Os alunos que viam o professor Florestan Fernandes (1920 - 1995) entrar em sala de aula com avental branco, como um cientista, durante a década de 1960, na Universidade de São Paulo (USP), talvez não imaginassem a importância que o intelectual teria no país, mesmo duas décadas e meia após sua morte.
Sociólogo e deputado federal por duas vezes pelo Partido dos Trabalhadores (PT), o multifacetado professor Florestan permanece atual e inspirando muitas pessoas. Tamanha a importância de suas formulações sociológicas à época da ditadura civil-militar, que o regime o exilou no ano de 1969. Quando retorna, ele participa ativamente de marcos da história brasileira, como a Assembleia Nacional Constituinte, que formulou a Constituição Cidadã (1988).
Florestan é um dos principais intelectuais referenciados pela sociologia brasileira, e formulou importantes contribuições sobre o desenvolvimento do sistema capitalista no Brasil e a construção do Estado, após o restabelecimento da democracia.
O projeto Clube do Livro, da editora e livraria Expressão Popular, lançou dois títulos do renomado professor brasileiro em março: Apontamentos sobre a "Teoria do autoritarismo” e Reflexões sobre a construção de um instrumento político.
O Brasil de Fato conversou com Renata Couto Moreira, professora da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES) e membro do Setor de Formação do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), para entender as obras.
Confira a íntegra:
Brasil de Fato: o que Florestan denomina como autoritarismo?
Renata Couto Moreira: É importante trazer o contexto em que Florestan estava escrevendo as notas sobre o autoritarismo no curso em que ele dá na USP, em 1978, depois de um momento de exílio e dentro do governo da ditadura civil-militar. É nesse contexto que está posto todo o debate do autoritarismo e que vai propiciar a demanda dos estudantes da universidade por um curso sobre uma teorização do autoritarismo. E ele vai se debruçar sobre todo esse debate posto à época, e acho que no hoje.
Florestan começa fazendo uma crítica do uso desse termo do autoritarismo como bastante ambíguo e como isso fazia com que se criasse uma confusão em torno do que se vivenciava na época. Momento do pós Segunda Guerra Mundial, um contexto de Guerra Fria, onde há experiências socialistas, principalmente da União Soviética, e ditaduras militares de governos fascistas estabelecidas na América Latina.
Para ele, o autoritarismo tem uma ideia geral, e cabe tudo nele, desde uma versão de relações autoritárias de poder, até mesmo a sua versão mais tirânica e fascista, que Florestan associa ao poder e ao despotismo burguês, que estava posto nos golpes das ditaduras.
Essa diferenciação é importante. O uso do termo na época, tentando misturar como se tivesse sido a mesma coisa que houve nos dois regimes [URSS e ditaduras latino-americanas] era justamente uma forma de justificar e aprofundar a caça ao comunismo e aos movimentos socialistas que estavam postos.
E o que esse autoritarismo representa hoje?
Florestan é um professor que já se coloca como cientista e político socialista e vai desenvolvendo uma leitura da essência do que estava ocorrendo. Ele mostra a estrutura do fascismo relacionada à forma como o Estado se desenvolve e assume no capitalismo dependente da América Latina e, em particular, do Brasil.
Ele vai trabalhar exaustivamente na sua obra prima publicada em 1975, A revolução burguesa no Brasil, em que associa o Estado Democrático Burguês com elementos fascistas de governo e de manifestação do poder burguês. No capitalismo dependente, esse Estado terá suas especificidades e é o que Florestan caracteriza enquanto um estado autocrático burguês da periferia dependente do capitalismo.
Temos bastante elementos que, quando lemos Florestan, parece que ele está falando do que estamos vivendo hoje. Mesmo hoje, com outras roupagens, dá para perceber que muito dessa análise estrutural que ele faz, ainda é determinante no capitalismo contemporâneo que vivemos.
Na contramão desse sistema, o que o professor propõe para a organização do povo?
Não tem nenhuma receita pronta. Na verdade são elementos que buscamos, em torno de leis gerais, para visualizar o sistema que vivemos e entender a nossa funcionalidade na reprodução dele.
Na época em que Florestan estava escrevendo, vivíamos ainda o capitalismo monopolista, em que havia uma reconfiguração a partir das crises, como a dos anos 1930, que desemboca na Segunda Guerra Mundial. Houve uma reconfiguração do seu padrão de acumulação de riqueza, concentração e centralização de capital.
Hoje, depois dessa nova crise que está posta dos anos 1970, os anos perdidos de 1980 e essa nova reconfiguração neoliberal dos anos 1990, vem todo um questionamento de como se estrutura o padrão de dominação do capitalismo atual, em que se vê uma dominância da esfera financeira e dos capitais fictícios em relação a um capital produtivo. Isso aprofunda a própria contradição e base de existência do capitalismo, à medida que envolve cada vez menos trabalho vivo no seu processo de produção e expropria cada vez mais os trabalhadores e os recursos naturais.
Trazer essa análise e as perguntas que Florestan se fez para o hoje é muito importante nesse diálogo. As perguntas são muito vivas. Ele se pergunta 'Qual a capacidade de resistência e flexibilidade do capitalismo?'. Já teve todo esse processo e estamos ainda perante essa nova crise que desemboca em 2008, com o estouro da bolha e se manifesta rapidamente em todo lado desse capitalismo, agora globalizado.
Mas Florestan também, desde aquela época, chama atenção ao que se aprofunda muito nos dias de hoje sobre o capital estrangeiro. São grandes oligopólios multinacionais sobre as economias e como isso vai reconfigurando e desconfigurando esse poder burguês, o Estado e a noção de democracia, que vai se reconfigurando nos governos e golpes que vemos hoje. Na América Latina e no Brasil, particularmente, há governos extremamente autoritários e conservadores, mas com roupagem de democracia e com uma política econômica ultraliberal.
Os desafios que nós temos já estavam postos e muitos desses elementos que o autor se propõe a discutir de forma sistemática no seu tempo são bastante atuais e necessários ao nosso. Eles acrescentam contribuições bastante valorosas para a gente entender os nossos dilemas de hoje — de onde viemos, como e porquê — e os desafios que estão postos nesse processo de alienação do capital e, por outro lado, a capacidade do movimento socialista de aprofundar a sua leitura sistemática da realidade.
Edição: Michele Carvalho