As alterações na Política Nacional de Saúde Mental, adotadas a partir do governo de Michel Temer (MDB) e aprofundadas sob o governo de Jair Bolsonaro (PSL), estão sob questionamento em Brasília (DF). Em nota técnica publicada na última sexta-feira (29), a Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão (PFDC), órgão do Ministério Público Federal (MPF), pediu a revogação de três normas editadas pelo último governo.
Assinado pelas procuradoras da República Deborah Duprat e Lisiane Braecher, o texto pede a anulação da Resolução nº 32, da Portaria n° 3.588 e da Portaria Interministerial n° 2, publicadas em dezembro de 2017, que contêm medidas como o financiamento de leitos psiquiátricos e de comunidades terapêuticas – entidades que ofertam tratamento a usuários de drogas tendo como perspectiva a lógica da segregação social.
A PFDC aponta que as mudanças estancam os avanços que o país havia obtido na área de saúde mental.
“Tais disposições representam um retrocesso na política de saúde pública, por acarretarem o retorno a um modelo arcaico de tratamento, que subtrai o paciente da sua existência e da possibilidade concreta de sociabilidade, lançando-o num espaço de exclusão”, afirma a nota.
Ao apontar que tais dispositivos contêm ilegalidades e inconstitucionalidades, a PFDC ressalta que eles contrastam com a Lei da Reforma Psiquiátrica (nº 10.216/2001), a Lei Brasileira de Inclusão (nº 13.146/2015) e a Convenção sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência – que tem força de emenda constitucional desde 2008, após aprovação do Congresso Nacional.
“O direito à vida independente e à inclusão na comunidade determina a excepcionalidade da internação hospitalar. Portanto, o dever do Estado brasileiro é garantir os serviços extra-hospitalares, a suficiência destes serviços e que as internações hospitalares sejam decrescentes”, acrescenta o órgão, ressaltando a importância do modelo de inserção social e atenção multiprofissional da Rede de Atenção Psicossocial (RAPs), que se baseia na Convenção e na Lei de Reforma Psiquiátrica.
A Procuradoria ressalta ainda que a lógica implementada a partir de tais normativas fere a dignidade da pessoa humana. O órgão também lembra que, segundo orienta a legislação brasileira, as políticas de cuidado na área de saúde mental “devem ser realizadas pelos meios menos invasivos possíveis e, preferencialmente, em serviços comunitários”.
A nota técnica com o pedido de revogação das três normas foi enviada para os Ministérios da Saúde (MS), da Justiça (MJ) e da Cidadania. O Brasil de Fato tentou ouvir as três pastas a respeito da manifestação da PFDC, mas não obteve retorno das assessorias de comunicação dos ministérios até o fechamento desta reportagem.
Sociedade civil
Após a implementação de tais medidas pelo governo Temer, outros órgãos e entidades vêm se manifestando de forma permanente contra as mudanças. É o caso, por exemplo, do Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH), do Conselho Federal de Psicologia (CFP), do Conselho Nacional de Saúde (CNS) e da Rede Nacional Internúcleos da Luta Antimanicomial (Renila).
As entidades reforçam o posicionamento do Ministério Público de que espaços de internação com “características asilares” devem ser substituídos por serviços de saúde territorializados, como é o caso dos Centros de Atenção Psicossocial (CAPs), das residências terapêuticas e dos leitos psiquiátricos em hospitais gerais. A norma está expressa especificamente na Lei da Reforma Psiquiátrica.
Em entrevista ao Brasil de Fato, a conselheira Marisa Helena Alves, representante do CFP no CNS, afirma que os serviços de internação em hospícios têm como característica, de modo geral, o isolamento do paciente não só em relação ao convívio social e familiar, mas também ao próprio meio urbano, por conta da localização dessas unidades, geralmente distantes das cidades. Alves acrescenta que a Reforma Psiquiátrica procurava garantir um tratamento mais humanizado aos pacientes.
“A ideia é que, nas cidades, os municípios criem serviços abertos, para os quais as pessoas possam ir e vir todos os dias. Que tenham a garantia de atenção à saúde, mas que não estejam distantes [geograficamente]. E que, acima de tudo, garantam o seu direito de cidadão, o seu direito fundamental de liberdade, os direitos de agir, de ir e vir. Então, essa é a noção de territorialização, de um serviço que está próximo”, explica.
As entidades sublinham ainda que a lógica hospitalocêntrica acaba com o protagonismo da política da redução de danos, praticada pela rede de atendimento psicossocial, e fere o protagonismo do paciente sobre sua própria vida.
“As pessoas precisam entender que os cidadãos são diferentes, têm livre arbítrio, têm necessidades, e eles podem e devem ser trabalhados para que passem por certos processos de conscientização e que cheguem à tomada de decisão por eles mesmos”, sustenta Marisa Helena.
Outro problema levantado pelos especialistas é o fato de o governo não ter ouvido a sociedade civil organizada sobre o tema quando as novas normas para a política de saúde mental foram editadas. É o que afirma, por exemplo, o psicológo Lucio Costa, da Renila.
“As medidas tomadas não passaram por uma discussão mais ampla, principalmente no controle social, e o impacto dessa mudança tem como objetivo a preocupação não com o cuidado das pessoas, mas [o cuidado] em atender ao interesse de um mercado econômico que sempre lucrou no país segregando pessoas”, aponta Costa, em referência aos hospitais psiquiátricos da rede privada, que representam cerca de 70% do total de unidades com essa especialidade no país.
Governo Bolsonaro
O psicólogo da Renila assinala ainda que as normas editadas no final de 2017 se comunicam também com a chamada “Nova Política de Saúde Mental”, editada pelo governo de Jair Bolsonaro (PSL) no mês passado. Costa afirma que os dispositivos do governo Temer “abriram a agenda de desmonte na área”, que estaria agora em fase de aprofundamento sob a atual gestão federal.
Por exemplo, o governo Bolsonaro alterou diretrizes e passou a liberar, para o Sistema Único de Saúde (SUS), a compra de aparelhos usados para eletrochoque, a internação de crianças em hospitais psiquiátricos e também a abstinência para o tratamento de pessoas com dependência em relação a álcool e outras drogas. Tais medidas são apontadas pelos especialistas como um retrocesso na área de saúde mental.
“Elas se retroalimentam. É um conjunto de situações que precarizam a perspectiva do atendimento comunitário pra priorizar o atendimento na lógica empresarial, de quem ganha com isso”, analisa.
Edição: Daniel Giovanaz