A razão pela qual adoram Chávez é que sua chegada nos anos 90 lhes deu esperança
Por Vijay Prashad*
O clima em Caracas (Venezuela) é sombrio. Tudo indica que a tentativa de golpe contra o governo que se iniciou em 23 de janeiro está em grande parte finalizada (como o ministro das Relações Exteriores da Venezuela, Jorge Arreaza, me contou). O Grupo de Lima está dividido. Os europeus estão cautelosos. No aniversário de um mês dessa tentativa, uma multidão de pessoas das camadas mais pobres se reuniu no centro de Caracas para demonstrar seu apoio à Revolução Bolivariana. Um casal de idosos levou uma placa que expressou o clima – Somos los Invisibles. Somos os Invencíveis. Venceremos (Somos os invisíveis. Somos invencíveis. Venceremos).
É difícil precisar o número de pessoas naquele comício. Uma imagem de um drone sugere uma grande multidão, mas engana. A maioria dos softwares de contagem de multidões assume um certo tamanho corporal e uma certa quantidade de espaço entre as pessoas na multidão. Essas suposições não se aplicam neste caso. Os partidários do governo e da Revolução Bolivariana carregam as marcas de sua história em seus corpos. Eles são pequenos e magros, de pele mais escura e desgastados por décadas de trabalho, o que lhes garantiu o suficiente para sobreviver. A razão pela qual eles adoram Hugo Chávez – sua imagem estava em todo lugar – e por que se autodenominam chavistas é que foi a chegada dele na década de 1990 que lhes deu esperança e inspirou sua atividade política. Não fazem sentido, para eles, as acusações de que esse governo – liderado por Nicolás Maduro – fosse responsável por sua fome. Eles sabem que a Revolução Bolivariana é um processo no qual estão ativos.
Nessa quarta-feira (27 de fevereiro), há trinta anos, milhares de pobres da Venezuela se sentiram lesados pelo aumento das tarifas de ônibus. Eles saíram pelas ruas do país e a raiva deles foi capturada na desordem que produziram. Esse evento, conhecido como Caracazo, é o que inaugura a Revolução Bolivariana. Poucos dias antes do aniversário, visitei Mariela Machado, uma negra da classe trabalhadora que lidera uma comunidade em um dos muitos projetos habitacionais auto-organizados em Caracas. Foi o Caracazo e Chávez que lhe deram a força para superar os séculos de descrédito e pobreza que pesavam sobre ela. Ela e seus vizinhos fizeram o melhor que podiam para construir uma comunidade – uma cozinha comum, uma padaria, uma sala de reuniões e um espaço compartilhado limpo e decente. A maioria dos líderes desses bairros é mulher – todas são pobres, a maioria trabalhadora e afro-venezuelana. Perguntei a Mariela o que aconteceria com ela e seu bairro se o governo caísse. “Seríamos expulsos”, disse. A feroz defesa dos chavistas contra a derrubada de seu governo está ligada ao medo de que quaisquer mudanças que tenham ocorrido em suas vidas sejam agora revertidas. A velha humilhação retornaria.
Mesmo que a tentativa de derrubar o governo em Caracas esteja quase terminada, há fragilidade no governo venezuelano. É uma fragilidade compartilhada com a maioria dos países do tricontinente – África, Ásia e América Latina. As finanças públicas em todo o mundo foram prejudicadas pela saída de trilhões de dólares do alcance dos governos e da atividade produtiva. Estima-se que haja entre 21 e 32 trilhões de dólares nos paraísos fiscais. Os mercados financeiros globais de ações movimentam mais de 200 trilhões de dólares. Isso é riqueza social desviada para usos improdutivos. Nenhuma escola é construída com esse dinheiro. Nenhum hospital é construído com esse dinheiro. Os lucros do investimento financeiro correm para os ricos, que deixaram de pagar impostos e de arriscar sua riqueza em investimentos produtivos. Os bilionários estão em uma greve fiscal e de investimento. Essas duas greves são suas armas na luta de classes (conforme exposto em nosso primeiro Documento de Trabalho, Nas Ruínas do Presente). Por causa dessas greves e da frágil cadeia global de commodities, quase um bilhão de pessoas não conseguem encontrar um trabalho que as sustente, enquanto as que têm trabalho veem sua humanidade golpeada por seus empregos.
Há fragilidade na dependência da Venezuela do petróleo e sua falta de soberania alimentar. Há alguns problemas fundamentais de longo prazo da economia venezuelana que antecedem a chegada de Chávez ao governo e que continuarão por algum tempo ainda. Esses são problemas comuns à maioria dos países – como a Nigéria – que têm grandes populações e dependem das exportações de petróleo para financiar as importações de quase tudo. As vulnerabilidades são muitas. Thomas Sankara, da Burkina Faso, diria: “quem te alimenta te controla”. É um lembrete importante. A conversa sobre o aumento da produção de alimentos na Venezuela é importante – e urgente (faça uma rápida viagem com Ricardo Vaz para Mérida, onde a batata nativa está sendo resgatada). Tudo isso exigirá uma reforma agrária mais profunda, mas também mudanças na cultura de consumo que foram produzidas pelo influxo de renda do petróleo. Juan Pablo Pérez Alfonso – um dos grandes ministros do petróleo da Venezuela – chamou a matéria-prima de “excremento do diabo”. Ele continua certo.
Ao longo da semana passada, quase quinhentas pessoas de 87 países, representando grupos políticos e movimentos, chegaram a Caracas para a Assembleia Internacional dos Povos – uma nova iniciativa que visa criar uma plataforma para campanhas de solidariedade e para melhor conectar a esquerda no país. Os relatórios das deliberações – que eram inteligentes e imperativos – não chegaram à grande imprensa. Repórteres da People’s Dispatch e da ALBA, bem como alguns outros serviços, cobriram as discussões, que foram da solidariedade ao povo venezuelano até a séria conclusão de que o dinheiro e as notícias falsas subverteram a democracia eleitoral. Levará tempo para digerir as implicações dessas discussões – e levará tempo para ver que tipos de ações comuns podem se desenvolver. Certamente, a primeira ação comum é garantir que não haja intervenção militar na Venezuela e pressionar pelo fim do estrangulamento da economia venezuelana.
Os governos da Índia e do Paquistão estão brincando com fogo. Ataques aéreos no território de cada um ameaçam ampliar o conflito. A maioria dos indianos e paquistaneses – como a maioria dos venezuelanos – não vai ganhar com a guerra. O sofrimento é o que restará a eles. Há tantos problemas reais que atormentam os países do sul da Ásia – a fome é um deles. Pouco antes de a aeronave disparar através da fronteira, centenas de trabalhadores marcharam até o parlamento indiano para exigir salários e pensões mais altos e para evitar a privatização das creches. Eles entregaram uma petição que tinha 40 milhões de assinaturas para o governo.
O protesto dos trabalhadores de creches (anganwadi) trouxe à mente o poema de Wislawa Szymborska, O fim e o começo:
Depois de cada guerra
alguém tem que limpar.
as coisas não vão
se arrumar, afinal.
Alguém tem que empurrar os escombros
para a lateral da estrada,
para que os vagões cheios de cadáveres
possam passar.
Alguém tem que ficar atolado
em espuma, cinzas,
molas de sofá,
cacos de vidro
e trapos sangrentos.
Alguém tem que arrastar uma viga
para escorar uma parede.
Alguém tem que envernizar uma janela,
recolocar uma porta.
Bem na foto não fica
e leva anos.
Todas as câmeras saíram
para outra guerra.
Precisamos das pontes de volta
e novas estações ferroviárias.
As mangas ficarão esfarrapadas
de tanto serem arregaçadas.
Alguém, vassoura na mão,
ainda lembra o jeito que era.
Outro alguém ouve
e acena com a cabeça, sem jeito.
Mas já existem aqueles, próximos,
que começam a murmurar sobre
quem vai achar isso sem graça.
De fora dos arbustos
às vezes alguém ainda desenterra
argumentos enferrujados
e leva-os para a pilha de lixo.
Aqueles que sabiam
o que estava acontecendo aqui
devem abrir caminho para
aqueles que sabem pouco.
E menos que pouco.
E finalmente tão pouco quanto nada.
Na grama que cresceu demais
causas e efeitos,
alguém precisa estar deitado
grama em sua boca
olhando para as nuvens.
*Vijay Prashad é historiador e jornalista indiano. Diretor Geral do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social.
Edição: Aline Scátola