ATAQUE

Agricultores apontam uso de agrotóxico como arma química em fazenda de Daniel Dantas

Ataque de glifosato a sem-terra acampados em fazenda do banqueiro em 2018 tem impactos na saúde até hoje

|
O atual acampamento Helenira Rezende é terceiro levantado pelos agricultores desde 2009, quando foi iniciada a ocupação da fazenda Cedro
O atual acampamento Helenira Rezende é terceiro levantado pelos agricultores desde 2009, quando foi iniciada a ocupação da fazenda Cedro - Roberta Brandão/Agência Pública/Repórter Brasil

Quando chegou ao km 55 da rodovia BR-155, João de Deus Melo Oliveira, o “irmão João”, logo percebeu o cheiro empesteando o ar: seus olhos lacrimejaram e, das narinas à garganta, um ardor se espalhou. Era o final da tarde do dia 17 de março de 2018 e João de Deus e outros agricultores retornavam ao acampamento Helenira Rezende, na zona rural do município de Marabá, sudeste do Pará, depois de uma visita à cidade. “O veneno estava tão forte que dentro do carro a gente sentiu”, conta o agricultor de 56 anos.

Durante toda a tarde, uma pequena aeronave fez sobrevoos na região. Ao redor dos barracos, as plantas murcharam; a urtiga amarelou. E, no dia seguinte, João de Deus sentiu um “desânimo na carne” que o acompanha até hoje.

Esses foram alguns dos primeiros sintomas relatados pelas famílias do acampamento, cuja ocupação foi iniciada no dia 1º de março de 2009 nas terras do complexo Cedro, área reivindicada pela Agropecuária Santa Bárbara Xinguara S.A., empresa que pertence ao banqueiro Daniel Dantas.

A pulverização gerou um inquérito policial que concluiu não ter ocorrido irregularidade na aplicação do agrotóxico. O caso também chegou ao Ministério Público do Meio Ambiente de Marabá, que arquivou o procedimento por falta de provas.

Mas, para os agricultores, não há dúvida de que se tratou de um “ataque químico”. Eles dizem que os sintomas observados naquele dia e as sequelas relatadas até hoje são resultado dos agrotóxicos pulverizados pela aeronave. As cerca de 150 famílias que se dizem vítimas do ataque e a Agropecuária Santa Bárbara, responsável pela pulverização, estão em lados opostos em uma disputa judicial que completou dez anos em março de 2019. Segundo os acampados, que querem a terra para reforma agrária, parte da área foi grilada.

Procurada diversas vezes por telefone e por e-mail, a Agropecuária Santa Bárbara não retornou até a publicação desta reportagem.

Esse não é o único relato do tipo. Desde 2013, três acampamentos de agricultores sem-terra foram atacados com pulverização aérea no sudeste do Pará, assim como a comunidade quilombola do Tiningu, município de Santarém, no oeste do estado – o que sugere uma estratégia deliberada dos fazendeiros da região na disputa pela terra.

“Nunca mais fiquei bom”

Entre a empresa e os acampados, nas terras do complexo Cedro, não há cercas. Do lado direito da BR-155 no sentido Marabá, estão as barracas – algumas revestidas de palha seca e com paredes de madeira reutilizada; outras cobertas com pedaços de telhas de zinco e lonas azuis sobre o chão de terra batida. Já do lado esquerdo da estrada, alguns roçados de abóbora, melancia, hortas com coentro e cebolinha. “Nesse local, estamos reiniciando a plantação. Com o envenenamento, degradou solo, matou planta”, explica a acampada Wildianei Gomes, de 25 anos. Do acampamento aos roçados, a distância pode ser de até 13 quilômetros. A produção é destinada à alimentação das famílias.

Segundo testemunhas, de vários pontos do acampamento dava para ver os sobrevoos da aeronave, que fez a pulverização na tarde de 17 de março. Um vídeo obtido pela Pública e Repórter Brasil mostra o sobrevoo próximo ao acampamento.

“O voo era baixo, baixo mesmo. Era tão baixo que, quando chegava na linha da torre, ele subia um pouquinho pra passar por cima”, conta Vicente Pereira da Silva, agricultor de 60 anos, apontando para a torre de transmissão de energia paralela à BR-155. “Passou jogando veneno aqui. Aí rodava lá pertinho [da torre] e o vento puxava pro acampamento.”

Assim como outros moradores, ele começou a sentir os sintomas imediatamente: reações alérgicas, espirros, inflamação na garganta e dificuldades para respirar. “Apareceu asma em mim depois de velho, que eu nunca tive isso. E, agora, por nada eu tô cansado, gripado toda vida, nunca mais fiquei bom”, relata Vicente, que está no acampamento desde 2009. Ele conta que havia se cadastrado, na sede do Incra em Marabá, como beneficiário de reforma agrária, mas nunca obteve resposta do órgão. Quando soube do novo acampamento, resolveu se juntar aos sem-terra, que recebem apoio do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST).

“O avião passava borrifando até em cima, bombardeou mesmo o pessoal. As nossas plantas, morreu, borbulhou as folhas. Então, botaram mesmo como para dizer assim: eles se intoxicando, eles vão embora”, diz João de Deus, que, naquele dia, sentiu febre alta e dor de cabeça.

O agricultor conhece a região – e sua história pessoal se confunde com a formação de Marabá. Trabalhou na coleta de castanha-do-pará durante a década de 1980 e, depois, peneirando minério em siderúrgicas que produziam ferro-gusa. Com o fechamento das guseiras marabaenses a partir de 2008, ficou desempregado – uma narrativa comum entre os acampados. “Mas eu vim da terra, nasci e fui criado na terra. Meu sonho sempre foi ter uma terra”, diz ele.

Entre os acampados entrevistados pela reportagem, desde o dia da contaminação nenhum havia recebido atendimento médico, embora tenham buscado a rede pública e denunciado às autoridades o ataque.

No dia seguinte à pulverização, Luzinete Nunes, 43 anos, que está no Helenira Rezende desde 2014, também sentiu ânsia de vômito, enxaqueca, queimação na pele e pigarro. “Passei bastante tempo com dor de cabeça e agora tenho sentido muita tosse, uma tosse, assim, seca”, conta ela, que antes de chegar ao acampamento trabalhava em um restaurante no município de Redenção, no sul do Pará. Luzinete também não teve atendimento médico, mas as famílias com sintomas mais acentuados buscaram o hospital municipal de Eldorado do Carajás, que fica a 36 km do acampamento.

Porém, no hospital o grupo não recebeu o devido atendimento. É o que consta no relatório produzido pelo projeto Justiça Restaurativa e pela Clínica de Direitos Humanos da Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará (Unifesspa), convidadas pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) no Pará a acompanhar diligências ao acampamento.

“Mesmo com os sintomas visíveis [febre, dores, tonturas e formigamentos], os médicos não pediram nenhum exame. Muitas pessoas ficaram muito doentes, mas não procuram o hospital, pois, quando dizem que são da Cedro [área do acampamento], são tratados de forma indiferente e discriminatória”, diz o documento.

Como remédio, leite

Contra o cheiro que se espalhava pelo ar e os sinais de envenenamento, alguns moradores procuraram se proteger em seus barracos improvisados, que não possuem água encanada e, na maioria das vezes, nem mesmo fossas sépticas. Outros acampados, tentando limpar seus corpos, recorreram à água dos poços. Mas o leite foi o principal remédio – uma receita popular para cortar efeitos de envenenamento. “Tomei o leite, fez diferença. Cortou mais o efeito. Nós tava lá na guarita. Tava sentindo o cheiro forte do veneno”, conta Joana Fermina da Silva, 62 anos, a dona Joana, que teve de ser acudida pelos vizinhos ao sentir enjoo e “uma gastura no estômago”.

Copos de leite também foram o único remédio encontrado por Rosana Ferreira da Silva, 28 anos, para amenizar os sinais que se espalhavam pelo corpo de Eva, sua filha de 3 anos. “Ela sentiu diarreia. Ela topou na plantação de tomate e o rosto dela inchou. Ficou bem inchadinho, vermelho”, disse Rosana, apontando para a filha em seu colo. “Infernal”, continuou ela. “Eu senti dor de cabeça, tontura e uma ardência no rosto.”

Os sinais se entranharam dentro e ao redor do acampamento. O mato do chão murchou e as plantações dos acampados ficaram com as folhas queimadas. Formigueiros secaram. E até pequenos animais morreram naqueles dias, segundo relato dos moradores. “Era sapo, pássaro, aquele anu-preto. A gente conseguiu localizar um bando inteiro de anu morto”, descreve Luiz Bento Pereira, 33 anos, que está no acampamento há dez anos. “Não era pra matar esses animais. É por isso a gente tem a suspeita de que eles colocaram esse veneno num outro herbicida”.

Chuva de glifosato

Bento narra o que viu. Ele acompanhou, no dia 21 de março de 2018, a visita de técnicos da Faculdade do Campo, da Unifesspa, à pista de pouso da fazenda Cedro, de onde partiu o avião que despejou o agrotóxico. A faculdade foi convidada pela OAB e pela Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa do Estado do Pará para elaborar um relatório técnico cujo objetivo era “observar os efeitos da aplicação de agrotóxicos na fazenda Cedro e os possíveis efeitos sobre o acampamento Helenira Rezende”.

No local, foram encontrados vasilhames de ZAPP QI 620 e ASSIST. Esses são os nomes comerciais de glifosato potássico e óleo mineral. O glifosato potássico é um herbicida usado para controle de vegetação. Já o óleo mineral é utilizado para quebrar a tensão superficial da água, aumentando a aderência do produto nas plantas.

Herbicida mais utilizado no Brasil, o glifosato pode ser aplicado em 23 culturas diferentes, da soja ao cacau, de acordo com dados da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). Atualmente, o produto passa por consulta pública para reavaliação – processo de revisão toxicológica de ingredientes ativos com suspeitas de riscos à saúde. Segundo a Anvisa, que conduz a reavaliação, o maior risco associado ao uso do glifosato é para trabalhadores rurais e pessoas que circulam nas áreas de lavoura. A Agência Internacional de Pesquisa sobre o Câncer associa o químico ao surgimento da doença, enquanto a Agência de Proteção Ambiental dos Estados Unidos avalia que o produto pode causar problemas nos rins e dificuldade de reprodução.

Os sintomas relatados por moradores, as embalagens dos produtos encontradas na fazenda Cedro e a direção do vento no momento da aplicação foram os indícios necessários para que o relatório da Unifesspa recomendasse uma investigação sobre a qualidade do solo, da água e da concentração utilizada na pulverização, além dos registros mensais das atividades da aeronave.

No dia 12 de abril, quase um mês depois da pulverização, o Ministério Público de Marabá realizou uma “escuta social” no acampamento para ouvir as vítimas. “Nos foi relatado o nome das pessoas que estavam apresentando sintomas. Dentre as pessoas ouvidas, identificamos 29 pessoas que apresentavam queda de cabelo e dor de cabeça, por exemplo”, explica a promotora Jane Cleide Silva Souza, da região agrária do Ministério Público de Marabá.

A ata da escuta social, analisada pela reportagem, recomendou a comunicação do caso ao Ministério Público de Eldorado do Carajás no intuito de garantir atendimento médico em dias predeterminados às pessoas da lista. Além disso, comunicava o caso à Delegacia de Crimes Agrários (Deca) para que os trabalhadores rurais fossem submetidos a testes toxicológicos. Por fim, a promotora Jane Cleide encaminhou o procedimento à Promotoria Ambiental de Marabá para apuração de crime ambiental.

Apesar do relatório, a promotora Josélia Leontina de Barros Lopes, do Ministério Público Ambiental de Marabá, recomendou o arquivamento da ação penal por falta de provas. Para ela, a aplicação teria cumprido as diretrizes da Lei 7.802/1989, que regula o uso desses produtos, não havendo irregularidade na pulverização. Para chegar a tal conclusão, a promotora utilizou dois tipos de laudos do Centro de Perícias Científicas Renato Chaves (CPCRC): perícia de lesão corporal e perícia de dano ambiental.

“No âmbito do MP e da Polícia Civil foram arquivados por não haver comprovação de crime ambiental”, informou a promotora Josélia Leontina.

Agricultores “causaram essa situação”, diz promotora

A Pública e a Repórter Brasil tiveram acesso a dois laudos da perícia de lesão corporal feita em agricultores que denunciaram ter sido expostos ao agrotóxico. Nos dois casos, das nove perguntas dos médicos-legistas, oito aparecem com a resposta “prejudicado”, isto é, quando não se pode atestar uma conclusão. Um dos quesitos pergunta se a ofensa corporal ou à saúde foi produzida por fogo, asfixia, explosivo, meio cruel ou veneno. Em ambos os casos, a resposta foi “prejudicado”.

A juíza embasou sua decisão no fato de que os sem-terra fizeram um protesto após a fumigação aérea. Decidiram reocupar uma área da fazenda Cedro a que eles tinham se comprometido a não retornar, em acordo na Vara Agrária de Marabá.

“Deu aquele tumulto. E os trabalhadores juntaram: ‘Vamos ocupar de novo’”, conta Paulo Ferreira da Silva, o “irmão Paulo”. “Foi uma reação a essa contaminação. Voltamos e ocupamos a fazenda Cedro de novo, no mesmo ponto.”

Citando relatório policial já concluído pela Deca, a promotora Josélia Leontina reconhece que a intoxicação relatada pelos acampados pode ter ocorrido. Para ela, porém, a contaminação não foi resultado da pulverização do dia 17 de março, mas sim ocorreu nos dias 18 e 19, quando “os integrantes do acampamento retornaram à área da fazenda ‘Cedro’, descumprindo ordem judicial de reintegração de posse e assumindo o risco de se contaminarem”, escreveu.

O laudo pericial de dano ambiental, produzido pelo CPCRC, também embasa a recomendação da promotora. Segundo o documento, a perícia encontrou o produto a 1,3 quilômetros de distância do acampamento. “Neste caso o mesmo foi usado somente na área da fazenda Cedro e utilizado para fins a que se destina”, diz o texto.

“O que ficou configurado no final foi que as pessoas criaram essa situação para iniciar uma nova ocupação. Não houve, na verdade, esse contágio”, disse à reportagem a promotora Josélia Leontina. “Mas acontece que as pessoas tinham sido retiradas da área. Diante disso, criaram uma situação para justificar uma nova invasão.” Segundo ela, nas secretarias de Saúde de Marabá e Eldorado do Carajás, não foram confirmados quadros de intoxicação.

Em maio de 2018, a 3ª Vara Agrária de Marabá determinou nova reintegração de posse. Os sem-terra, então, levantaram o terceiro acampamento, novamente na fazenda Rio Pardo, onde permanecem até hoje.

Onde estão os laudos?

Os técnicos da Unifesspa apontam o oposto. O relatório da universidade diz que “a probabilidade de que pessoas com maior sensibilidade a produtos químicos tenham reações alérgicas ou outros sintomas é alta, mesmo que diante do reduzido contato com o produto”. O documento ressalta ainda que, considerando as condições meteorológicas do dia da aplicação, o relevo da área e a própria rodovia BR-155, que poderia funcionar como canal de circulação de vento, “o risco de deriva do produto é elevado”.

Indagada sobre esses indícios, a promotora Josélia Leontina disse que “o que uma pessoa da Unifesspa fala e não comprova não tem como levar em consideração” e, ainda, que levou em conta “o laudo do IML, que tem atribuição legal para isso”.

No curso das investigações, o CPCRC coletou amostras de urina dos moradores do acampamento para testes toxicológicos, que poderiam confirmar se os sem-terra foram contaminados pela aplicação do glifosato. A reportagem procurou o CPCRC em busca dos resultados, mas a assessoria de comunicação informou que o órgão estava impedido de fornecer os laudos, uma vez que eram de responsabilidade da Deca. O titular da Deca, delegado Waney Alexandre, disse que, como o inquérito já havia sido concluído e remetido à Justiça, ele não se pronunciaria sobre os resultados da investigação. Os sem-terra disseram nunca ter recebido os resultados dos exames.

Em uma nova tentativa, o CPCRC informou, por meio de nota, que “as amostras de urina dos moradores do acampamento Helenira Rezende foram enviadas para a sede do CPCRC, em Belém, em meados de 2018, para atender a solicitação da Delegacia de Crimes Agrários (Deca), após relatos de intoxicação na Fazenda Cedro, em Marabá”.

Os exames foram devolvidos à unidade de Marabá e estão em fase de conclusão, garantiu o CPCRC. “Com previsão de entrega, pelo perito responsável, à Deca em duas semanas, que deverá usar para a conclusão do inquérito instaurado sobre o caso”, completa a nota, ainda que a Deca tenha informado à nossa reportagem que o inquérito já foi concluído.

Agressões, tiros e grilagem

Fundada em 2005 e com sede em Palmas (TO), a Agropecuária Santa Bárbara possui outras quatro propriedades no sul do Pará além da Cedro, em Cumaru do Norte, Santana do Araguaia, Xinguara e São Félix do Xingu.

No decorrer de dez anos, houve repetidos conflitos nas terras em disputa do complexo Cedro, segundo o processo judicial analisado pela reportagem.

Funcionários da Agropecuária Santa Bárbara acusam os sem-terra de ameaças e roubos à fazenda. Os sem-terra, por sua vez, denunciaram em diversos momentos ameaças e agressões por parte de empregados da propriedade. O conflito culminou em junho de 2012, quando um ato do MST na BR-155 terminou com 12 feridos – incluindo uma criança que levou um tiro de raspão na cabeça.

Embora a Agropecuária Santa Bárbara Xinguara tenha solicitado reintegração de posse da área, nas audiências não conseguiu comprovar ser proprietária legal de toda a terra, segundo a promotora do Ministério Público estadual Jane Cleide Silva Souza, mas de apenas 70%.

O processo, então, tomou dois caminhos: um procedimento de compra e venda direta ainda em curso, intermediado pelo Incra, para fins de reforma agrária, referente a cerca de 70% das terras; e a contestação na Justiça dos 30% restantes, que são reivindicados pelos sem-terra como terra pública, segundo levantamento da defesa dos agricultores.

De acordo com os sem-terra, a propriedade estava em regime de “comodato”, cedida pelo governo federal ao empresário Benedito Mutran para a extração de castanha-do-pará. Depois, foi vendida ilegalmente à empresa de Daniel Dantas.

No curso do processo, com base em informações do Incra, foi identificado que a área ocupada pelas famílias compunha a fazenda Rio Pardo, que é “uma área pública federal”, segundo a promotora Jane Cleide. “O processo judicial agora segue. Dificilmente esse julgamento vai comportar essa área da Rio Pardo, que não é uma área privada.”

O Incra avaliou e fez uma proposta de compra da fazenda Cedro por R$ 39,2 milhões, incluindo a terra e as benfeitorias. Segundo o instituto, a propriedade a ser adquirida totaliza 7.287 hectares.

“É um valor muito alto. Com o novo governo, não tem esse recurso para compra e venda. A perspectiva de finalização desse negócio é muito remota”, diz José Batista, advogado da Comissão Pastoral da Terra (CPT), que representa os acampados.

“Nós não vamos embora”

Subindo um morro, no limite do acampamento Helenira Rezende, um agricultor sem-terra aponta para o barracão coberto de palha.

Paulo Pereira da Silva, o “irmão Paulo”, ex-operário e hoje professor, quer mostrar a escola da comunidade que, na Secretaria Municipal de Educação, é intitulada Escola Alto Alegre, mas entre os acampados é a Escola Roseli Nunes, uma homenagem à militante sem-terra assassinada na fazenda Annoni, no Rio Grande do Sul, em 1987. São duas salas multisseriadas – aquelas em que o professor leciona para várias séries do ensino fundamental ao mesmo tempo –, uma secretaria e um refeitório.

Para Francilene Ferreira dos Reis, 44 anos, também professora da escola, houve “ataque químico” – e ele está diretamente relacionado à disputa pela terra, o que resulta em vulnerabilidade social para os jovens. “Foi um ataque químico pra expulsar a comunidade. Eles fazem qualquer coisa pra gente abandonar a área. Eles usam qualquer artimanha pra gente desistir”, denuncia Francilene. “Depois de tantas atribulações que a gente já passou por causa desses despejos, a gente teve muita evasão [escolar] dos nossos jovens”, lamenta ela.

Paulo e outros moradores “se congregam” numa igreja da Assembleia de Deus erguida no acampamento, onde também congrega João de Deus, o “irmão João”. Para ele, a pulverização do glifosato foi intencional: uma forma de expulsar as famílias acampadas da fazenda. “Mas nós não vamos! Ficando uma, três, quatro pessoas, nós massifica o povo e torna ocupar. Eu sou brasileiro, sou patriota. Como é que eu sou brasileiro e não tenho um pedaço de terra pra trabalhar?”

Para promotora, uso de agrotóxicos em conflito de terra é “prática criminosa e sistemática”

Desde 2013, ataques de fazendeiros com agrotóxicos tem acontecido no Pará, segundo dados compilados pela Pública e Repórter Brasil.

O caso mais recente foi em Canaã dos Carajás, no sudeste do Pará.

Ocorreu entre os dias 22 e 23 de fevereiro de 2018, no acampamento Luís Inácio, pertencente a famílias sem-terra que ocupam a fazenda Marajaí. “Moradores do acampamento, na zona rural do município, teriam sido alvo de ataques criminosos de agrotóxico por avião bimotor”, explica a promotora Jane Cleide. “É uma situação que envolve terra pública federal, parte privada e parte pública federal. Uma área extremamente conflituosa com essa situação de ataque com agrotóxico.”

A pulverização feita pelo proprietário da fazenda atingiu o acampamento dos sem-terra, as plantações das famílias e os reservatórios de água, segundo o Ministério Público. Os sintomas se alastraram: irritação nos olhos e problemas respiratórios. “Eles produzem lá, tem abóbora, milho, feijão, arroz. Atingiu lá o açude deles, algumas cacimbas, solo e plantação”, conta o advogado Adebral Favacho, que representa o acampamento.

Para Favacho, o ataque por agrotóxico é mais uma forma de coação na lista de ameaças feitas por fazendeiros na região. “São vários ataques: toque de boiada pra cima da plantação, derrubada de barracas com trator de esteira, ameaça, rojões na direção dos agricultores”, elenca o advogado.

Segundo ele, após a pulverização foi registrado novo ataque: dessa vez, funcionários da fazenda teriam sido os responsáveis por atear fogo em uma ponte de madeira utilizada pelos agricultores. “São várias formas de coação visando expulsar as famílias da terra. Uma delas é envenenamento. Tem pistolagem, ameaça, denúncia por roubo de arame, roubo de gado. Isso é comum a várias situações voltadas para criminalização e expulsão das famílias.”

Em março do ano passado, a comunidade quilombola do Tiningu, na zona rural de Santarém, oeste do Pará, também foi alvo de um ataque com agrotóxicos – episódio que escancara a luta pela consolidação do território quilombola. Há 17 anos, o fazendeiro Silvio Tadeu dos Santos comprou uma área de aproximadamente 40 hectares. A área, contudo, está dentro das terras quilombolas e, nesses 40 hectares, reside Flaviano Santana, de 77 anos, um dos membros da comunidade, que fica a 45 km de Santarém.

Segundo ele, Silvio Tadeu seria o autor do ataque. “De 2017 pra cá, o Tadeu vem complicando para o Flaviano sair da área”, explica Benedito Mota, o seu Bena, presidente da Associação de Remanescentes de Quilombo do Tiningu (ARTiningu). “Quando foi em março de 2018, despejou o produto no roçado do Flaviano. Lá tinha milho, mandioca, melancia, café. Morreu tudo. Até a criação de galinha morreu”, lamentou seu Bena. Segundo ele, o produto mais usado na região é o glifosato. O agrotóxico se espalhou pelas casas, causando reações alérgicas nos moradores, “uma espirradeira doida”, diz o presidente da associação.

Os moradores denunciam também que o fazendeiro teria cortado a rede de água encanada implantada pela associação comunitária na nascente do igarapé do Tiningu.

Por telefone, o fazendeiro Silvio Tadeu respondeu às acusações com outras: “Flaviano é grileiro”. “Ali nunca foi uma área quilombola”, afirmou. Ao ser questionado sobre a acusação de uso irregular de agrotóxicos na comunidade, o fazendeiro não deu detalhes e disparou xingamentos contra nossa reportagem.

Em 2006, as 88 famílias receberam da Fundação Cultural Palmares (FCP) a certificação de remanescente de quilombo, e, em 15 de outubro de 2018, foi publicada portaria do Incra de reconhecimento e demarcação dos cerca de 3.850 hectares do território quilombola, mais um passo rumo à titulação definitiva. O conflito tramita na Justiça Federal em Santarém.

Há, ainda, um caso no município de Itupiranga, também na região sudeste do Pará. No dia 25 de maio de 2013, “herbicidas foram pulverizados de forma negligente na fazenda São Sebastião, de propriedade do senhor Reinaldo Zucatelli”, relatou a promotora Jane Cleide, que acompanha o caso. Segundo ela, a aplicação atingiu o assentamento Arapari, “dizimando plantações e contaminando rios e córregos”.

Em 2014, agricultores do assentamento Arapari ingressaram com ação de indenização por danos morais e materiais, obtendo uma liminar favorável no mês de abril. Dois anos depois, contudo, o proprietário da fazenda foi novamente acusado de aplicar agrotóxicos na área, segundo denúncia dos trabalhadores rurais feita em outubro de 2016. Com isso, o Ministério Público ingressou com ação civil pública ambiental, que está em curso.

“Pelos relatos dos demandados, aparentemente é uma prática sistemática”, avalia Jane Cleide, se referindo ao conjunto de casos espalhados pelo interior do Pará. “Mas não tem comprovação, porque não tem trabalho nessa área. Mas os relatos dos ocupantes apontam pra isso. Uma prática criminosa.”

“Em uma pesquisa realizada em Santarém, vimos que é uma estratégia do agronegócio. Eles diziam: ‘Ah, não vai sair, não? Peraí, que vou passar agrotóxico’. Temos vários depoimentos”, explica a educadora Vânia Carvalho, que faz parte da equipe do Fundo Dema, organização que atua no campo socioambiental junto a comunidades tradicionais da região. “Aquele camponês que se recusava a vender a terra, eles expulsavam com agrotóxico. Em Santarém, por exemplo, várias vilas camponesas desapareceram de 2000 pra cá. É uma estratégia: com agrotóxico, não tem quem aguente.”

Esta reportagem faz parte do projeto Por Trás do Alimento, uma parceria da Agência Pública e Repórter Brasil para investigar o uso de Agrotóxicos no Brasil. A cobertura completa está no site do projeto.

Edição: Agência Pública/Repórter Brasil