O canário permanece na gaiola, cantando para os atiradores que passam
Por Vijay Prashad*
Mais uma vez, Israel - com a vingança de Zeus - começou a bombardear a Faixa de Gaza. Os sons e odores da guerra nunca estão ausentes em Gaza, que durante os últimos 12 anos é alvo de bombardeios e de um estrangulamento por parte de Israel. Não se compreende esse conflito sem levar em conta que o fato de que os Estados Unidos estão totalmente por trás da política israelense de aniquilação. A declaração colonialista de Trump - contra a resolução 497 da ONU (1981) - para que as Colinas de Golan sejam "dadas" a Israel, tirou deste país qualquer preocupação ética. Com total apoio dos EUA, irá capturar Jerusalém, o Golan e tentar fazer o que quer na Palestina.
Números de mortos e feridos são fáceis de encontrar, mas estes não compreendem o que significa para os palestinos na Faixa de Gaza a vida em uma jaula. Mahmoud Darwish, o grande poeta palestino, escreveu um poema antes de morrer, em agosto de 2008, que joga luz não apenas sobre a experiência de viver em Gaza, mas também de viver como um palestino em um mundo que desconsidera sua existência:
Próximo do que será
ouvimos as palavras do canário
para mim e para você:
"Cantar em uma gaiola é possível
e assim é a felicidade".
O canário, quando canta,
Nos aproxima do que será
Amanhã você vai olhar hoje-ontem
E dirá: "Foi lindo
e não durou muito"
e você não estará nem feliz nem triste
Amanhã, vamos lembrar que deixamos o canário
numa gaiola, sozinho,
cantando não para nós
mas para os atiradores que passam.
Há uma profecia aqui. Em janeiro de 2018, o jornalista palestino Ahmed Abu Artema saiu para uma caminhada noturna em sua cidade natal, Rafah (Faixa de Gaza, Palestina). Ele viu pássaros voarem para além da fronteira que enjaula a Faixa de Gaza. "Ninguém detém os pássaros", ele pensou. A ocupação israelense, ele sentia, "prende minhas asas" e "atrapalha minhas caminhadas noturnas". E se um palestino de Gaza "se ver como um pássaro e decidir chegar a uma árvore para além da cerca?", ele pensou. "Se o pássaro fosse palestino, ele seria baleado". Ele foi para casa e escreveu uma pergunta no Facebook: "O que aconteceria se milhares de moradores de Gaza, a maioria refugiados, tentarem cruzar a cerca que os separa de suas terras ancestrais?" A resposta, sinceramente, (conforme destaco em meu relatório, em março), é que seriam baleados.
Um ano atrás - no Dia da Terra (30 de março de 2018) -, os palestinos de Gaza, inspirados por Abu Artema, iniciaram a Grande Marcha do Retorno. Dezenas de milhares caminharam até a cerca na fronteira que delimita a Faixa de Gaza. Foram atingidos por gás lacrimogêneo e franco-atiradores israelenses. Com milhares de feridos e centenas de mortos, a ONU divulgou um relatório que acusava os militares israelenses de crimes de guerra e pediu ao governo israelense que investigasse essas acusações. Em vez disso, o governo não cooperou com o inquérito e rejeitou o relatório da comissão. O canário permanece na gaiola, cantando para os atiradores que passam, e agora também para os bombardeiros.
Linda Tabar, diretora do Centro de Estudos para o Desenvolvimento (Universidade de Birzeit, em Ramallah, Palestina), escreve que o “aniversário de um ano da Marcha do Retorno, em Gaza, nos faz parar e perguntar sobre os fracassos que apontam para a indiferença com a qual o mundo assistiu palestinos desarmados se tornarem alvos de atiradores de elite e serem abatidos por desafiarem os cercos coloniais e buscarem se libertar de uma prisão a céu aberto, de modo a retornar às nossas terras”.
A foto é do nosso amigo Hafez Omar. Ele é um artista de Tulkaram (Palestina). Em 14 de março, o Tribunal Militar de Ofer, em Israel, ordenou que ele fosse detido por 12 dias. Seu recurso foi rejeitado pelos tribunais em 20 de março. Já se passaram os 12 dias. Ele permanece na prisão, sem acesso ao seu advogado. Pressionem as autoridades israelenses em seus países e exijam a libertação de Hafez Omar e o fim dos bombardeios a Gaza. Digam a eles, se tiver oportunidade, que a ocupação da Palestina precisa acabar.
Discussões sobre a ocupação israelense na Palestina podem ser estéreis, com intermináveis questões sobre o que deve ser feito. Aqui, há de fato um cenário político difícil. Existe um caminho, para sair da ocupação da Palestina, sem negar o direito dos palestinos voltarem para casa?
A posição defendida pela ONU é a da "solução de dois estados". Israel e Palestina existindo lado a lado. É o que ambos os lados aceitaram. A base para isso é a resolução 242 da ONU (1967) e a resolução 338 da ONU (1973). Ambas pedem a retirada das forças israelenses de Jerusalém Oriental, da Cisjordânia e da Faixa de Gaza. Elas pedem uma "solução justa para o problema dos refugiados" e a garantia de um território palestino. A política de colônias, que começou com o Ministério da Agricultura de Ariel Sharon, em 1977, e continua com incentivo oficial, invalida a solução dos dois estados. Colonos israelenses dominam o governo e não estão de brincadeira. Eles vetaram a solução de dois estados e começaram a anexar o que chamam de Judéia e Samaria. Primeiro, eles invadem uma área. Em seguida, começam a construir as colônias. Isso provoca uma reação palestina. Vêm então os muros, os postos de controle, as demolições, a destruição da vida palestina, a humilhação - tudo planejado para aumentar o custo da vida e forçar os palestinos a fugirem. Teju Cole chama esse processo de "violência fria". "Colocar um povo em profunda incerteza sobre os fundamentos da vida, ao longo de anos e décadas", escreve ele, "é uma forma de violência fria". O que vemos aqui - além dos atentados - é violência fria, violência lenta.
A posição israelense, se formos francos, não é pela solução de dois Estados, mas para uma solução de três Estados: empurrar os palestinos para o Egito, a Jordânia e o Líbano. É uma política de aniquilação (livrar-se dos palestinos) e uma política de anexação (saquear terras e recursos palestinos).
A posição justa seria a de um único estado, mas esta foi rejeitada pelos sionistas. Uma das primeiras resoluções da ONU, a 194, de 11 de dezembro de 1948, afirma que os palestinos que haviam sido expropriados tinham o direito de retornar às suas casas "o quanto antes". Havia esperança de que as várias comunidades encontrassem uma maneira de viver juntas e que uma solução política secular fosse criada. Não foi assim. Hoje, essa solução é difícil de imaginar, já que a direita sionista se tornou o "extremo-centro" de Israel. A ideia de que Israel é um Estado judeu torna impossível a solução de um Estado. O primeiro-ministro, Benjamin Netanyahu, afirmou publicamente que sua solução preferida é "um Estado palestino desmilitarizado que reconheça um Estado judeu, o Estado-Nação do povo judeu". Enquanto a classe política israelense - que domina a discussão - agarrar-se fortemente a essa identidade étnico-nacional, a opção de um Estado estará fora de questão. O que se tem é um apartheid. Israel é um Estado e uma sociedade fundados em um apartheid. A classe dominante de Israel não permitirá que os palestinos tenham cidadania plena em uma Israel-Palestina unificada. Isso eles dizem claramente.
O que resta para a Palestina? Se você assistir ao filme de nove minutos de Larissa Sansour, Estado-nação (2012), você verá um prédio que é a Palestina, com suas cidades (Ramallah, Jerusalém) em andares diferentes. É uma notável imagem de ficção científica da Palestina de hoje e de amanhã. Estamos em um Estado de ocupação sem fim. Não é futurismo, mas a essência do presente.
Larissa Sansour nos faz lembrar de Sulafa Jadallah (1941-2002). A arte de Jadallah está ligada profundamente à política da Organização de Libertação da Palestina (OLP), em cuja Divisão de Fotografia ela começou sua carreira. Fotografias de refugiados palestinos e de combatentes palestinos (fedayeen) forneceram um quadro inspirador para sua luta. Jadallah se juntou à recém-formada Palestine Films Unit, onde fez vários filmes importantes para a luta pela liberdade. Nós a honramos para celebrar os sonhadores e os visionários, os pássaros engaiolados que se recusam a parar de cantar.
O Iêmen entrou no quinto ano da guerra saudita naquele país. É uma guerra esquecida e sem fim. Uma guerra como a dos EUA no Afeganistão. Como a prolongada guerra contra os pobres, cujas vidas não podem começar, já que suas escolhas estão circunscritas pela política comercial e o investimento é de 1%. É uma guerra que os palestinos conhecem; assim como os cubanos, os congoleses e os venezuelanos.
Nessa guerra, o canário na gaiola não consegue sair, mas continua cantando. O canário sonha com um mundo onde as barras de sua gaiola se dissolvem e onde poderá voar de um extremo ao outro do planeta. Ele voará junto com os pássaros de Abu Artema, para além das fronteiras, procurando o último céu.
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*Vijay Prashad é historiador e jornalista indiano. Diretor Geral do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social.
Edição: Tiago Angelo