Associações que representam anistiados e anistiandos políticos denunciaram nesta quarta-feira (3), na Câmara dos Deputados, uma nova espécie de perseguição da qual têm sido vítimas. Os ataques, que começaram em 2016, durante o governo Temer (MDB), se intensificaram no governo de Jair Bolsonaro (PSL), segundo eles, e têm como alvo a Comissão de Anistia.
O tema foi discutido em uma audiência pública da Comissão de Direitos Humanos da Câmara, convocada pelo presidente do colegiado, Helder Salomão (PT). Mais de 5 mil pessoas foram exiladas e 434 foram assassinadas, segundo a Comissão Nacional da Verdade (CNV), durante o regime que durou de 1964 a 1985.
Segundo anistiados e anistiandos, o funcionamento da Comissão de Anistia tem sofrido alterações desde 2016, quando as reuniões de seu Conselho, responsável pela avaliação dos pedidos de reparação, foram consideradas irregulares. Ainda na gestão Temer, os pedidos passaram a ser avaliados pela assessoria jurídica do Ministério da Justiça, pasta à qual a Comissão era vinculada, e o número de negativas aumentou.
Sob governo Bolsonaro, o órgão passou à alçada do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos. A chefe da pasta, Damares Alves, antecipou que negará pedidos em massa e revisará pedidos de anistia já garantidos.
Presidente da Associação dos Metalúrgicos Anistiados e Anistiandos do ABC Paulista, João Paulo de Oliveira rechaçou as posições de Alves, que sugeriu que havia uma "caixa-preta" na Comissão e que as indenizações precisavam de uma "varredura".
“A todo momento ela joga coisas na imprensa de forma insana. Nós queremos saber de qual caixa-preta ela está falando. Nas décadas de 1960 e 1970, nós tínhamos que esconder. Veio a nova Constituição e não temos nada a temer, nada a a esconder. Tudo que é decidido na Comissão é público”, afirmou.
O ex-sindicalista também criticou de forma veemente a ideia de que os autores de pedidos negados na Comissão só tenham direito a um recurso -- antes do governo Bolsonaro, o número era ilimitado. Oliveira acrescenta que a proposta de reforma da Previdência que tramita na Câmara Federal obrigaria anistiados a escolher entre receber os benefícios previdenciários e a indenização pela perseguição política.
Função
Os juristas presentes na audiência reafirmaram a posição de que não se deve confundir indenização com verba previdenciária. A primeira diz respeito a danos morais, enquanto a segunda se refere às contribuições como empregados.
Eneá de Stutz e Almeida, professora de Direito da Universidade de Brasília (UnB) e ex-conselheira da Comissão, afirma que os retrocessos afetam justamente em um dos pontos centrais da Anistia: o reconhecimento do erro pelo Estado, considerado até mais importante do que a indenização financeira.
Desde o final de 2018, o Estado deixou de emitir pedidos oficiais de desculpas aos anistiados. Para a jurista, a medida simboliza que o Brasil deixa de reconhecer os perseguidos como vítimas e, implicitamente, abre mão do compromisso de que regimes autoritários não voltem a ascender no país.
A professora explicou ainda que a avaliação de pedidos de anistia por órgãos externos ao Conselho da Comissão -- seja a assessoria do Ministério da Justiça, seja a Advocacia-Geral da União – viola a “competência exclusiva” do órgão para julgar a questão, determinada pelo artigo 8º do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias.
"Toda e qualquer afirmação, e infelizmente já há algumas nesse sentido por parte de autoridades, de que é possível e talvez necessário [fazer] alteração no sentido de modificar a atuação da Comissão de Anistia ou de extingui-la, não pode acontecer. O fundamento para a existência da Comissão é constitucional", disse.
Na visão dela, trata-se de um direito fundamental, que não pode ser modificado nem mesmo por uma Emenda à Constituição.
Na atual gestão do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, o número de membros da Comissão caiu de 20 para 9. Deborah Duprat, integrante da Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão do Ministério Público Federal (MPF), entende que as medidas de Alves contrariam a finalidade da Constituição.
“A orientação é que essas comissões tenham composição que compreendam direitos humanos. Uma das características é a neutralidade. Principalmente, integrantes do aparato militar não podem fazer parte, e não podem porque foram os autores das violações. Mesmos as gerações atuais estão inseridas em uma corporação que tende a se defender”, apontou.
Todas indicações de Damares Alves para a Comissão de Anistia, lembrou Duprat, foram militares, da reserva e da ativa, ou indivíduos com histórico contrário à concessão de direitos aos perseguidos políticos.
Edição: Daniel Giovanaz