As comissões que lidam com o resgate da memória e a reparação de vítimas do regime militar já sofrem os impactos da transição de governo. Em 2015, sob a presidência de Michel Temer, a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, comandada pela procuradora da República Eugênia Augusta Gonzaga, conseguiu, por “iniciativa própria”, emendas parlamentares para suprir as buscas e perícias necessárias. Mas agora o órgão lida com o “silêncio ensurdecedor” do governo de Jair Bolsonaro, que há 3 meses não sinaliza quando ou mesmo se pretende liberar os recursos que garantem a continuidade dos trabalhos.
Desde o início do ano, aliás, as pautas que envolvem a Ditadura Militar estão na mira do Ministério de Direitos Humanos, chefiado por Damares Alves. A titular tem sob sua autoridade a Comissão de Anistia, que analisa os pedidos de indenização das vítimas do regime e que, sob os governo Lula e Dilma, também investia em projetos de Memória e Justiça de Transição que foram interrompidos com o impeachment.
Em entrevista à Istoé, Damares ameaçou acabar com a Comissão de Anistia, estabelecendo “um momento para o fim das reparações”, pois “o regime militar acabou há 35 anos”. Mas o fato, segundo Gonzaga, é que os trabalhos de ambas as comissões estão longe de acabar.
“Os corpos continuam ocultos, ninguém revela onde foram enterrados. As famílias querem e precisam de respostas. A Comissão [Sobre Mortos] não vai terminar enquanto não houver essa revelação. Já a Comissão de Anistia (…), também concordo que em algum momento tem de encerrar seu trabalho. Só que ainda há mais de 20 mil processos para serem analisados”, afirmou a procuradora ao GGN.
Criada por lei em 1995, a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos nos seus primeiros anos se empenhou no envolvimento com famílias das vítimas. Presidente da Comissão desde o fim de 2014, Gonzaga e sua equipe deram “efetividade” às buscas e lutaram para contornar um problema histórico: a falta de orçamento.
Ela falou ao GGN, nesta semana, sobre como funcionavam as comissões sob as gestões Dilma Rousseff, Michel Temer e agora, sobre as interrupções impostas pelo governo Bolsonaro.
GGN: Como era o trabalho da Comissão durante o governo Dilma, depois no governo Temer e agora no governo Bolsonaro?
Eugênia Gonzaga: Eu fui nomeada para a Comissão sobre Mortos e Desaparecidos Políticos já no final de 2014, então peguei pouquíssimo tempo de Dilma como presidente da República. O que sempre notei é que a Comissão que presido nunca teve a mesma estatura e independência da Comissão de Anistia.
Apesar de também ser uma Comissão criada por lei, cujos membros são nomeados diretamente pelo presidente da República, a Comissão Sobre Mortos acabou sempre a reboque dos ministros de Direitos Humanos, e isso foi muito ruim porque ela não conseguiu atuar com a independência necessária.
Quando entrei a situação ainda era muito parecida com isso, mas havia uma disposição do Ministério de Direitos Humanos em dar efetividade a essa Comissão, de mudar sua história. Ela foi criada em 1995, teve uma atuação forte nos primeiros anos com o envolvimento das famílias de vítimas, mas elas não conseguiram a autonomia para fazer buscas, não havia orçamento, e essa situação durou até 2014. A ideia com minha nomeação era reconhecer esse papel de protagonista nas buscas de mortos e desaparecidos, porém ainda sem orçamento.
Com Temer o que aconteceu foi que, por querer se afirmar em outros aspectos, o governo deixou a Comissão bastante à vontade para obter emendas parlamentares e dar continuidade nas buscas. No caso Perus, por exemplo, conseguimos fazer buscas em outros estados não por que o governo Temer apoiava a pauta, mas por iniciativa própria da Comissão, com emendas parlamentares. Não havia orçamento do Executivo, mas pelo menos o governo não segurou nenhum trabalho. Por outro lado, no governo Temer a Comissão de Anistia ficou parada no gabinete do então ministro da Justiça Torquato Jardim. Foi totalmente desmobilizada nesse período.
Agora, esse governo [Bolsonaro], ele se importa com o tema da anistia. Mas se importa ao contrário: não quer que se atue no tema. O novo governo não é apoiador. Ao contrário disso, a ministra Damares vem caçando decisões da Comissão de Anistia. Já a Comissão Sobre Mortos segue funcionando com poucos membros atuantes. Mas todo nosso orçamento – dinheiro obtido por meio de emendas parlamentares – está bloqueado por motivos burocráticos. Falta apenas a assinatura da ministra para liberar as verbas para contratação de peritos e dar sequência nas buscas. Até hoje ela não liberou. A gente já está há três meses com contratos vencidos, com contratos que vencem agora em abril, e não há notícia da possibilidade de liberação.
A ministra Damares Alves questiona a importância dos projetos tocados pela Comissão de Anistia relacionados à memória e justiça de transição. O que acha disso?
Isso vem desde o governo anterior. Torquato também já exercia esse papel de bloquear todos esses projetos, não deu sequência a nada. O principal projeto da Comissão de Anistia que está parado é uma perda imensa de dinheiro público, o Memorial de Anistia Política, em Belo Horizonte, um prédio que está pronto mas fechado.
O que acha de a Comissão agora ser presidida por um advogado ligado aos Bolsonaro que tem histórico de atuação contra anistiados?
Acho que é uma espécie de improbidade porque não pode haver uma Comissão, criada por lei, e a ministra escolher para ela alguém que é contra seus objetivos. Isso é uma forma indireta de descumprir a lei. Se a ministra ou o governo são contra a Comissão de Anistia, que trabalhem para revogar a lei. O que não podem é nomear membros com a finalidade explícita de frustrar os trabalhos, uma forma de fazer com que a Comissão não cumpra o seu papel.
Qual seria o impacto do eventual fim da Comissão de Anistia e da Comissão Especial Sobre Mortos e Desaparecidos Políticos?
São [comissões regidas por] leis bem separadas. Falar no final da Comissão de Anistia não tem exatamente a mesma conotação que teria com a Comissão Sobre Mortos e Desaparecidos, pois a gente ainda tem um trabalho muito inconcluso na parte de revelação do destino dos corpos dos mortos e desaparecidos, para que as famílias possam ao menos realizar cerimônias simbólicas de sepultamento. É um objeto muito amplo e muito difícil de ser executado. Se o atual governo não der apoio às contratações de perícia, simplesmente a questão vai continuar inconclusa, sendo que tudo isso poderia ter sido feito há mais de 10 anos.
A Comissão Sobre Mortos realmente não deveria estar funcionando 55 anos depois [do golpe] da Ditadura. O problema é que os corpos continuam ocultos, ninguém revela onde foram enterrados. As famílias querem e precisam de respostas. A Comissão não vai terminar enquanto não houver essa revelação.
Já a Comissão de Anistia indeniza pessoas atingidas pelos atos da Ditadura. Também concordo que em algum momento ela tem de encerrar seu trabalho. Só que ainda há mais de 20 mil processos para serem analisados, e não vai ser simplesmente negando todos esses pedidos que a ministra Damares vai encerrar. Tem de analisar caso a caso, é para isso que existe a Comissão. A ministra não pode decidir sozinha sobre esses processos porque contraria o que está na lei 10.559/2002.
Por que a ministra insinua que pode haver fraudes e diz que falta transparência nos pedidos de indenizações deferidos. Que tipo de fraude poderia haver?
Eu discordo totalmente que houve fraude porque todos os julgamentos da Comissão de Anistia se deram em sessões públicas, marcadas no Diário Oficial e qualquer pessoa podia entrar e acompanhar o julgamento. Eu não sei como é que poderia ter uma transparência maior, se todo caso deferido seguia os critérios da Lei da Comissão de Anistia.
Se houve indenizações em valor alto, nada impede que ele possa ser questionado individualmente. O que não pode é o que acontecendo, dela [Damares] passar uma régua e começar a negar todo pedido. Há uma série de casos que nunca foram reconhecidos, como é a situação dos povos indígenas, pendentes de análise.
Edição: GGN