Por Leonardo Fernandes
De São Paulo, 17 de abril de 2019
“Eduardo Cunha, você é um gângster”. Foi com essa frase que o deputado federal Glauber Braga, do Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) definiu o então presidente da Câmara de Deputados, Eduardo Cunha, durante a votação do pedido de abertura do processo de impeachment da presidenta Dilma Rousseff, no dia 17 de abril de 2016.
A sessão que autorizou o envio do pedido de impeachment ao Senado Federal ganhou muitos apelidos: “show de horrores”, “dia da vergonha”, entre outros. Um a um, os 513 deputados e deputadas declaravam seus votos favoráveis ou contrários ao impedimento da presidenta, em uma sessão que durou 42 horas.
Nas ruas de todo o país, manifestações dos dois lados também rodeavam telões que transmitiram ao vivo a votação. José Eduardo Cardoso, ex-ministro da Justiça que atuou como advogado da presidenta Dilma, explica como funcionou a estratégia da defesa.
“Nós tínhamos uma avaliação bem realista da realidade. Nós sabíamos que se fosse aprovado na Câmara, a situação no Senado ficaria muito difícil de se contornar. No entanto, a gente tinha uma avaliação de que, como Dilma Rousseff não tinha praticado nenhum delito, nenhum crime de responsabilidade, e do ponto de vista jurídico aquilo não tinha pé nem cabeça, nós trabalhamos tanto uma defesa técnica com o melhor nível possível, mas também buscamos demonstrar à sociedade que aquilo era efetivamente um processo sem lastro e que caracterizaria, caso consumado, um golpe parlamentar”.
Para o cientista político Pedro Fassoni, o impeachment da presidenta Dilma não esteve amparado em nenhuma das hipóteses definidas pelo artigo 85 da Constituição Federal, motivo pelo qual pode ser entendida como um rompimento da institucionalidade democrática, com graves consequências históricas para o Brasil.
Fassoni também avalia que, na tentativa de convencer os setores da oposição a abandonarem a estratégia golpista, o próprio governo Dilma acabou “cometendo erros”. O que aprofundou a crise de representatividade e fortaleceu a estratégia golpista.
“A explicação para a queda da Dilma não é unicausal. Tem vários elementos. De fato teve a própria impopularidade da presidenta Dilma, que inclusive adotou medidas que contrariaram a sua própria base. Ela também concordou em promover um ajuste fiscal em 2015, cortando cerca de 70 bilhões do orçamento, também mudou regras trabalhistas, regras para a concessão de benefícios, como o seguro-desemprego. Então a gente sabe que o Partido dos Trabalhadores fez muitas concessões ao capital bancário e ao latifúndio também”.
Para os brasileiros, cidadãos comuns, trabalhadores e trabalhadoras assalariadas, aposentados; o que restou do Brasil após o golpe de estado em 2016? Vejamos alguns dados que podem ajudar a responder essa pergunta.
O que sobrou do Brasil
Para além das consequências institucionais, Fassoni afirma que uma das consequências da ruptura institucional no Brasil foi a perda do destaque que o país vinha conquistando no contexto global. E a eleição de Jair Bolsonaro, dois anos mais tarde, veio aprofundar a má imagem que o país passou a ter no mundo.
“Durante o governo Lula, o Brasil era a bola da vez. O Lula tinha muito prestígio internacional, era recebido com honras pelos principais chefes de estado, e era o centro das atenções. Depois do golpe, o Brasil acaba voltando para uma situação de potência regional e não mais mundial. O governo Bolsonaro é motivo de chacota na imprensa internacional. A postura de alguns dos seus ministros, como a Damares [Alves], como o Ernesto Araújo das Relações Exteriores chega a ser patético. São pessoas que defendem teses completamente superadas, e isso faz com que o Brasil se torne uma vergonha internacional também”.
Já a economista Marilane Teixeira chama a atenção para as consequências do golpe para a economia brasileira, que já vinha enfrentando dificuldades.
“Naquele ano mesmo, no ano de 2016, a economia caiu 3,5%. Ela se manteve em queda no mesmo ritmo do ano anterior. E, mesmo nos anos de 2017 e 2018, a leve recuperação que teve, que foi em torno de 1,1% a cada ano, é um resultado pífio, se você considerar a queda anterior. Então, do ponto de vista econômico, foi um desastre”.
Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a qualidade de vida do povo trabalhador esteve em queda livre desde o golpe de 2016. Em 2015, o número de cidadãos em situação de pobreza representava 9,9% da população, ou seja, 20,4 milhões de pessoas. Já em 2016, número saltou para 53,1 milhões, ou quase 26% da população. Já a pobreza extrema passou de 5% a 7,4% no mesmo período, superando os 13 milhões de brasileiros.
O desemprego foi um dos principais fatores de empobrecimento da população. Ele saltou de 8,5% em 2015, ou 10 milhões de cidadãos trabalhadores, para 11,5% ou 12,3 milhões de pessoas desempregadas em 2016. E o número seguiu aumentando, chegando a mais de 13 milhões em 2017, ou 12,7% da população economicamente ativa.
A inflação também tratou de corroer o poder aquisitivo dos brasileiros. O gás de cozinha, produto básico para a maioria das famílias brasileiras, passou de R$ 54 em média em 2015, para R$ 55,60 em 2016, chegando a mais de R$ 66 reais em 2017. Já a gasolina, que baliza os preços de outros produtos devido ao transporte, foi subindo desde o golpe, passando de R$ 3,45 a média do litro em 2015, para mais de R$ 4 em 2017.
Os reajustes quase diários dos preços dos combustíveis e gás de cozinha começaram a ser praticados no governo de Michel Temer, a partir da nova política de preços da Petrobras, que obedece à variação do preço do petróleo no mercado internacional, e não mais aos custos de produção, como funcionava antes do golpe.
Não bastasse as dificuldades econômicas da população, programas sociais essenciais para o combate à pobreza sofreram cortes orçamentários drásticos. Um dos mais representativos exemplos do arrocho orçamentário foi no programa Minha Casa Minha Vida. Em 2015, foram destinados mais de R$ 8 bilhões para a construção de moradias. Já no ano do golpe, em 2016, a dotação orçamentária foi reduzida a R$ 2,4 bilhões e, em 2017, não passou de R$ 1,4 bilhão.
Teixeira explica que durante o período de crescimento econômico, mais precisamente nos dois mandatos do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, foi possível praticar uma política de distribuição de benefícios entre os vários setores sociais. Mas, diante da crise, a elite econômica do país passou a disputar o Estado para garantir sua margem de lucro, em detrimento do bem-estar social.
“Evidentemente estava em disputa um Estado máximo, um estado de proteção social, um estado de direito, um estado, vamos dizer, aos moldes do que foi o estado de bem-estar social europeu, um estado indutor do desenvolvimento, do crescimento econômico. Então, na verdade, é uma disputa sobre a visão do papel do Estado”.
Com o Supremo, com tudo
Não foi a primeira vez na história do Brasil que a mais alta corte do país referenda o rompimento da institucionalidade democrática e legitima um golpe de estado. Em 1964, após a deposição do então presidente João Goulart, o Supremo Tribunal Federal (STF) chancelou a iniciativa dos militares de tomar o poder pela via da força.
Em 2016, não foram poucas as tentativas de acionar o STF para impedir a consumação de um processo de impeachment sem crime de responsabilidade comprovado, como conta Cardoso.
“Se em um primeiro momento nós conseguimos evitar os abusos de Eduardo Cunha, através de algumas ações que foram propostas por parlamentares, em um segundo momento, é como se o Supremo pura e simplesmente tivesse tomado uma postura passiva diante daquilo que estava acontecendo. Ou seja, o Supremo não freou, a meu ver, um processo arbitrário, que se caracterizou como um desvio de poder e que, repito, ao meu juízo, era um golpe parlamentar. O Supremo poderia ter feito isso, não o fez”.
A resistência nunca parou
Embora não tenha conseguido atingir o objetivo final – barrar o golpe de estado –, os movimentos sociais democráticos do Brasil protagonizaram grandes jornadas de luta desde o anúncio da abertura do processo de impeachment. Sônia Coelho, integrante da Marcha Mundial de Mulheres, explica que àquela altura, os movimentos de mulheres já percebiam o caráter misógino dos ataques à presidenta Dilma.
“Aquilo que eles já vinham acumulando, aquele conservadorismo em relação às mulheres, em relação à família, eles trouxeram naquele momento contra a Dilma. Eles a tiraram porque, além de todas as questões políticas, de projeto político que eles queriam derrotar, eles queriam também derrotar uma primeira mulher presidente do Brasil”, lembra.
As mulheres já haviam enfrentado o então presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha. Em setembro de 2015, antes mesmo da aceitação do pedido de impeachment, organizações de mulheres de todo o país protagonizaram a “primavera feminista”, contra as pautas regressivas de direitos, propostas pelo deputado carioca.
“Naquele momento era fundamental fazer resistência, tanto porque era a Dilma, não só por ser mulher, mas porque ali era a disputa de um projeto que, para nós mulheres, era fundamental. Em que pese a gente ter, no início do segundo mandato da Dilma, a gente também foi para a rua para dizer que a austeridade, para nós mulheres, não servia, aprofundava as desigualdades, mas que naquele momento era fundamental fazer essa disputa na rua, fazer essa disputa na sociedade e levar a nossa solidariedade à presidenta”, disse Coelho emocionada.
Dilma de cabeça erguida
“Condenaram uma inocente e consumaram um golpe parlamentar. [...] Apropriam-se do poder por meio de um golpe de estado. O segundo golpe militar que eu enfrento na vida. […] A partir de agora, lutarei incansavelmente para continuar a construir um Brasil melhor”. Essas foram algumas das palavras da presidenta Dilma Rousseff, após a aprovação do impedimento pelo Senado Federal no dia 31 de agosto de 2016.
O ex-ministro Cardoso se diz um admirador da presidenta que sobreviveu íntegra a dois golpes de estado.
“Ela [Dilma Roussef] é uma mulher impressionante. Eu nunca vi – e estive mais de seis anos no ministério --, um único gesto ou algo que saísse da linha da mais estrita probidade, ética e rigor. Então, é uma mulher, do ponto de vista ético, de uma conduta irreparável. E, veja, nem toda essa confusão que é a política brasileira, nem tudo aquilo que sucedeu, não se alavancou nenhuma denúncia séria contra Dilma Rousseff”.
De cabeça erguida, Dilma se despediu do Palácio da Alvorada, em Brasília, citando o poeta russo Vladimir Maiakovsky.
“Não estamos alegres, é certo. Mas também porque razão haveríamos de estar tristes? O mar da história é agitado. As ameaças e as guerras haveremos de atravessá-las, rompê-las ao meio, cortando-as como uma quilha corta”.
Os personagens do golpe
Como e por onde andam os protagonistas do golpe de estado em 2016? Veja alguns deles:
Romero Jucá
Durante o processo de impeachment, o senador Romero Jucá exerceu o papel de articulador dos votos favoráveis à cassação do mandato da presidenta Dilma no Congresso Nacional. Depois de consolidado o golpe, assumiu o ministério do Planejamento do governo de Michel Temer. Foi exonerado depois que vazou na imprensa uma conversa entre ele e o ex-presidente da Transpetro, Sérgio Machado, na qual articulavam o golpe de estado contra a presidenta Dilma, como forma de “estancar” as investigações da Operação Lava Jato. Em 2018, candidatou-se à reeleição no Senado pelo estado de Roraima, mas não foi eleito, ficando em terceiro lugar.
>> Gravação com Jucá indica que impeachment foi golpe para conter Lava Jato
Sérgio Machado
O ex-presidente da Transpetro já foi senador pelo Partido da Social-democracia Brasileira (PSDB) e atualmente é filiado ao Movimento Democrático Brasileiro (MDB). Após renunciar à presidência da Transpetro, em 2014, foi acusado de envolvimento no escândalo da Petrobras e investigado pela Operação Lava Jato. Em 2016, fechou acordo de delação premiada com a Procuradoria-Geral da República em que detalha a sua participação no esquema de corrupção da estatal. Uma das revelações foi a gravação de uma ligação telefônica com o então líder do governo no Congresso, o senador Romero Jucá, no qual planejavam articular um “acordo nacional” para estancar as investigações da Operação Lava Jato, através de um golpe de estado contra a presidenta Dilma Rousseff. Depois de pagar um multa de R$ 75 milhões à Justiça, Machado foi liberado inclusive do uso de tornozeleira eletrônica e vive hoje em uma mansão localizada em Fortaleza (CE), de frente para o mar.
>> Ilegalidades, abusos e contradições: Lava Jato completa cinco anos
Michel Temer
Michel Temer permaneceu na Presidência da República até o dia 31 de dezembro de 2018. No dia 21 de fevereiro de 2019, foi preso pela força-tarefa da Operação Lava Jato, em um processo que apura irregularidades na construção da usina nuclear Angra 3. Por decisão do desembargador Antonio Ivan Athié, foi libertado no dia 25 de fevereiro e permanece em liberdade. Temer é réu em outros nove inquéritos na Justiça.
Eduardo Cunha
Depois de ter liderado o processo de impeachment da presidenta Dilma, o deputado federal pelo Rio de Janeiro, Eduardo Cunha (MDB), foi afastado do cargo no dia 12 de setembro de 2016. Desde o dia 19 de outubro, permanece preso preventivamente e foi condenado em março de 2017 a 15 anos e quatro meses de prisão pelos crimes de corrupção passiva, lavagem de dinheiro e evasão de divisas.
Jair Bolsonaro
O então deputado federal Jair Bolsonaro saiu candidato à Presidência da República em 2018. Depois de a Justiça eleitoral haver inabilitado o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva a disputar as eleições, Bolsonaro passou ao primeiro lugar na corrida presidencial, tendo sido eleito com 57,8 milhões
Janaína Paschoal
A advogada Janaína Paschoal admitiu haver recebido R$ 40 mil reais para elaborar o pedido de impeachment contra a presidenta Dilma Rousseff. Nas eleições seguintes, se elegeu deputada estadual pelo Partido Social Liberal (PSL) da Assembleia Legislativa de São Paulo (Alesp), tendo sido a parlamentar estadual mais bem votada da história do estado
FICHA TÉCNICA Reportagem: Leonardo Fernandes | Edição: Aline Carrijo | Artes: Fernando Badharó e Gabriela Lucena | Coordenação de Multimídia: José Bruno Lima | Coordenação de Jornalismo: Daniel Giovanaz e Vivian Fernandes