Nós que estamos envolvidos com o movimento por Memória, Verdade e Justiça sempre fazemos questão de falar sobre a ditadura militar, especialmente quando se aproxima o aniversário do golpe de 1964. Em 2019, o assunto está um tanto em alta. Mas não porque tenhamos desenvolvido uma consciência nacional sobre o período ditatorial, e sim por conta dos absurdos que o presidente Jair Bolsonaro e seus correligionários têm falado por aí.
No contexto da Justiça de Transição, consideramos que a reflexão sobre a memória é uma parte essencial do trato das heranças que a ditadura deixou. Em certa ocasião, a historiadora Emília Viotti da Costa proferiu as seguintes palavras: “Um povo sem memória é um povo sem história. E um povo sem história está fadado a cometer, no presente e no futuro, os mesmos erros do passado." A lição não poderia ser mais evidente: se não conhecermos nosso passado ditatorial, corremos o risco de deixar que se repitam todas as atrocidades pretéritas.
A falta de conhecimento e de memória histórica faz que com o apoio a torturadores não seja algo isolado, ainda que até alguns anos atrás os defensores da tortura preferissem ficar calados ou, pelo menos, ser um pouco mais discretos. Nos espantamos, com razão, quando o então deputado federal Jair Bolsonaro declarou seu voto a favor do impeachment da presidenta Dilma Rousseff e o fez “em memória do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra”, responsável por torturar inúmeros militantes, entre os quais a própria Dilma Rousseff. Entretanto, a fala de Bolsonaro não expressa somente uma admiração particular por um algoz, mas o sentimento de muitos brasileiros que consideram a ditadura como um mal necessário ou mesmo como um período que não foi tão tenebroso quanto dizem os defensores de Direitos Humanos.
Para evitar que esse tipo de exaltação nostálgica se dissemine ainda mais entre a população, é necessário mostrar a face real da ditadura até que os revisionismos históricos caiam em descrédito. É necessário preservar os locais que um dia serviram como centros de tortura e transformá-los em sítios de memória, a exemplo do Memorial da Resistência, em São Paulo, que um dia abrigou o Departamento de Ordem Política e Social (Deops). Além disso, é preciso expor os torturadores, tal como fez o Levante Popular da Juventude com os escrachos que marcaram a nacionalização desse movimento social em 2012. Entretanto, também é importante saber apagar: rebatizar escolas, viadutos e ruas que carreguem nomes de ditadores e derrubar bustos que homenageiem algozes. Devemos nos lembrar sempre do rebatismo do Viaduto Costa e Silva, em São Paulo, passando a se chamar Viaduto João Goulart, bem como da ação dos estudantes da UFPR que retiraram a estátua do ex-reitor Flávio Suplicy de Lacerda em 2014.
Ademais, é essencial honrar a memória dos que tombaram nas fileiras da resistência à ditadura, como Carlos Marighella, Helenira Rezende, Alexandre Vannucchi Leme, Ana Rosa Kucinski, Edson Luis e tantos outros; assim como é importante exaltar os lutadores que sobreviveram e que até hoje dedicam suas vidas ao movimento por Memória, Verdade e Justiça, como Amelinha Teles, Adriano Diogo e Maurice Politi. Se não assumirmos o compromisso de lembrar dos nossos companheiros e de suas agruras, a violência continuará sendo relativizada, como o fez Onyx Lorenzoni, ministro da Casa Civil, mitigando a ditadura chilena ao afirmar que, mesmo que tenha havido um banho de sangue no período de Pinochet, o ditador teria tido sucesso em mudar as bases macroeconômicas do país. Ou seja, para Lorenzoni, qualquer violência vale a pena quando se trata de implementar políticas neoliberais.
Outro ponto fulcral – e um tanto óbvio - é o fato de que a memória deva ser construída em torno de fatos verídicos, o que nos coloca dois deveres. Um deles é a desconstrução de narrativas mentirosas acerca da ditadura e da resistência. Cumpre notar que o período ditatorial foi amplamente sustentado por mentiras, começando por sua primeira tentativa de legitimação, a “ameaça comunista”, passando pela falsificação de laudos médicos referentes a óbitos que não foram causados por doenças e sim por tortura. Também é necessário desconstruir a ideia de que o golpe de 64 é algo a ser comemorado, tal como deseja Bolsonaro ao determinar que os militares celebrem o aniversário do golpe que ele insiste em chamar de revolução.
O segundo dever consiste em trazer à tona fatos que foram propositalmente lançados ao porão do esquecimento por serem considerados prejudiciais à transição lenta e negociada. Nesse sentido, o relatório da Comissão da Verdade (CNV), lançado em 2014, é um documento a ser sempre evocado. Ainda que a investigação conduzida pela CNV pudesse ter ido muito além do que seus percalços permitiram, o documento final traz à luz dados e acontecimentos que, a partir de 2014, passaram a ter caráter oficial e público. Graças ao relatório, hoje sabemos que a ditadura brasileira totalizou 434 militantes mortos e desaparecidos. Esses números seriam ainda maiores se as investigações tivessem prosseguido por mais tempo, se tantas provas não tivessem sido destruídas no período ditatorial e se muitos perpetradores não seguissem negando as torturas que cometeram.
Por fim, destaco que o cerco conservador que se formou no país tem colocado em risco todo o trabalho desenvolvido há anos pelos defensores de Direitos Humanos e, mais especificamente, pelos militantes por Memória, Verdade e Justiça. Exemplos de ataques não faltam. Em viagem ao Chile, o presidente Bolsonaro afirmou que “quem procura osso é cachorro”, em deboche aos esforços de busca por corpos de desaparecidos durante a ditadura. Poucos dias depois, a ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos, Damares Alves, informou que “o pente-fino na Comissão de Anistia está prestes a começar”, afirmando que muitos dos anistiados políticos teriam recebido reparações indevidas e que isso seria mau uso do dinheiro público. Para Alves e Bolsonaro, dinheiro público bem utilizado é aquele investido no apagamento das memórias da ditadura.
* Natália Araújo é bacharela e mestre em Relações Internacionais pela USP. Atualmente é professora de Direito e integra o Levante Popular da Juventude
Edição: Daniel Giovanaz