UM MÊS

"Quero que permaneça incompreensível", diz Maria Rita Kehl sobre Massacre de Suzano

Psicanalista aponta caminhos e saídas para Suzano, mas teme que a racionalização do atentado leve à naturalização

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |

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O massacre trouxe muitos questionamentos públicos sobre o que levaria os garotos a cometer a chacina, planejada com meses de antecedência
O massacre trouxe muitos questionamentos públicos sobre o que levaria os garotos a cometer a chacina, planejada com meses de antecedência - Foto: Miguel Schincariol/AFP

Há exatamente um mês, a Escola Estadual Raul Brasil, em Suzano, se tornava cenário de um atentado a tiros que chocou o país. Na manhã de 13 de março, Guilherme Talci Monteiro, de 17 anos, e Luiz Henrique de Castro, de 25 anos, ex-alunos do colégio, entraram no local e abriram fogo contra funcionários e alunos. 

Oito pessoas morreram, incluindo o tio de um dos atiradores, atingido antes do ataque à escola, e outras 11 ficaram feridas. Após a chacina, Guilherme atirou em Luiz Henrique e cometeu suicídio em seguida.

O massacre trouxe muitos questionamentos públicos sobre o que levaria os garotos a cometer a ação, planejada com meses de antecedência. O atentado foi inspirado no Massacre de Columbine, ocorrido há 20 anos e planejado por dois ex-estudantes da Columbine High School, nos Estados Unidos, que foram ao local fortemente armados e mataram 12 alunos e um professor. 

Em entrevista ao Brasil de Fato, a psicanalista Maria Rita Kehl analisa aspectos psicológicos e sociais presentes nas repercussões do atentado. 

“Nós estamos em um momento de violências e de incentivo à violência que me parece que a possibilidade de sofrermos traumas sociais aumenta”, afirma a especialista. “Não posso explicar o massacre sem conhecer essas pessoas, mas estamos em um contexto em que não é impossível que aconteçam outros”. 

Segundo ela, a figura política de Jair Bolsonaro e a propagação de suas ideias fomentam um clima de intolerância. “Existe recentemente, desde a campanha, uma incitação à violência e existe também, principalmente para os meninos, não para os homens adultos, mas para os adolescentes, essa confusão entre masculinidade e a capacidade de ser violento”, opina.

A psicanalista ressalta a importância da assistência psicológica para os alunos sobreviventes do Massacre de Suzano. “Imagina ser aluno de uma escola e ver seu colega tombar morto do seu lado e a ameaça na sua frente. Pensar que podia ser você também... é claro que eles precisam de assistência. Não só eles, a família deles. Não só de assistência individual, tem traumas que realmente cada um precisa falar do seu, mas essa comunidade também precisa de uma assistência”.

Confira a entrevista na íntegra.

Brasil de Fato: Qual sua análise sobre o Massacre de Suzano a partir de uma perspectiva psicossocial? 

Maria Rita Kehl: Existem dois lados que podemos pensar. Um lado é o da invisibilidade das pessoas, que é normal. As pessoas têm suas vidas, não estão em telas de TV ou de cinema. Talvez pessoas que estudam em escolas de periferia se sintam um pouco mais invisíveis para a sociedade. Atos que se pode pensar: "Ah, fez isso porque queria visibilidade", "fez isso para aparecer", acontecem. Pode ser uma pessoa que sai na rua de um jeito muito extravagante, uma pessoa que causa uma situação pública. Ela começa falando e depois ocupa o espaço, quer aparecer. 

Isso não era um padrão brasileiro, já aconteceram massacres mas não era assim. Nos Estados Unidos, pelo documentário do Michael Moore (Tiros em Columbine), é uma espécie de uma doença, uma patologia emocional. É muito difícil saber se esses meninos só queriam aparecer. Mas se eles queriam aparecer... Se mataram em seguida, mas não que eles tivessem esse propósito. Não sei. 

Existe recentemente, desde a campanha do Bolsonaro, uma incitação à violência e existe também, principalmente para os meninos, não para os homens adultos, mas para os adolescentes, essa confusão entre masculinidade e a capacidade de ser violento.

Estou pensando no que faz com que um homem se sinta bem em seu lugar de homem em uma cultura em que isso não precisava mostrar que se é capaz de brigar, de bater, de dar soco, de matar. Inclusive, na minha geração, quando o Doca Street matou a Ângela Diniz, em Búzios, as feministas lançaram uma campanha: "Quem ama, não mata". Só para dizer como havia todo um ambiente que é o oposto dessa coisa de que masculinidade é poder atirar, ser violento, ser bruto e intimidar os outros. 

Sem dúvida, a campanha do Bolsonaro trouxe isso pro ar. O que não quer dizer que possamos dizer que esses meninos fizeram isso por causa disso. Porque pensando na irresponsabilidade que foi aquela campanha, poderiam ter existido dez crimes parecidos no mês seguinte da posse dele. Esse é um aspecto. Certamente isso fica em um plano de fundo, incentivando principalmente os jovens e adolescente com uma certa fase de insegurança sobre a masculinidade. É essa ideia de um machismo baixaria que o presidente e os filhos deles estão propagando.

A outra coisa, é se eles sofriam bullying, se eles sofriam humilhações. Isso também é novo, tem 10, 15 anos no Brasil. Não que não houvesse nas escolas aqueles mais enturmados e aqueles mais deixados de lado. O bullying certamente vem das más influências que recebemos da sociedade americana — más, porque temos boas influências também, evidente — que é essa ideia de um grupo se afirmar e se sentir poderoso porque ele exclui alguém ou alguns. E se tem notícias que esses meninos eram rejeitados. 

Essa mistura não explica, eu teria que ter conhecido os meninos, escutado eles no meu consultório, mas demonstra um certo caldo de cultura que faz com que crianças recém-saídas dos cueiros comprem armas e planejem atirar na classe. Mesmo assim, não levanta todo o véu que cobre, para mim, esse incompreensível que é [matar outras pessoas]. 

E quero que continue sendo incompreensível para todos nós, porque não podemos nos acostumar com isso, que é o desejo de um ser humano de tirar a vida de outro ser humano. Eu prefiro que isso continue sendo uma coisa que nos deixe meio sem palavras, meio estupidificados, estupefatos, seja o que for. Se conseguimos explicar tudo e racionalizar tudo, quer dizer que vai ficando uma coisa meio normal.

E temos aí um cara que quer retorno da pena de morte, que faz propaganda da violência. O clima que ele gera no país é de intolerância, de violência, de predisposição a resolver as coisas na porrada. 

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"Bolsonaro talvez seja o presidente mais odiado desde a redemocratização e certamente ele sabe disso", aponta Kehl. (Foto: Agência PT)

O que isso diz respeito a forma com que criamos nossos meninos? Há uma crescente discussão cada vez mais presente nos consultórios, nas ruas, nas redes, sobre o que é ser homem hoje. Como isso tudo está em jogo agora, neste governo?

Não vejo que temos que criar nossos meninos de forma muito diferente do que criamos nossas meninas. Criamos cidadãos. Criamos crianças para respeitar o outro, para ter o mínimo de delicadeza em situações públicas. Sempre achei que a bandeira do Brasil devia ser do profeta Gentileza. "Gentileza gera gentileza", ao invés de "Ordem e progresso".

Basicamente, meninos e meninas temos que criar para respeitar os outros, para serem gentis. É o básico na criação de uma pessoa. Consigo pensar em como nós não criamos nossos meninos. Não criamos nossos meninos para acreditar que masculinidade é uma prerrogativa de força em relação a mulher, aos pobres, em relação a gays. Criamos nossos meninos para não acreditarem, que por algum motivo eles são superiores as meninas e nem inferiores. Nós criamos os meninos pra cidadania, como as meninas. Ou seja, para ter uma ação no espaço pública que seja pra melhor a relação das pessoas e não piorar. De preferência, não precisamos obrigar ninguém a fazer isso, podemos oferecer oportunidades na adolescência em diante para terem participação em algum tipo de atividade que podemos chamar de militância, de ONG, que saia da bolha.

Esse desprezo, esse padrão de masculinidade, é potencializado pela internet? 

Tem uma coisa importante aí. A internet quando surgiu nas redes, a recebemos muito bem como um espaço muito democrático de pluralidade. E de fato nas redes não tem quem pode e quem não pode falar. Não tem quem voz e quem não tem voz, todo mundo pode falar nas redes. No entanto, na televisão, por exemplo, não se pode ter apologia ao crime. Hoje em dia não tem mais censura mas tem algumas coisas se não se faz. Se tivéssemos um programa de apologia ao crime, seria proibido. Mas se pode, nas redes, incentivar esse tipo de coisa.

É muito difícil criar um sistema de observação disso. Não digo de controle, uma observação porque algumas coisas tem que ser barradas. Então, juntamos várias coisas a uma cultura machista muito incentivada pela eleição desse presidente que associa machismo à violência. Essa coisa dele posar assim [fazendo gestos de armas com as mãos] é quebra de decoro. Nunca um político com a expressão de um presidente pode posar nas fotos com a arminha na mão, como um moleque. Só que ele não é um moleque. Ele governa o Brasil inteiro. Mesmo quando ele foi esfaqueado, ele no hospital fazia arminha com a mão. Eu escrevi um artigo dizendo que esse esfaqueamento era lamentável, que ninguém quer as pessoas sendo esfaqueadas e sim queremos um clima de segurança no Brasil. Mas esse homem convoca essa violência. Hoje que ele é presidente, está seguro porque afinal ele tem uma guarda, nada vai acontecer com ele. Mas o Brasil está ficando muito violento.

Tudo isso pra falar sobre o contexto em que acontece esse massacre. Não posso explicar o massacre sem conhecer essas pessoas, mas estamos em um contexto em que não é impossível que aconteçam outros. E com mais um ingrediente: Vai haver cada vez mais exclusão, porque Bolsonaro não veio para melhorar. Quando o Guedes fala que veio melhorar a economia, ele veio para "melhorar" a desigualdade. Melhorar para os ricos. Isso não é melhorar a economia.

Bolsonaro talvez seja o presidente mais odiado desde a redemocratização e certamente ele sabe disso. A Dilma foi muito impopular, mas ela não despertava o ódio que o Bolsonaro desperta. E ele desperta porque ele propaga. Não porque ele é feio, porque ele é chato ou porque fala errado. Ele desperta porque ele propaga.

Nesse contexto de violência e de atos extremos, podemos dizer que há um padrão de comportamento psicológico a exemplo do Massacre de Suzano?

Não, acho que é cedo para dizer. O que dá pra dizer é que há um padrão maior de intolerância, de arrogância. A delicadeza está em baixa e a brutalidade está em alta. Mas não dá pra dizer que é um padrão, espero que não seja. Espero que não precisamos dizer isso nunca.

Enquanto sociedade, tendo todo esse incentivo à violência na figura de Bolsonaro, como podemos fazer para que saúde mental dos jovens seja poupada? Há como fazer isso?

Pensando nos jovens, é muito difícil de responder porque teríamos que ter acesso, de alguma forma. Os nossos discursos teriam que ter uma visibilidade equivalente a dele. Não teremos. Teríamos que ser capazes de ter um palanque pra dizer frases que se contraponham as deles e que tivesse a mesma divulgação. 

Não sei o que dá pra fazer com os jovens, mas penso que iniciativa de acolhimento de pessoas é importante. Vários grupos de psicanalistas hoje em dia estão atendendo em praça pública nos sábados, como fui na Escola Nacional Florestan Fernandes durante muito tempo. Não tinha esse clima de violência, mas para oferecer psicanálise pros militantes. Tem muitos psicanalistas que vão a lugares públicos, sentamos e escrevemos "Clínica na praça" e as pessoas nos procuram. Mas são poucos jovens, talvez com o tempo venham mais. 

Além disso, acho que isso faz parte dos deveres do Poder Público. É melhorar o ensino mas não só o ensino, a condição das escolas, das atividades extracurriculares das escolas. As escolas públicas podem ser melhores do que elas são, não só porque tem que ensinar coisas. O ensino público na Alemanha que elegeu Hitler era de boa qualidade. Não é só questão da qualidade de ensino, mas criar formas de convívio amistosas que tire o melhor das pessoas e não o pior. Isso não garante, mas favorece. Assim como fazer campanha pró armas não garante que todo mundo vá sair atirando, se não já tinha virado uma guerra em praça pública no Brasil. Também as coisas que podemos fazer não garantem. A melhor coisa seria ele cair. 

A situação é tão ruim que me disseram: "Ah, mas aí vai assumir um militar." Só que o Mourão é menos ruim que ele. Claro que o ideal seriam outras eleições, mas dentro dessa conjuntura ainda, de direita, bem fechada. Se ele cair e entrar o Mourão, ele dissemina menos violência que o Bolsonaro. Eu falo que é o adulto na sala. A criança está lá quebrando tudo e entra um adulto e fala: "Calma, parem de se bater". Não sou fã do Mourão, não votaria nele. Mas a coisa está tão ruim que torço por um general. É sintomático de como a coisa está ruim. 

O sentimento de paranoia e de construção de narrativas violentas que criam outras realidades é crescente na sociedade. Como isso influenciou na eleição do Bolsonaro e influência atualmente?

É como se a ideia de excluir o outro ganhasse um valor muito grande. Sempre houve exclusão de todos os tipos, não só econômicas. Mas tem ambientes sociais, momentos, em que os discursos predominantes são contra a exclusão.

Esse governo é retrógrado. Não é só autoritário, ele é pré-moderno. Certamente o Bolsonaro não sabe o que quer. Ele não tem um projeto. Ele tem o Guedes ali. Ele é de direita, não tenho dúvida. Mas isso não quer dizer que ele tem um projeto. Ele tem o projeto do psicopata. Destrói isso, acaba com aquilo e claro comprometimento com uma certa burguesia de acelerar a economia permitindo o aumento da desigualdade. Então é tirar todos os projetos sociais e facilitar a vida dos ricos. Agora, que ele dissemina o clima de violência, ele dissemina.

Após um mês do massacre, como lidar com as vítimas do Massacre de Suzano? 

Nós estamos em um momento de violências e de incentivo à violência que me parece que a possibilidade de sofrermos traumas sociais aumenta. Imagina ser aluno de uma escola e ver seu colega tombar morto do seu lado e a ameaça na sua frente. Pensar que podia ser você também... é claro que eles precisam de assistência. É óbvio. Não só eles, a família deles. Não só de assistência individual, tem traumas que realmente cada um precisa falar do seu, como também essa comunidade precisa de uma assistência. Pais, alunos, professores precisam se reunir na escola, não para falar com psicólogo necessariamente, mas ter algumas pessoas de fora que conduzam o debate. 

Não precisa ser só psicologia, é deixar a palavra circular porque acho uma das piores coisas, e isso é uma prática antiga, é uma não sabedoria que era tido como sabedoria antigamente, é o "não fala mais disso, eles estão muito traumatizados". Não. Tem que falar. Isso Freud descobriu, a psicanálise é isso. Ninguém obriga o paciente traumatizado a falar mas se ele vem, ele quer falar. É oferecer escuta pra essas pessoas, inclusive coletiva. 

Edição: Brasil de Fato