Moçambique é um país do sudeste africano com cerca de 30 milhões de habitantes. A República é jovem, tendo sido fundada em 1975, após a independência da colônia portuguesa. Depois de passar mais de uma década em guerra civil, o país possui hoje um governo democrático, sob a liderança da Frente de Liberação de Moçambique, conhecida como Frelimo, a mesma que liderou o processo de independência do país.
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De visita ao Brasil a convite do Programa de Pós-graduação em Serviço Social, Centro de Ciências Sociais e Aplicadas da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Boaventura Monjane, ativista moçambicano, jornalista, membro do projeto Alternactiva de comunicação popular e doutorando do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, Portugal, falou ao Brasil de Fato sobre a situação política no país africano, os efeitos do ciclone Idai, que matou mais de 450 pessoas, e o olhar dos moçambicanos e moçambicanas sobre o Brasil. Confira a entrevista:
Brasil de Fato: Boaventura, primeiramente, gostaria que você contasse um pouco sobre a experiência do projeto Alternactiva de comunicação popular que você integra no seu país, Moçambique.
Boaventura Monjane: A Alternactiva é uma iniciativa que surge a partir da necessidade que identificamos em Moçambique, de criar um espaço abertamente de esquerda de debate e discussão da vida nacional nas suas várias vertentes. Na vertente social, política, cultural, econômica, recreativa, e que estivesse próximo das agendas de luta dos movimentos sociais e das organizações progressistas da sociedade civil. Com progressista, refiro-me a grupos de pessoas que pensam ou que têm uma ideia de um Moçambique cada vez mais justo socialmente, mais justo economicamente, um Moçambique que permita aos seus cidadãos, homens e mulheres, crianças e idosos, exercer a sua cidadania na plenitude e viver a sua humanidade sem que lhes seja retirada a sua dignidade. Isso passa, necessariamente, por justiça social, passa pela redução das desigualdades sociais, passa por permitir que as pessoas se eduquem, tenham uma saúde adequada, e que enfim, usufruam dos direitos democráticos garantidos pela Constituição da República de Moçambique.
Além do Oceano Atlântico, há um bloqueio cultural que nos afasta bastante dos nossos irmãos africanos. Por isso, eu gostaria que você falasse um pouco pra gente como é a política no seu país.
Moçambique conquista a independência e proclama a independência em 1975, portanto, há 44 anos. E através da fundação do estado novo, tendo em conta que antes era uma colônia de Portugal, nesse processo de fundação do que se chamou República Popular de Moçambique, tentou-se aplicar ou implementar uma política socialista. Portanto, o grupo que liderou a luta armada e que depois chegou ao governo, que é a Frente de Libertação de Moçambique, a Frelimo, ou pelo menos, a liderança desse movimento, tinha uma ideologia marxista-leninista. E, de fato, o país tenta ser socialista, mas aconteceram uma série de coisas que não permitiram que as ideias do socialismo tivessem uma vida duradoura.
Primeiro instalou-se uma guerra civil um ano depois da independência que durou 16 anos, na qual morreram muitas pessoas, cerca de um milhão de moçambicanos e moçambicanas, destruiu infraestruturas públicas, etc. e, portanto, essa situação foi sangrando a capacidade do Estado moçambicano de implementar suas políticas. Mas também tivemos a chegada na região, não só em Moçambique, mas em toda a região da África Austral, do neoliberalismo, que também se aproveita da situação dramática de países como Moçambique, devido à guerra, para impor uma política neoliberal, para forçar o fim de uma linha de governo mais socialista, e assim abraçou-se o neoliberalismo.
A guerra civil termina através de uma acordo de paz que se assina em Roma em 1992, e instala-se então, pela primeira vez, em 1994, as primeiras eleições multipartidárias em Moçambique. Durante o período prévio à assinatura dos acordos gerais de paz, Moçambique era um Estado monopartidário. E, portanto, realiza-se as primeiras eleições, depois outras são realizadas, mas o partido Frelimo se mantém no poder. Aconteceram uma série de mudanças a nível dos governos municipais, locais, onde novos partidos e partidos da oposição têm poder, governam a nível mais local, mas o governo central continua nas mãos da Frelimo. E a Frelimo foi, na última década e meia, controlado por uma ala extremamente neoliberal.
Portanto, temos um governo neoliberal, que opta por abrir o país aos mercados, abrir o país às corporações internacionais para exploração dos recursos, o gás, o petróleo, o carvão mineral e uma série de outros recursos, incluindo terras agrícolas, etc. Foi nesse contexto que a brasileira Vale do Rio Doce se instalou em Moçambique, para extrair carvão na província de Tete. Foi também a partir dessa lógica que foi criado o ProSavana, que parece com o Prodecer do Brasil dos anos 70. E, portanto, o tipo de governo que temos em Moçambique é esse: um governo que está aberto a modificar os setores produtivos, abrir-se mais ao capital financeiro internacional, e portanto, a Frelimo esqueceu-se dos seus valores de esquerda ou socialistas. Não diria que se trata de um governo fascista ou de um governo de extrema direita, mas socialista não é.
Boaventura, você já fez parte de uma organização camponesa no seu país, e por isso eu gostaria de saber como é a situação do movimento camponês em Moçambique, o enfrentamento ao latifúndio e à violência no campo.
Olha, Moçambique é um país essencialmente agrário. A população rural perfaz mais de 70% do total da população moçambicana. E, portanto, como é óbvio, o setor do campesinato é largo. Os camponeses e camponesas são a categoria social mais larga de Moçambique e também a mais pobre. E tem sido nos últimos anos o setor da população que mais sofreu com o neoliberalismo. Foi o que mais sofreu com a chegada no país de investimentos, o que nós lá chamamos de megaprojetos, mas que também tenta se organizar para lutar.
O campesinato está articulado na União Nacional de Camponeses, que é um movimento social do campo, o movimento social mais importante de Moçambique, que tenta articular a luta dos camponeses contra a usurpação de terras e pelos direitos plenos do campesinato à terra, aos insumos, aos mercados, etc. Eu integrei a UNAC [União Nacional de Camponeses], antes de ir fazer o meu doutorado. Trabalhava mais na área de comunicação e mobilização e, portanto, nesse período, pude viajar o país inteiro e conversar com muitas lideranças camponesas. E me dei conta de como as lutas pela defesa da terra têm, por vezes, sido reprimidas. Eu falei com uma série de líderes camponeses, homens e mulheres, que me falaram de ameaças diretas que receberam, não do setor das milícias, como ocorre na América Latina, mas do governo central. Portanto, há um sentimento de intimidação mas, obviamente, não é o nível do Brasil ou de Honduras, onde há assassinatos diários de lideranças camponesas e indígenas.
Os brasileiros estão seguramente muito preocupados com a situação atual de Moçambique e de outros países da África que sofrem as consequências da passagem do ciclone Idai, que só no seu país causou mais de 450 mortes, oficialmente, e afetou mais de um milhão de pessoas. Como está a situação agora?
A situação continua caótica, drástica. Apesar do ciclone já haver passado, ele deixou uma série de efeitos nefastos. Estão surgindo agora casos preocupantes de cólera, de malária, e portanto, espera-se que ocorra mais mortes. Os dados oficiais dão conta de terem morrido em Moçambique mais de 400 pessoas, mas há uma estimativa que tenha havido outros mortos não registrados, pessoas que desapareceram. Estima-se que tenha morrido cerca de mil pessoas só em Moçambique. Mas tivemos casos similares no Zimbábue, com menos intensidade, mas com perdas de vidas e bens, e também no Malauí. Portanto, eu penso que, nesse momento, as pessoas estão com um misto de sentimentos. Por um lado o sentimento de susto, de frustração e dor profunda. Mas por outro, com uma vontade enorme de reerguer-se e reconstruir as suas vidas, as suas aldeias, as suas cidades, os seus bairros e, por fim, voltar a ter uma vida normalizada.
Ainda sobre esse assunto, a gente tem recebido notícias de ajudas humanitárias que têm chegado ao país, como o envio de médicos e tendas de campanha pelo governo de Cuba. Mas sempre que acontecem esses desastres, infelizmente alguns governos, principalmente as grandes potências militares, utilizam a desculpa da ajuda humanitária para intervir nesses países. É uma preocupação das organizações populares de Moçambique?
Eu acho que em Moçambique, nesse momento, ninguém está pensando nessa perspectiva, mas eu tenho pensado nisso. E eu tenho dito aos meus amigos que precisamos ter cuidado com a onda de apoio que chega. Evidentemente, não quero ser ingrato. Nesse momento as pessoas de Moçambique precisam desse apoio, dessa ajuda, para se refazerem do choque e para se refazerem do ciclone. Mas, evidentemente, precisamos estar vigilantes e temos que ver até que ponto todas as ajudas que chegam não nos obriguem a situações futuras não muito boas. Já chegaram os cubanos, os russos, os chineses, os estadunidenses, etc., e portanto, é muito importante agradecer os apoios genuínos, mas também por uma questão de soberania nacional, de defesa do país, ser vigilantes.
Nós tivemos uma aproximação maior entre o Brasil e os países da África com os governos do Partido dos Trabalhadores (PT), mas houve uma mudança de perspectiva nesse cenário a partir do golpe de estado e agora com a eleição de Jair Bolsonaro. Como os moçambicanos estão vendo todas essas mudanças no Brasil?
Bom, foi com muita lástima que acompanhamos os acontecimentos políticos no Brasil nos últimos quatro anos, com a destituição da presidenta Dilma Rousseff e agora com a prisão do ex-presidente [Luiz Inácio] Lula da Silva. Nós sentimos que a democracia no Brasil foi atropelada e que, portanto, os brasileiros têm que defendê-la e evitar que se instale nesse país, por exemplo, o militarismo, um governo militar. Por outro lado, há que mencionar que durante o período do governo do PT, não só tivemos coisas boas nessa relação. O capital brasileiro penetrou em Moçambique, nos dois casos que eu já mencionei, da Vale e do ProSavana e, portanto, não sabemos até que ponto o novo governo dará continuidade a isso, intensificar ou abrandar. Essas são as contradições da vida, da política. Mas quero dizer aos brasileiros para que lutem pela democracia, que é difícil conquistar. É preciso lutar para defendê-la porque a democracia é sempre muito difícil de conquistar.
Edição: Pedro Ribeiro Nogueira