente do Paraguai,
É também um pouquinho presidente do meu país, ainda que
menos que o presidente de Honduras, ou seja,
o general López Arellano, e mais que o presidente do Haiti,
Monsieur Duvalier
E o presidente dos Estados Unidos é mais presidente do
meu país que o presidente do meu país
esse que, como disse, hoje,
se chama Coronel Fidel Sánchez Hernández
Rafael Enriquez, Dívida externa, OSPAAAL, 1983
O presidente da Venezuela é o presidente da Venezuela ou o presidente dos Estados Unidos é o presidente da Venezuela? Há um absurdo aqui. O colapso dos preços do petróleo e a dependência em relação à sua receita, a guerra econômica feita pelos Estados Unidos e complicações no aumento das finanças levaram à hiperinflação e a uma crise econômica na Venezuela. Negar isso é negar a realidade. Mas há uma grande diferença entre uma crise econômica e uma crise humanitária.
A maioria dos países do planeta está enfrentando uma crise econômica, com as finanças públicas em sérios problemas e com enormes dívidas que afligem os governos em todos os continentes. A reunião deste ano do Fórum Econômico Mundial em Davos (Suíça) concentrou a atenção na crise global da dívida - do déficit de quase 1 trilhão de dólares dos Estados Unidos ao fardo da dívida da Itália. David Lipton, do FMI, alertou que, se as taxas de juros subissem, o problema aumentaria. "Há bolsões de dívida mantidos por empresas e países que realmente não têm muita capacidade de manutenção, e acho que isso será um problema".
A hiperinflação é um problema sério, mas sanções econômicas punitivas, a apreensão de bilhões de dólares em ativos no exterior e ameaças de guerra não vão amenizar o problema da desgastada moeda venezuelana, o bolívar.
Parlamento europeu, Strasbourg, 2015.
A erradicação da fome tem que ser a política básica de qualquer governo. Segundo a Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação, 11,7% dos venezuelanos passam fome. As taxas de carestia em outras partes do mundo são muito maiores - 31,4% na África Oriental. Mas a atenção do mundo não se voltou a essa crise severa, que gerou, em parte, a enorme migração através do Mar Mediterrâneo. A foto acima é do Parlamento Europeu em Estrasburgo, onde - em 2015 - ativistas expuseram os 17.306 nomes de pessoas que morreram tentando essa travessia (o número agora está perto de 40 mil afogados). Os membros do Parlamento Europeu tiveram que caminhar para a sessão sobre esses nomes. Eles são duros em suas ações para iniciar uma guerra contra a Venezuela, mas indiferentes sobre as graves crises na África e na Ásia que mantêm o fluxo de migrantes estável.
O governo da Venezuela tem duas de uma série de políticas para enfrentar o problema da fome:
a) Comitê Local de Abastecimento e Produção (CLAP). Os comitês locais são formados por grupos de vizinhos que cultivam alimentos e também os recebem de produtores agrícolas. Distribuem esses alimentos para cerca de 6 milhões de pessoas, a baixo custo. Atualmente, as cestas da CLAP estão sendo enviadas às casas a cada 15 dias.
b) Plano de Atenção à Vulnerabilidade Nutricional. Os venezuelanos mais vulneráveis – 620 mil pessoas – recebem assistência. O Instituto Nacional de Nutrição tem coordenado a entrega de alimentos para a maioria dos municípios do país.
Essas iniciativas são úteis, mas insuficientes. Mais precisa ser feito. Isso está claro. Por meio do CLAP, o governo venezuelano distribui cerca de 50 mil toneladas de alimentos por mês. A "ajuda humanitária" que os EUA prometeram equivale a 20 milhões de dólares - o que compraria míseras 60 toneladas de alimentos.
1º Batalhão PSYWAR dos EUA (Guerra Psicológica) distribui cartazes anticomunistas em Santo Domingo, 1965.
Sobre a questão da "ajuda humanitária" à Venezuela, a mídia internacional tornou-se escrivã do Departamento de Estado dos EUA e da CIA. Ela se concentra nas falsas alegações feitas pelo governo dos EUA de que quer entregar ajuda, que os venezuelanos recusam. A mídia não olha para os fatos, nem mesmo para o fato de que 20 milhões de dólares são um gesto humilhante, uma quantia destinada a ser usada para estabelecer a falta de coração do governo na Venezuela e, portanto, procurar derrubá-lo da maneira que for necessária. Foi o que o governo dos EUA fez na República Dominicana em 1965, enviando ajuda humanitária acompanhada por fuzileiros navais.
Os EUA usaram aviões militares para trazer essa modesta ajuda, levaram-na a um depósito e depois disseram que os venezuelanos não estão preparados para abrir uma ponte para isso. Todo processo é um teatro político. O senador norte-americano Marco Rubio foi até a ponte - que nunca foi aberta – e disse de maneira ameaçadora que a ajuda "vai passar" de um jeito ou de outro. São palavras que ameaçam a soberania da Venezuela e aumentam a energia para um ataque militar. Não há nada de humanitário aqui.
Se não nos deixar respirar, não vamos deixar você respirar.
Proto Príncipe, Haiti, 2019
O termo "humanitário" foi retalhado em seu significado. Agora significa um pretexto para destruir um país. "Intervenção humanitária" foi o termo usado para destruir a Líbia; a "ajuda humanitária" está sendo usada para bater os tambores de uma guerra contra a Venezuela.
Enquanto isso, esquecemos a solidariedade humanitária oferecida pelo governo venezuelano às nações e populações mais pobres. Por que o Haiti está pegando fogo agora? Recebeu petróleo a baixo preço, da Venezuela, pelo sistema da PetroCaribe (criada em 2005). Há uma década, a Venezuela oferecia petróleo às ilhas caribenhas sob condições muito favoráveis para que não fossem vítimas das empresas petrolíferas monopolistas e do FMI. A guerra econômica contra a Venezuela significou o declínio da PetroCaribe. Agora, o FMI voltou a exigir que os subsídios ao petróleo acabem, e as empresas petrolíferas monopolistas voltaram a exigir pagamentos em dinheiro antes da entrega. O governo do Haiti foi forçado a votar contra a Venezuela na OEA. É por isso que o país está em chamas (para mais informações, leia minha reportagem [em inglês]). Se você não nos deixar respirar, diz o povo haitiano, não vamos deixar você respirar.
Em 2005, no mesmo ano em que a Venezuela criou a PetroCaribe, criou a PetroBronx, na cidade de Nova York (EUA). A pobreza terrível no sul do Bronx galvanizou grupos comunitários como Rebel Diaz Arts Collective, Green Youth Cooperative, Bronx Arts and Dance, e Mothers on the Move.
Eles trabalharam com a CITGO, subsidiária de petróleo do governo venezuelano nos EUA, para desenvolver um mecanismo de cooperação para levar petróleo ao sistema de aquecimento das pessoas. Ana Maldonado, socióloga que atualmente trabalha na Frente Francisco de Miranda (Venezuela), foi uma das participantes da PetroBronx. Ela e suas amigas criaram a Estrela do Norte, uma organização comunitária que ajudava a distribuir os recursos para as pessoas mais pobres dos Estados Unidos. "As pessoas tinham que usar seus casacos dentro de suas casas durante o inverno", ela me disse. Era intolerável. É por isso que a Venezuela forneceu aos pobres nos Estados Unidos o óleo subsidiado para aquecimento.
Josh MacPhee, Malcolm X, Just Seeds.
O sul do Bronx e o Harlem, as privações produzidas pelo racismo - tudo isso é território familiar na América Latina. Em 1960, Fidel Castro veio a Nova York para participar das Nações Unidas. Foi recusado a ele um hotel na cidade. Malcolm X, um líder da comunidade afro-americana, veio em seu auxílio, levando a delegação cubana ao Harlem, no Hotel Theresa, cujo dono - Love B. Woods - acolheu Fidel e seus companheiros calorosamente. Quatro anos depois, em uma reunião no Harlem, Malcolm X disse em relação a seu encontro com Fidel: "Não deixe que outros digam quem devem ser nossos inimigos e quem devem ser nossos amigos".
*Vijay Prashad é historiador e jornalista indiano. Diretor Geral do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social.
Edição: Luiza Mançano