A violência se tornou um instrumento da "democracia"
Por Vijay Prashad*
Você abrirá esta carta e a lerá apenas no dia em que Luiz Inácio Lula da Silva acordará na sede da Polícia Federal, em Curitiba, no dia 7 de abril, aniversário de um ano de seu encarceramento. Você seguirá adiante com seu dia, talvez lendo partes desta carta, talvez guardando-a para ler mais tarde. Lula provavelmente vai comer o que comeu no primeiro dia de prisão: pão com manteiga e café. Ele saberá que em todo o planeta haverá manifestações em seu nome. "Lula Livre", as pessoas vão gritar. Você não está sozinho, elas vão dizer. Você não está sozinho. Isso lhe dará esperança.
Há algumas semanas, Lula enviou uma "carta aos militantes", na qual dizia ter sido "preso injustamente". Na cela de sua prisão, recebeu o sociólogo Jessé de Souza, autor de A Elite do Atraso: da Escravidão à Lava Jato. O que colocou Lula na prisão foi a Operação Lava Jato, uma investigação sobre corrupção que engoliu muitos políticos (leia mais em nosso quinto dossiê, Lula e a Batalha da Democracia).
A figura mais recente a ser presa foi o ex-presidente Michel Temer, que assumiu o manto da elite contra Lula e sua sucessora Dilma Rousseff. Temer foi acusado de estar no centro de uma rede criminosa que recebeu quase 2 bilhões de reais em propinas. A escala de sua corrupção é épica. Lula foi acusado de aceitar propinas no valor de 32 milhões de reais - acusação baseada na afirmação de um homem que acusou Lula, a fim de reduzir seu tempo de prisão. Nem a escala do crime nem a evidência ofereciam confiança no sistema judiciário brasileiro. Não admira que 464 juristas brasileiros tenham assinado uma carta, no mês passado, contra a falsa natureza das evidências e do processo judicial contra Lula. Como escrevi em minha coluna esta semana, o juiz Sergio Moro processou o ex-presidente como se ele fosse o homem mais corrupto do planeta. Moro agora se juntou ao gabinete do governo de Jair Bolsonaro. A corrupção quid pro quo de um juiz que torna possível uma vitória presidencial, eliminando Lula da corrida e assumindo um emprego no gabinete do novo presidente não levantou suspeitas suficientes.
Lula permanece preso a um ano. Temer foi liberto em quatro dias.
O livro de Jessé de Souza sugere que a longa história de escravidão do Brasil (de 1532 a 1888) gerou profundas marcas de um hediondo racismo e privilégio oligárquico para a cultura brasileira. As elites não apenas desprezavam Lula por seu histórico de classe (ele passou de vendedor de rua a operário fabril), mas o odiavam por sua fidelidade aos afro-brasileiros e às comunidades indígenas. O governo Lula teve que lutar contra 500 anos de ódio de classe e raça sedimentado, além do ressentimento conservador contra a luta pela igualdade das mulheres e pela justiça social. Lutou contra a fome com tanto esmero quanto lutou contra a desigualdade racial, a misoginia e a transfobia.
Souza argumenta que a "elite decadente" teve que se vingar, o que levou a dois processos. Primeiro, um “golpe legislativo”, o impeachment profundamente falho de Dilma, em 2016. Segundo, um “golpe judicial”, com o uso da investigação Lava Jato para remover Lula da eleição presidencial de 2018 (que liderava as pesquisas). Importava muito pouco que essa "elite decadente" tivesse que entregar o país a um homem com uma mentalidade fascista - Bolsonaro. Este, ao votar contra Dilma no "golpe legislativo" de 2016 homenageou o torturador coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra (que havia morrido no ano anterior).
A repulsa de ver Bolsonaro fazer comentários desagradáveis e sexistas contra Dilma e em seguida homenagear um homem que tinha sido uma parte fundamental da terrível e longa ditadura militar do Brasil, deveria ter ligado o alarme em pelo menos uma parte dos ricos. Mas estes não têm nenhuma tradição liberal, mas sim uma ideologia decadente de uma velha classe proprietária de escravos que é a janela pela qual enxerga o mundo.
Uma semana antes do primeiro aniversário de Lula na prisão, o Brasil passou pelo 55º aniversário do "dia que durou 21 anos". Bolsonaro, que havia homenageado o torturador de Dilma, sugeriu que o aniversário do golpe militar fosse celebrado e não criticado. Em 2008, Bolsonaro - que passou este aniversário apropriadamente em Israel - disse que o problema da ditadura militar é que "torturou, mas não matou". Um novo documento dos arquivos italianos mostra que, nos primeiros dias do golpe de 1964, os militares - com a plena conivência do governo dos Estados Unidos - prenderam pelo menos 20 mil pessoas (não os 5 mil anteriores). É provável que o número de mortos também tenha sido esvaziado. Quando Camilo Tavares e Karla Ladeia lançaram seu documentário O Dia que Durou 21 Anos, em 2012, eu assisti assombrado a história desse brutal golpe apoiado pelos EUA contra um governo democrático, um golpe que durou de 1964 a 1985, e foi enterrado. Quão pouco sabemos das coisas feias que estão bem na nossa frente.
O Dia que Durou 21 Anos - Documentário from Lavoura Santa on Vimeo.
Foi o movimento popular - do qual Lula foi um importante líder - que derrubou essa ditadura da "elite decadente", em 1985, e foi o povo quem exigiu alívio das penas sofridas em 500 anos de governo oligárquico. Impossível derrubar a miríade de problemas do Brasil em poucos anos, em algumas décadas. No entanto, quaisquer ganhos que foram feitos tiveram que ser derrubados, incluindo as políticas de combate à fome e medidas de proteção ao meio ambiente. Os olhos de Bolsonaro, junto com os de muitas corporações internacionais, estão na Amazônia (para saber mais, veja nosso mais recente dossiê sobre os perigos para a Amazônia brasileira).
E ainda pior, qualquer que fosse a atmosfera democrática criada, deveria ser revertida. O barulho do racismo e da misoginia tenta anular tudo o que é sensível no mundo, a elite se acha no terrível direito de reivindicar a natureza e o trabalho humano para si, dando sentença de morte a iniciativas como Bolsa Família e Brasil sem Miséria. As eleições seguem, e elegeram Bolsonaro, mas estão esvaziadas. Esse é um escândalo global. Em nome da democracia, a elite mostrou-se generosa. A grande quantidade de dinheiro, a intimidação dos eleitores, o uso das mídias sociais (notadamente o WhatsApp) para criar confusão se tornou normal em países como Brasil, Estados Unidos, Argentina, Índia (sobre as eleições indianas, recomendo a edição atual do Frontline, e sobre a deformação do processo eleitoral, leia minha resenha [em inglês] do novo livro do indiano Prannoy Roy).
A violência se tornou um instrumento da "democracia". O uso homeopático dela contra ativistas é comum de um extremo a outro do planeta. Nos acostumamos com a violência contra os militantes políticos, sendo o próprio cinismo uma arma da elite contra a esperança. O assassinato do comunista sul-africano Chris Hani, em 1993, pouco antes de o país emergir do apartheid, era uma mensagem forte de que a "elite decadente" da África do Sul não toleraria nada além de seu controle sobre a riqueza e os recursos do país. Permitiria "democracia", desde que esta não desafiasse seus ganhos.
Depois da morte de Hani, Nelson Mandela fez seus melhores discursos. "Houve muitas mudanças, e as negociações começaram", disse Mandela, "mas para o negro comum desse país, o apartheid está vivo e passa bem". Para o "negro comum" - o afro-brasileiro - um tipo especial de apartheid brasileiro também está vivo. "Queremos construir uma nação livre de fome, doenças e pobreza, livre de ignorância, falta de moradia e humilhação, um país em que haja paz, segurança e empregos", disse Mandela ao homenagear Hani.
Essa esperança é uma posição hoje. Ela fornece as explosões de energia nos interstícios da crueldade. A formação do Partido Socialista dos Trabalhadores Revolucionários na África do Sul, esta semana, ocorre ao mesmo tempo em que, na Argélia, as iniciativas do presidente Abdelaziz Bouteflika abrem um novo processo para seu país, e a cidade turca de Tunceli elege Fatih Mehmet Maçoglu, do Partido Comunista da Turquia, para prefeito. Nessa eleição, o partido governista de Recep Tayyip Erdoğan perdeu nas três maiores cidades da Turquia (graças em grande parte à força de esquerda pró-curda, a HDP). São pequenos gestos contra a "elite decadente", que antecipam ações maiores. É o que Lula verá quando olhar pela janela no dia 7 de abril. Crueldade, sim, mas também esses saltos de esperança otimista.
*Vijay Prashad é historiador e jornalista indiano. Diretor Geral do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social.
Edição: Luiza Mançano