No último dia 7, véspera do Dia Internacional da Mulher, o médium João Teixeira de Faria, conhecido como João de Deus, teve habeas corpus julgado pelo Tribunal de Justiça do Estado de Goiás (TJ-GO) a respeito do processo de tentativa de coação de testemunhas. Mas o julgamento foi adiado por pedido de vista de desembargadora. Contudo, nesta terça-feira (12), o julgamento foi retomado e desembargadores da 1a Câmara Criminal do Tribunal de Justiça de Goiás concederam o habeas corpus em favor de João de Deus e do seu filho, Sandro Teixeira. Foram 4 votos favoráveis e 1 voto contrário. Mas apenas o filho será solto, já que o médium possui outros mandados de prisão.
Em dezembro do ano passado, João de Deus foi preso sob a acusação de violação sexual. Um dia após o Ministério Público de Goiás divulgar um e-mail para o recebimento de denúncias, o número já chegava a 200 declarações de mulheres vítimas do médium. Poucos dias depois, já passava de 500.
Tudo começou quando 2 vítimas procuraram Maria do Carmo Santos, presidente da ONG Vítimas Unidas. Professora aposentada e atuante há 10 anos na ONG, Maria do Carmo relata estranhar a maneira como as vítimas chegaram até ela, “normalmente é a amiga de uma amiga de uma amiga” que faz a denúncia, relata a ativista. Após isso, ela começou a investigar e puxar mais vítimas, até que perguntou a uma delas se havia falado com mais alguém e então uma das vítimas comentou que havia falado com a Sabrina Bittencourt. “A partir dessas vítimas a gente começou a articular de como trazer isso a público. A gente já tinha mapeado vítimas dispostas, então quando a gente tinha mais ou menos um número de 15 pessoas, 2 delas estrangeiras, resolvemos divulgar”, comenta Maria do Carmo. Sabrina de Campos Bittencourt era ativista e denunciava crimes sexuais realizados por líderes religiosos. Foi uma das fundadoras do grupo Combate ao Abuso no Meio Espiritual (Coame) e teve sua infância marcada por abuso de religiosos Mórmon. Em fevereiro desse ano, Sabrina escreveu uma carta de despedida no Facebook e, em seguida, cometeu suicídio.
Conhecido por fazer cirurgias espirituais, o médium trabalhava na Casa de Dom Inácio de Loyola, no município de Abadiânia, em Goiás, uma cidade com menos de 20 mil habitantes. Durante a ditadura civil-militar, trabalhou como alfaiate do exército em Brasília e com o tempo adquiriu fama internacional por seu trabalho mediúnico. Contudo, no início da carreira, já em 1980, ele foi processado por sedução contra menor, mas alguns anos depois o processo foi retirado pela família da adolescente.
Dentre as centenas de casos, havia o caso de duas vítimas que levaram o pai com câncer cerebral ao médium para tratamento e “ele jurou ao pai e às filhas que curaria ele enquanto estuprava as filhas e elas ficaram reféns dele anos”, assim como o caso de uma funcionária que trabalhava com ele das 4 da manhã às 10 da noite e era estuprada sob ameaças de morte ao marido e ao filho caso contasse a alguém. Ambos relatados pela ativista. E mesmo sendo de conhecimento das pessoas o que acontecia na Casa de Dom Inácio, demorou 45 anos para vir à tona. Maria conta que em 2006, uma guia de turismo enviou um e-mail para pousadas, empresas de turismo, para própria Casa de Dom Inácio de Loyola, denunciando João de Deus pelos estupros e nada aconteceu. “Então esse discurso que a gente ouve que todo mundo sabia em Abadiânia é verdadeiro. Todo mundo sabia, mas também sabia que a polícia era corrupta, que ele tinha o judiciário a favor dele”, relata.
Maria e eu nos encontramos nas atividades do 8 de março, no centro de Florianópolis. Ela compareceu a uma conversa sobre violência obstétrica e, visivelmente abalada, comentou sobre uma mensagem que havia acabado de receber dizendo que João de Deus poderia ser solto por habeas corpus. O julgamento havia sido feito no Tribunal de Justiça de Goiás após pedido de habeas corpus pela defesa do médium para que ele cumprisse prisão domiciliar referente à acusação de coação de vítimas. Além desta, João de Deus possui outras acusações como posse ilegal de arma e de arma restrita, estupro e obstrução de justiça. Após receber 3 votos favoráveis ao habeas corpus, o julgamento foi adiado por pedido de vista de desembargadora. Contudo, Maria conta que conversou com um desembargador “e ele me disse que um habeas corpus solta ele”.
Algumas vítimas a escreveram desesperadas com a notícia. Uma delas, que pediu para não ser identificada, disse em mensagem por whatsapp à ativista: “Como assim ele vai ser solto? O Tribunal de Justiça já deu 3 votos a favor da defesa do seu João. Ele será solto. Que Deus cuide pelas vítimas, pois muitas vão sumir, pode apostar. Será solto no Dia Internacional da Mulher. Que Deus nos proteja. Eu tive um sonho horrível. Sonhei que o João de Deus me asfixiava. Acordei com a sensação das mãos dele no meu pescoço. Foi horrível”. As acusações são feitas por mulheres de 11 países diferentes e 19 Estados brasileiros.
Desolada, ela comenta: “é vítima desesperada, vítima querendo se matar, mulheres de 20, 30 anos com a vida estragada e aí chega um TJ, com seu alto salário, do seu alto escalão de quem não mexeu uma palha pra nada e vota pela soltura dele. Nada para mim justifica essa atitude do TJ porque não há irregularidade na prisão dele. O que leva um ser humano a ser preso pelas leis desse país? Ou flagrante ou o fato dele estar ameaçando testemunhas e isso não falta por provar. Ou seja, a prisão dele é legal”.
Com os olhos exaustos e a fala ofegante e cansada, ela diz que, sendo também uma vítima de violência sexual, a sua militância começou na própria vida. Sabrina, ativista contra violações sexuais de líderes religiosos, também teve sua infância marcada pelo abuso. Infelizmente, essa é uma situação bastante comum. Em um período de 6 anos, de 2011 a 2017, segundo dados do Ministério da Saúde, mais de 180 mil casos de abuso sexual foram notificados. A maioria esmagadora dos abusadores são homens e as vítimas são mulheres, entre crianças e adolescentes. Os casos geralmente ocorrem em casa e com pessoas de convívio familiar. Dados alarmantes como esse demonstram a importância do debate sobre sexualidade nas escolas e, simultaneamente, do perigo do Programa ‘Escola sem Partido’, defendido por figuras como o próprio presidente, Jair Bolsonaro.
A atual ministra das mulheres, Damares Alves, não tem feito gestos para políticas significativas de proteção às mulheres. Suas falas e ações polêmicas têm sido alvo de duras críticas feitas pelos movimentos sociais. As principais problemáticas são a pouca aplicabilidade das leis de violência contra a mulher e quase nenhuma proteção às vítimas. São incontáveis os casos em que a vítima de violência faz a denúncia, relata ameaças e, mesmo assim, é assassinada. Com a possível soltura de João de Deus, Maria do Carmo teme pela própria vida já que há a possibilidade da justiça brasileira não reconhecer como criminosas as ações do maior estuprador do mundo. O Brasil de Fato tentou contato com a defesa do médium, mas não obteve retorno
Edição: Marcelo Ferereira