O homo sacer é negro, favelado e executado “por engano” pelo Exército brasileiro
Por Olímpio Rocha*
Os campos de concentração da Alemanha nazista da metade do século passado, onde foram assassinados quase 6 milhões de judeus, e os atuais campos de refugiados mundo afora - sejam de líbios, venezuelanos, afegãos ou de tantas outras nacionalidades – notoriamente se assemelham entre si pela condição de descartabilidade dos sujeitos que ali se encontra(va)m, eivados com a pecha da desimportância, posto que são fardo quase impossível de carregar para que se mantenha o privilégio de quem não é alvo preferencial da necropolítica, esta entendida como a estatização da morte.
Nas palavras de pensadores da estirpe de Giorgio Agamben e Slavoj Zizek, por exemplo, essa descartabilidade anda paradoxalmente ao lado da sacralidade do homem cuja “vida nua” era e é sacrificada pelos arianos de outrora, pelos racistas anti-imigração de hoje e que, no caso brasileiro, em sua maioria negra, muitas vezes torturada, é cotidianamente deixada à morte ou até assassinada e roda a esmo nos camburões das polis que a ignoram e depois resta esquecida nos necrotérios.
O conceito de homem sagrado – ou homo sacer – no latim do Direito Romano, remete ao cidadão que cometia crime tão grave que não poderia ser julgado por seus pares, senão pelos próprios deuses de que era devoto, estes personificados nos detentores do poder estatal. O homem sagrado desta pós-modernidade sangrenta, portanto, é o expurgado, aquele que, de um lado, não pode ser legalmente assassinado, porque há, em tese, um devido processo legal e uma garantia fundamental à vida que não o permite morrer pelas mãos comissivas do Estado e que, de outro lado, caso não seja possível mantê-lo vivo, não ocasionará maiores problemas a quem lhe negue a biopolítica por omissão, porque, afinal, em breve o expurgo estará ao lado do divino que o julgará.
Isto dito, o homo sacer no Brasil é o que, por exemplo, morre à bala perdida, ou que, como no caso recente do músico Evaldo Rosa dos Santos, é negro, favelado e executado “por engano” pelo Exército brasileiro, alvejado por 80 tiros quando ia com sua família a um chá de bebê, no Rio de Janeiro. A mulheres e homens como Evaldo, aos quais se nega o direito a terem voz ativa na polis para além da vida nua e, pior, aos quais se dá o duvidoso privilégio da alegoria romana consubstanciada no julgamento pelo divino, porque em vida eram “sagrados”, intocáveis à justiça humana, é que se impõe a descartabilidade acima mencionada.
Pois bem. É no campo da filosofia que o conceito de necropolítica, do camaronês Achille Mbembe, se soma à ideia do homem sagrado descartável, não sacrificável, porém “matável” de que aqui se trata. Mbembe, a seu modo, lapida a ideia de biopolítica de Michel Foucault e deixa claro que a assunção de formas de descarte da vida nua do pobre, negro e favelado, se não é uma escolha livre e racional por parte dos detentores do poder, é no mínimo por eles tolerada como quem usa a venda sobre os olhos que cega a deusa Artêmis.
Na medida em que têm a ordem para atirar antes de perguntar, para “mirar na cabecinha”, torturar para obter confissão ou para, enfim, legitimar o discurso de que a violência marginal só pode ser combatida com a violência oficial, os agentes estatais acabam por agir sob a escusa da banalidade do mal, conceito de Hannah Arendt, filósofa judia de indiscutível proeminência no século passado, para quem se explicaria – apesar de injustificável, claro - a barbárie pela hierarquia, pelo cumprimento de ordens superiores do oficialato hitlerista.
Quando o nazista Adolf Eichmann, no seu célebre julgamento em Jerusalém, diz que só estava a cumprir ordens superiores quando determinava que se sufocasse os judeus em câmaras de gás, ele iguala a política da morte à burocracia de quem carimba um ofício de gabinete e isto, mesmo que explicável do ponto de vista hierárquico, para Arendt, não pode ser naturalizado. Os crimes, apesar da responsabilidade internacional do Estado nazista, só eram perpetrados por que havia indivíduos que o praticavam diretamente.
É dizer, o caso brasileiro, em que políticos como o governador fluminense Wilson Witzel e o presidente Jair Bolsonaro - por seus discursos midiáticos que incentivam práticas de estado policial violador de Direitos Humanos -, se revelam como uma nefasta mistura entre necropolítica e banalidade do mal, em que, a um só tempo, se legitima a morte dos despossuídos e se justifica o descarte da vida nua como escolha estatal, desta vez, pior para nós, de forma cruel e escancaradamente livre, racional e consciente.
*Olímpio Rocha é advogado, professor de Direitos Humanos, membro do Conselho Estadual de Direitos Humanos e perito do Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura da Paraíba
Edição: Daniela Stefano