Depois do blecaute que atingiu a Venezuela na última segunda-feira (25), a intermitência no fornecimento de energia elétrica ainda afetou grande parte do país por pelo menos três dias nesta semana. Com o apagão, denunciado pelo governo como fruto de um ataque de sabotagem, os moradores de Caracas, um centro urbano em geral agitado, têm encontrado novas formas de lidar com o cotidiano, construindo laços de solidariedade com vizinhos que antes se conheciam apenas de vista.
Algumas cenas em Caracas repetiram o que se viu duas semanas atrás, quando o país sofreu o maior apagão de sua história republicana. Na segunda-feira, uma romaria de trabalhadores caminhando de volta para casa se formou paralela à linha do metrô desde o bairro de Chacaito, no centro-oeste da cidade, até o Valle do Tuy, zona periférica da capital venezuelana e o ponto mais distante do sistema metroviário, que ainda não voltou a funcionar. Um serviço de transporte alternativo foi acionado. O comércio foi fechado. A segurança das ruas foi reforçada e guardas sinalizavam os cruzamentos nos pontos de trânsito mais problemático.
Depois de três dias seguidos de cortes de luz, os venezuelanos tentavam se adaptar para voltar à normalidade. Alguns negócios voltaram a abrir as portas, mesmo sem poder utilizar máquinas convencionais de pagamento por cartão de débito e crédito, que dependem de eletricidade e internet. Essa é a principal forma de pagamento na Venezuela, já que o dinheiro vivo está escasso. O bolívar, a moeda local, tem sido duramente golpeado pela especulação e a hiperinflação, em parte provocada e acelerada por sites hospedados fora do país. Além disso, os bancos e caixas eletrônicos fecharam na tarde de segunda-feira, no primeiro apagão da semana, e não voltaram a abrir.
Solidariedade
A solidariedade tem ajudado os venezuelanos a lidar com os problemas decorrentes da falta prolongada de energia elétrica. Um exemplo é a professora Judite Rodríguez, de 60 anos, que chegou ao edifício Residencial Bello Monte sem ter como iluminar as escadas para subir os 15 andares que levam até o apartamento onde mora.
“Eu estava com o celular descarregado, não tinha como iluminar. Um vizinho que mora no quinto andar estava chegando também e fez a gentileza de subir comigo até o décimo quinto". Ela conta ainda que, no caminho, encontraram outro vizinho. "Solidário, o senhor do quinto andar subiu até o décimo nono para acompanhá-lo também", relata a professora da Universidade Simón Rodríguez.
No dia seguinte, a professora fez almoço para a família e levou um prato de comida para a jovem vizinha do apartamento acima do seu, “que mora sozinha e trabalha muito”, conta. A jovem não poderia consumir todas as carnes (produto caro na Venezuela) que estavam em sua geladeira e que corriam o risco de estragar, então doou a Judite. E assim se formou uma espécie de corrente de solidariedade entre vizinhas que antes apenas se cumprimentavam.
Apagão
Depois da queda do fornecimento de energia elétrica na segunda-feira, o país sofreu outro apagão às 5h30 de quarta-feira (27), e cerca de 14 estados venezuelanos amanheceram mais uma vez sem luz. O serviço começou a ser restabelecido por volta das oito horas da manhã, no horário local. Em algumas regiões de Caracas, a luz só voltou às onze horas. No mesmo dia, às seis da tarde, outro blecaute deixou boa parte do país no escuro mais uma vez. A eletricidade voltou às nove da noite e não sofreu novos cortes até o fechamento desta matéria.
O ministro de Comunicação da Venezuela, Jorge Rodríguez, informou que as causas do blecaute ainda estão sendo investigadas. Um incêndio em uma subestação da central hidrelétrica de Guri, responsável por 80% do abastecimento do país, estaria entre as possíveis causas, informou a vice-presidenta venezuelana, Delcy Rodríguez, apresentando fotos do incêndio nas redes sociais.
Volta à rotina
No bairro de Sábana Grande, região de comércio movimentado no centro de Caracas, alguns negócios voltaram a abrir as portas na quarta-feira e, aos poucos, os clientes foram chegando. O feirante Cleibe Rosales decidiu colocar suas frutas e verduras à venda, mesmo sem as máquinas de cartão. “Nós preferimos vender fiado para os clientes que já são de confiança do que guardar os produtos correndo o risco de perder tudo e tomar um prejuízo ainda maior”, diz o feirante, que veio do estado andino de Táchira, na fronteira com a Colômbia.
A padaria Flor de Pan também abriu as portas em uma rua onde todas as lojas permaneceram fechadas. O local funciona em dois turno, entre seis da manhã e nove da noite, e emprega 50 funcionários. Na manhã de quarta, um dos sócios começou o dia com a ajuda de apenas um dos trabalhadores, e assim foi até às 10 horas, quando os demais começaram a chegar. “Com o metrô fora de funcionamento, os trabalhadores buscam outras alternativas de transporte. Demoram a chegar, mas todo mundo vem trabalhar. Isso se chama compromisso com o trabalho”, afirma o sócio-proprietário Rodolfo Gonçalves.
O estabelecimento fornece almoço e janta para todos os empregados, por isso, para muitos trabalhadores, não faltar, mesmo em situações adversas, significa garantir duas refeições por dia, em um momento em que a maioria dos supermercados e restaurantes estão fechados. “Nós decidimos abrir porque são 50 famílias que dependem desse trabalho, sem falar nos empregos indiretos”, diz Rodolfo.
Para manter o negócio abastecido, é preciso se reinventar, diz o proprietário. “Mudamos um pouco os produtos que oferecemos para nos adaptarmos à situação. Evitamos, por exemplo, fazer doces com chocolate, porque eles resistem menos sem refrigeração, assim como algumas tortas que levam recheios mais delicados. É nessas horas que temos que nos reinventar para sobreviver”, ressalta.
Gerador
O pequeno açougue do bairro Bello Monte, na capital venezuelana, também está buscando sua maneira de sobreviver à “guerra elétrica”. “Optamos por comprar um gerador elétrico. É pequeno, gera apenas 700 volts, mas é suficiente para manter as carnes frias”, explica a gerente Genete Monteverde. O açougueiro Ramón Antonio diz que o movimento não parou. “Os clientes continuam vindo comprar, mas agora a diferença é que eles levam menos quantidade, porque, sem geladeira, não tem como armazenar”, diz. Ramón conta sobre como está a rotina sempre com um sorriso no rosto. “O humor também é a maneira de lutar contra todas essas dificuldades. Aqui recebemos todos com alegria. Muitas vezes as pessoas chegam estressadas, cansadas. O sorriso é a nossa resistência”, explica o açougueiro.
Em frente ao açougue, uma pequena charcutaria busca driblar a dificuldade de receber pagamentos por meios eletrônicos utilizando uma máquina de cartão sem fio, ou seja, que usa sinal direto de rede de internet do celular, sem necessidade de corrente elétrica. “Nós, os venezuelanos, temos uma grande capacidade de adaptação diante das adversidades. Se hoje explodirem uma bomba aqui, nós vamos nos assustar, mas amanhã mesmo vamos buscar uma forma de superar esse trauma, as dificuldades que isso nos trouxe e seguir em frente”, explica o trabalhador do negócio, Carlos Sanches.
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Edição: Aline Scátola