Durante cerimônia de posse da nova Comissão da Anistia em Brasília (DF), na última quarta-feira (27), a ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos (MMFMH), Damares Alves, fez críticas ao trabalho realizado pela comissão nos últimos anos e questionou a concessão de indenizações a vítimas do regime militar.
Em sua intervenção, a ministra disse que “tem conversado com a comissão para que dê prioridade” aos requerimentos dos ex-presidentes Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e Dilma Rousseff (PT), ambos perseguidos e presos durante a ditadura.
“Tem casos de dois ex-presidente que vamos analisar. Será que falo os nomes deles? É Luiz Inácio Lula da Silva. Acho que é isso, né? E a ex-presidente Dilma Rousseff”, ironizou a ministra. “Isso vai ser muito bem analisado e eu vou respeitar a decisão do colegiado. Eu acredito que em no máximo dois meses nós vamos estar trazendo para o Brasil o resultado do pedido dos dois ex-presidentes”, prometeu.
A declaração da ministra foi interpretada como um prenúncio de que os pedidos de Dilma e Lula serão rejeitados pela comissão. Dilma, que foi presa e torturada durante a ditadura, recorreu ao órgão para receber indenização da União por perseguição da ditadura. Ela já foi indenizada nos estados de São Paulo e Rio de Janeiro e doou os recursos ao grupo Tortura Nunca Mais.
Para José Eduardo Cardozo, ex-ministro da Justiça, Alves comete "abuso de poder" ao deixar clara a intenção de usar a Comissão de Anistia para perseguir seus adversários políticos.
"Parece muito claro que, do ponto de vista jurídico, isso configura algo chamado ‘desvio de poder’ ou ‘abuso de poder’. Quando eu predetermino uma perseguição de alguém com um objetivo que evidentemente não é o de cumprir a lei, estou efetivamente descumprindo a competência legal que me foi dada, estou abusando do meu poder", explica. "Isso é um ato ilícito, ilegal. Quando eu falo: 'quero que reveja dessas pessoas porque, no fundo, são meus adversários político-ideológicos', estou incorrendo na prática de desvio de poder anunciado e escancarado".
A ministra ainda sugeriu que serão revistas indenizações que já foram concedidas. “Precisamos encontrar algumas respostas e algumas ‘caixinhas’ da Comissão de Anistia precisam ser abertas. Vamos fazer uma análise das indenizações que já foram concedidas”, disse. Alves solicitou apoio da Consultoria-Geral da União para a realização da auditoria.
Na última terça-feira (26), o Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos publicou no Diário Oficial da União (DOU) uma portaria rejeitando 265 pedidos de reconhecimento de anistiados políticos. Segundo o MMFDH, as decisões seguiram “pareceres do Conselho da Comissão de Anistia produzidos ainda na gestão passada”.
Mudanças
Entre as alterações que já foram anunciadas pela ministra Damares Alves, está o aumento do número membros da comissão, de 20 para 27. Ela será presidida pelo advogado e consultor jurídico João Henrique Nascimento de Freitas, responsável por ajuizar uma ação na Justiça Federal do Rio de Janeiro em 2010 que impediu o pagamento de indenização mensal de dois salários-mínimos a 44 camponeses reconhecidos como vítimas de torturas durante as operações do Exército para eliminar a guerrilha do Araguaia.
Além disso, foi instituindo um novo regimento interno, com novas regras para o requerimento de indenizações. A principal modificação é em relação ao número de recursos que o cidadão poderia impetrar sobre decisões do conselho. Agora, o requerente só poderá entrar com recurso uma única vez -- antes, o número de vezes era ilimitado.
Para a ex-ministra da Secretaria Especial dos Direitos Humanos, deputada federal Maria do Rosário (PT), trata-se de mais um mecanismo para impedir que a reparação dos crimes da ditadura seja efetiva.
“Quando nós estamos falando de um período de ditadura, em que as informações nem sempre estiveram públicas -- e não estão públicas --, onde há situações veladas que só aparecem depois que as pessoas morrem, onde há um pacto de silêncio dos torturadores, é muito importante deixar os recursos como possibilidade aberta, porque isso significa que as novas informações que venham a aparecer no futuro e corroborem o relato daqueles que foram torturados, ameaçados e prejudicados, possam ser resgatadas pelo Estado”, lamenta.
A Comissão
A Comissão de Anistia foi criada em 28 de agosto de 2001 por meio da Medida Provisória n.º 2.151, assinada pelo então presidente Fernando Henrique Cardoso (FHC). Posteriormente, transformou-se na Lei 10.559, de 13 de novembro de 2002, que tem por objetivo reparar as vítimas do regime militar no Brasil. Até 2019, a comissão integrava a estrutura do Ministério da Justiça. O presidente Jair Bolsonaro, por meio da Medida Provisória n° 870, transferiu a comissão para o MMFDH.
Para Cardozo, a mudança não representaria nenhum problema para os trabalhos da comissão, não fosse a determinação do governo em esvaziá-la: “Fosse uma solução meramente administrativa, a mudança orgânica, em si não teria importância. A importância se dá justamente porque faz parte da estratégia matar a Comissão de Anistia e rever anistias passadas que foram legitimamente deferidas”.
Segundo dados do ministério, desde que foi criada, a comissão já pagou R$ 10 bilhões em indenizações. Outros R$ 14 bilhões estão aprovados pelo grupo, mas aguardam decisão judicial para serem pagos. De acordo com a pasta, a comissão recebeu 78 mil requerimentos, dos quais, 11 mil estão pendentes de análise.
Cardozo acrescenta que o trabalho realizado pela Comissão de Anistia “é uma obrigação do Estado brasileiro” diante das graves violações de direitos cometidas por agentes públicos durante o regime militar.
“O arbítrio do período da ditadura militar gerou consequências funestas em ofensa a direitos de cidadãos, de cidadãs, e trouxe situações que o Estado brasileiro tem o dever de reparar", ressalta. “E isso não apenas por regras constitucionais ou legais nossas, mas por força de regras que estão colocadas no plano internacional. Ou seja, a Comissão da Anistia é uma obrigação do Estado brasileiro, seja pelas suas leis internas, seja pelos tratados que subscreve”, finaliza.
Maria do Rosário questiona as intenções da ministra de Bolsonaro e lamenta as consequências das mudanças na comissão: “O objetivo do Estado não deve ser outro que não fazer a justiça. Para isso, o Estado não pode estar ao lado dos torturadores. O que a ministra pretende impedindo recursos é estar ao lado dos torturadores como seu chefe, o atual presidente da República”.
Resposta
O Brasil de Fato entrou em contato com o Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos. Em resposta aos questionamentos, a assessoria de comunicação encaminhou um texto publicado no site do ministério sobre o evento realizado em Brasília esta semana.
No documento, o ministério afirma que "os critérios para a análise dos processos foram modificados, de forma a deixar a concessão mais rigorosa". O texto não menciona os comentários da ministra Damares Alves sobre os ex-presidentes Lula e Dilma e não responde questionamentos a respeito do posicionamento da titular do ministério em relação aos mortos, desaparecidos e torturados pela ditadura militar.
A ex-presidenta Dilma Rousseff divulgou uma nota oficial sobre o caso: "Pedi reparação da União por ter sido presa e torturada pela ditadura. Suspendi a ação quando era presidenta, por razões éticas, e a reapresentei ao ser destituída por um golpe. Não abro mão desta luta. O que é meu por direito não pode ser negado pela história e pela Justiça", disse.
Edição: Daniel Giovanaz