Em Barbalha, no interior do Ceará, uma inusitada parceria entre a poesia rimada e a medicina tradicional tem sido instrumento para informar e educar comunidades sobre saúde e cuidados com o corpo, sem arrodeio ou complicações.
Traduzindo conceitos e termos clínicos para uma linguagem acessível e relacionável, estudantes de Medicina da Universidade Federal do Cariri (UFCA), orientados pela professora Sally de França Lacerda Pinheiro, aliam cultura e informação, criando pontes eficientes de diálogo entre a comunidade e a academia sobre temas urgentes à saúde pública.
A intenção é tornar as informações sobre doenças, processos e prevenções o mais acessível e atraente possível. Em três anos, o projeto “Cordel e Saúde” publicou mais de 40 folhetos originais, desenvolveu oficinas, visitou dezenas de escolas e unidades de saúde entregando informações corretas em saúde e prevenção, através declamações e da literatura popular com a linguagem que é a cara do povo.
Vacinação, higiene pessoal, diabetes, depressão, hipertensão, osteoporose, DSTs, tabagismo, alcoolismo e tipos de câncer são apenas alguns dos temas abordados nos cordéis e vídeos produzidos para divulgação na internet. A adesão é tamanha que outras instituições, associações e ligas acadêmicas “encomendam” cordéis temáticos ao grupo.
Hoje venho aqui falar
De uma velha conhecida
Que enfraquece os ossos
Deixando a coluna partida
É a tal da osteoporose
Uma doença maldita
Da osteoporose
Sei que já ouviu falar
Ela sai comendo os ossos
Até os bicho quebrar
Vai empenando a coluna
Até o cabra envergar
Esta improvável aliança entre cordel e medicina pode ser personificada na mentora do projeto, Sally Lacerda. Professora da Faculdade de Medicina da UFCA, odontóloga e doutora em biologia molecular, neste projeto ela encontrou fórmula para escrever, pesquisar e disseminar conhecimentos acadêmicos e técnicos através de sua mais antiga paixão: o cordel.
Foi durante sua estadia de seis anos na França, durante mestrado e doutorado, que Sally se aventurou mais no mundo literário. Enquanto tremia no frio europeu, lembrava da quentura do Ceará e dos fins de tarde ouvindo declamações de Patativa do Assaré, seu mestre e inspiração.
Com saudades de casa, a região do Cariri, buscava vestígios no cotidiano que despertasse uma rima e dali fizesse nascer um folheto: Debates em torno de uma jurema, a saudade de Juazeiro do Norte, a saga do garimpeiro Sansão -- que, adoentado e perdido na Guiana Francesa, foi parar na França para uma cirurgia -- ou mesmo a resistência dos dentes incisivos inferiores, os últimos a cair. Os cordéis escritos durante este “exílio” estão reunidos no livro “Souvenir e cordéis”, a ser publicado.
Quando retornou ao Cariri em 2017, após quase 10 anos longe, encontrou uma Universidade que aposta no ensino, na pesquisa e na extensão em cultura. Não para menos, a UFCA foi a segunda Universidade no país a ter uma pró-reitoria específica de Cultura, instalada em 2013, e uma das poucas a “curricularizar” este campo.
Certeira, Sally viu a oportunidade para divulgar a literatura ao mesmo tempo em que promove saúde e conscientização. Sem arrodeio, explica a ideia: “o objetivo principal seria utilizar o cordel como uma ferramenta de educação e prevenção em saúde”. Driblando críticas de colegas academicistas, conquistou o coração de alunos que se uniram ao projeto em 2017. Atualmente, um bolsista e cinco voluntários integram a equipe.
À lá Paulo Freire, defende a adaptação do conteúdo ao meio comunitário para uma comunicação eficiente. “Não adianta chegar com termos técnicos tentando explicar para o paciente a complexidade da sua doença. O melhor é usar a mesma linguagem dele. Uma linguagem ‘amatutada’, simples e coloquial, para que ele se encontre naquele texto”, resume.
Na prática, a equipe estuda o assunto escolhido para aquele mês e, a partir de oficinas de texto, treinam rima e métrica, e constroem suas próprias narrativas. Desafiando-se nas sextilhas e décimas, modelam assuntos e, através da poesia, os transformam em histórias interessantes e cômicas, sem perder o caráter educativo.
No projeto desde 2017, o estudante Pedro Wallison Gomes, 19, já havia se aventurado com cordéis ainda na infância. Agora, reencontrou sua memória afetiva e se reconectou com as palavras e com esta arte tão nordestina. “Acho que hoje sou muito mais presente nesse meio do que era antes”, revela. “Normalmente quando as pessoas vão crescendo, vão deixando para trás o que mais gostavam na infância. Mas quando cheguei na faculdade, chocou de ter um projeto sobre isso e reafirmou tudo”.
A divulgação é o momento favorito do time: lendo em voz alta, declamando como o cordel exige, transformando, mesmo que seja por alguns minutos, a atmosfera pesada das unidades de saúde e ambulatórios em momentos de leveza e educação.
Pedro Wallison explica que a adesão do público através da declamação é maior. “Se eles estão ali (nas unidades de saúde) é porque estão precisando de um médico, já estão com um problema de saúde, estão apreensivos com um resultado”, diz. “Quando chegamos com o cordel, todo mundo já se interessa, escuta, ri com as coisas engraçadas e no final quer comentar”, admira-se.
E assim como o cordel tradicional -- secular e histórico -- trabalhou para aproximar a poesia do povo, aqui ele funciona em via de mão dupla: aproximando a informação da comunidade e o futuro médico da literatura.
Edição: Saúde Popular