Este é o quarto artigo que publico no Brasil de Fato compondo uma série sobre o governo Bolsonaro e o neofascismo. Eu a tinha considerado encerrada, mas julguei necessário voltar ao assunto.
Gilberto Maringoni e Artur Araújo escreveram um texto, publicado no Le Monde Diplomatique – Brasil do corrente mês e intitulado “O lumpesinato no poder”, onde defendem a tese, anunciada claramente no próprio título do texto, segundo a qual o poder de Estado no Brasil teria sido conquistado pelo lumpesinato. Afirmam os autores:
"O governo de Jair Messias Bolsonaro representa um feito inédito em termos mundiais. Trata-se da primeira vez em que o lumpesinato, de forma organizada, chega ao poder de Estado. Não existe experiência semelhante em países da dimensão do Brasil. (...) O principal representante do lumpesinato nas esferas do poder é o próprio presidente da República".
Dos dois autores, conheço melhor os textos de Maringoni e aprendo muito com eles. Maringoni é um analista arguto da conjuntura política. Recentemente, foi o primeiro a esclarecer, com base em argumentos convincentes e conhecedor que é da Venezuela, que a operação Juan Guaidó, na sua fase de “ajuda humanitária”, patrocinada pelo imperialismo com a colaboração ativa do governo Bolsonaro, tinha resultado em fiasco. Porém, nesse texto sobre o lumpesinato, avalio que, longe de esclarecer, ele e Artur Araújo confundiram as coisas.
A ideia segundo a qual seria o lumpesinato que ocupa o poder é sedutora. Jair Bolsonaro é um político abjeto, inimigo jurado da democracia e do socialismo, e concebê-lo, não apenas como integrante, mas também como representante político do lumpesinato alivia o justo ódio que sentem por ele todos aqueles que amam o povo trabalhador. Ademais, a tese parece esclarecedora, pois, de fato, a equipe de governo é formada por políticos desclassificados, militares desocupados, professores que fracassaram na academia, economistas marginais, coiteiros de milicianos e alpinistas sociais de história duvidosa. No entanto, sabe-se que nem sempre as coisas são o que parecem ser. A teoria política marxista ensina que é necessário distinguir aquele que toma a decisão -- eventualmente, um economista neoliberal desprezado pelos próprios neoliberais ou um militar desprezado pelos militares -- daquele que se beneficia com ela -- o capital internacional, os grandes bancos etc. Definir a natureza de classe de um governo a partir do pertencimento social da equipe governamental é um equívoco teórico que induz a erros na prática política.
O que mais importa é o conteúdo da decisão
É a teoria das elites, tanto na versão clássica quanto na moderna, que elege a pergunta “quem governa?” como eixo de suas análises. Ora, como se sabe, essa teoria foi produzida para combater a teoria política marxista, da qual, no entanto, o texto de Maringoni e Araújo declara-se seguidor. A teoria política marxista guia-se por outra pergunta: “para quem se governa?”. É certo que a pergunta sobre o “quem governa” não deve ser abandonada -- até porque a composição social da equipe governamental pode influir, embora secundariamente, no teor das medidas tomadas --, mas ela deve ser deslocada para segundo plano e inserida num dispositivo conceitual muito distinto daquele da teoria das elites.
Não é isso o que faz o artigo que estamos criticando. Nele, analisa-se o pertencimento social do pessoal governamental para se verificar a classe ou o setor social que se encontra no poder. Nada se diz sobre o conteúdo da política econômica, da política social e da política externa que esse pessoal implementou, e que é a única análise que poderia nos colocar na pista das classes e frações de classe que compõem o bloco no poder. Depois de definirem o que seria o conceito de lumpesinato, valendo-se abundantemente de textos de Marx, os autores colocam a seguinte questão:
“A partir de tais definições, vale a pena tentar entender que classes e frações de classe compõem o primeiro escalão da administração eleita em 2018.”
E passam a discorrer sobre a composição da equipe governamental, nada sobre a política de Estado. Sim! Temos algo que poderia ser definido, de modo genérico, como lumpesinato nos altos escalões do governo e são eles que tomam as decisões. Porém, no que respeita ao conteúdo das decisões que estão tomando, ele atende ao lumpesinato ou ao capital internacional e à grande burguesia associada a esse capital?
Segundo entendemos, o conteúdo da política externa, da política econômica e da política social do governo Bolsonaro prioriza os interesses do grande capital internacional, principalmente o estadunidense, e dos segmentos da burguesia brasileira a ele associados, e atende também, embora secundariamente, outros segmentos da burguesia brasileira. Portanto, são o imperialismo, a burguesia brasileira e, principalmente, a sua fração associada ao capital internacional que ocupam o poder de Estado, e não o lumpesinato que lhes presta um serviço político.
De resto, causa estranheza o fato de o texto afirmar, de um lado, que o lumpesinato brasileiro realizou o feito, inédito segundo os próprios autores, de conquistar o poder de Estado e, de outro lado, sustentar que o lumpesinato é politicamente incapaz. Cito uma passagem do texto: “O lumpesinato, por característica inata, é avesso a qualquer projeto coletivo de longo prazo. Não é classe, não é coletivo, não forma grupos. Não há previsibilidade ou rotina possível em um conjunto de indivíduos para os quais vigoram as saídas individuais e a disputa de cada um contra todos.”
Dois conceitos de representação política
Parece-me que lumpesinato é um conceito mal definido, impreciso. Porém, se o aceitarmos para efeito de discussão, diríamos, concordando com o texto, que Jair Bolsonaro e grande parte de sua entourage integram o lumpesinato, mas, e agora discordando, diríamos que eles não o representam politicamente. E, nesse ponto, é necessário estabelecer distinções de sentido ocultas na palavra “representar”.
Há dois conceitos (ideias) de representação política que se encontram, infelizmente, abrigados numa mesma e única palavra (representação). É preciso cuidado para não se perder nessa polissemia. Um governo ou um partido político pode representar uma classe social, um conjunto de frações de classe etc. no sentido de que a sua política contempla os interesses econômicos e políticos de tais segmentos. Para citar o Dezoito Brumário de Luis Bonaparte, o livro de Marx utilizado no texto que estamos comentando, é nesse sentido que Marx utiliza o termo quando diz que os monarquistas legitimistas representavam o latifúndio e os orleanistas, a grande burguesia industrial e financeira. Porém, a representação pode também indicar um laço meramente ideológico entre um governo ou um partido, de um lado, e uma classe ou fração de classe, de outro. É nesse segundo sentido que Marx afirma no mesmo livro que Luis Napoleão representava o campesinato. Como mostrou Nicos Poulantzas, no seu livro Poder político e classes sociais, a política de Luis Napoleão não atende aos interesses dos camponeses, mas esses se constituem, por motivos ideológicos analisados no livro, em base de apoio do presidente e, mais tarde, do imperador. Eu penso que entre esses dois extremos, representação objetiva de interesses econômicos e representação baseada em ilusão ideológica, podemos conceber situações intermediárias e complexas que misturam, de maneiras e em dosagens variadas, uma coisa e outra.
Pois bem, no primeiro sentido do termo, Bolsonaro representa, acima de tudo e como já indicamos, o capital internacional e a burguesia associada. Esse sentido faz referência, no caso da política de um determinado governo, à maneira como o poder político regula a economia do país, estabelece relações internacionais, aplica a política de ordem etc. É a dimensão da atividade governamental que mais afeta, e isso de modo amplo e profundo, a vida de toda a população. Já no seu segundo sentido, ou num ponto muito mais próximo do segundo que do primeiro, o governo Bolsonaro representa a classe média, principalmente a classe média abastada que se mobilizou para a deposição de Dilma Roussef, e os caminhoneiros que, também eles e em ação conjunta com o MBL, Vem pra Rua, Revoltados on Line e outros grupos de extrema-direita, se mobilizaram pelo impeachment e, na sequência, se engajaram na candidatura presidencial do capitão reformado. Esse segundo laço de representação, embora não tenha a importância econômica, social e política que tem o primeiro, já que esse pode remodelar toda uma sociedade, é, todavia, um laço importante no jogo político e é, no caso que analisamos, um recurso político do governo Bolsonaro. Os proprietários de terra também aderiram desde a primeira hora à campanha do capitão. Reivindicavam o direito de se armar, a liberdade para desmatar e mais repressão contra os movimentos camponês, indígena e quilombola. Como mostraram reportagens da imprensa, os proprietários de terra se juntaram aos jovens de alta classe média para a recepção ao presidenciável Bolsonaro nos aeroportos do país. Nenhum desses segmentos sociais -- capital internacional, burguesia associada, proprietários de terra, alta classe média, caminhoneiros-- podem ser caracterizados como lumpesinato.
A classe média, principalmente a sua fração abastada, e os proprietários de terra são as duas pernas sobre as quais caminha o movimento neofascista no Brasil. Os setores da sociedade que poderiam ser identificados com o conceito impreciso de lumpesinato, conceito com o qual os autores designam tanto indivíduos da classe burguesa quanto indivíduos das classes populares, não se mobilizaram coletivamente, que seja do meu conhecimento, na campanha de Bolsonaro. Forneceram material humano para o seu partido político de ocasião e para a equipe governamental, do mesmo modo que no fascismo clássico os ex-combatentes da Primeira Grande Guerra forneceram quadros para os partidos fascista e nazista, sem que isso tenha negado que a base social do movimento italiano e alemão tenha sido a pequena burguesia. O movimento fascista clássico foi um movimento reacionário de massa dirigido contra a esquerda, como ocorre com todas as variantes do fascismo, e a ditadura que ele chegou a constituir foi uma ditadura do grande capital apoiado na – embora muitas vezes em conflito com – a pequena burguesia, e não um “governo dos ex-combatentes” ou do “lumpesinato”.
Quando há conflitos entre, de um lado, aqueles cujos interesses o governo Bolsonaro de fato representa e, de outro, os interesses daqueles que se imaginam representados pelo mesmo governo, esse tende a decidir a favor dos primeiros. São o capital internacional e a burguesia associada que detêm a hegemonia no bloco no poder; a classe média e os caminhoneiros sequer participam desse condomínio fechado. Os segmentos de classe média que dependem da aposentadoria estão engolindo a reforma da previdência que interessa ao capital financeiro; os caminhoneiros estão engolindo a política de preços da Petrobrás que interessa aos acionistas privados nacionais e internacionais da petroleira – aliás, Maringoni e Araújo publicaram no facebook uma esclarecedora conversa sobre o conflito em torno do preço do Diesel; e os proprietários de terra, embora integrem o bloco no poder e embora tenham recebido cargos no governo e tudo o mais o que o governo poderia oferecer em detrimento das classes populares e da ecologia, esses estão engolindo o enxugamento do crédito público subsidiado do qual dependem e a provável perda de parcelas do mercado chinês e dos países árabes, pois tais “inconvenientes” são consequências necessárias da aplicação do ajuste fiscal que interessa ao capital financeiro nacional e internacional e do alinhamento subserviente do Estado brasileiro ao imperialismo estadunidense na sua disputa com a China.
A quem serve a “desconstrução do país”
Os autores dão um fecho no seu texto referindo-se à fala de Bolsonaro nos EUA na qual o chefe de governo afirmou que era preciso desconstruir o que existe no Brasil. Essa de fato, e concordando com os autores, é uma frase representativa da linha de ação do governo. Afirmam eles:
"Não há descrição mais apropriada para um mundo traçado por Jair Bolsonaro em discurso proferido para uma plateia de extrema direita em Washington, em março último: 'O Brasil não é um terreno aberto onde nós pretendemos construir coisas para o nosso povo. Nós temos é que desconstruir muita coisa. Desfazer muita coisa.' [Prosseguem, então, os autores.] São frases-síntese de um governo lumpem que se move por pequenos e grandes negócios de ocasião. Em geral, eles se dão por fora da política institucional e de suas regras e, não raro, apelando para situações de força. Uma administração de todos contra todos".
Porém, e ao contrário do que afirma o texto, a desconstrução não tem nada a ver com o lumpesinato e sim com os interesses dos verdadeiros ocupantes do poder de Estado -- que não são os mesmos que ocupam o aparelho de Estado. Essa desconstrução não resulta da visão caótica, individualista e destrutiva do lumpesinato. Fernando Henrique Cardoso e os tucanos falavam em desconstruir a “Era Vargas” e eles não têm nada de lumpesinato. Trata-se de uma política coerente e construtiva de uma nova hegemonia, a hegemonia do capital internacional e dos segmentos da burguesia brasileira a ele associado -- a burguesia interna, que foi a fração hegemônica nos governos do PT, sofreu defecções e foi deslocada para uma posição subordinada no interior do bloco no poder. A “desconstrução” da qual falou Jair Bolsonaro nos EUA é a desconstrução para o capital internacional e para a burguesia associada, em primeiro lugar, e, em segundo lugar, para a burguesia interna, não pelo e para o lumpesinato que se moveria “(...) por pequenos e grandes negócios de ocasião”. Não é uma política errática. O equívoco aqui é grande. Ele oculta que a proteção da economia nacional, a garantia dos direitos dos trabalhadores, a CLT e a própria Constituição de 1988 estão sendo “desconstruídas” para atender ao imperialismo dos EUA e não ao lumpesinato que, como indicam os próprios autores, sequer têm capacidade política e projeto de poder.
*Professor titular de Ciência Política da Unicamp e editor da revista Crítica Marxista.
Edição: Aline Carrijo