Quando se trata de interpretar o que está acontecendo hoje na Venezuela, costuma-se cair em duas tentações. A primeira é fazer diagnósticos a partir de chaves exclusivamente geopolíticas. A segunda é supor que se pode criar caracterizações prescindindo dessas chaves.
Alinhado com aqueles que pensam que as revoluções e as grandes mudanças seguem se desenvolvendo em contextos nacionais, me parece necessário advertir que esses processos apostam seu destino em um mundo cruzado por múltiplos interesses e tensões, não em um tubo de ensaio. O vínculo entre as contradições e processos internos e externos é permanente e se dá de um modo distinto em diferentes momentos históricos.
No caso da Venezuela, a Revolução Bolivariana, que surge do encontro entre um levante (o "Caracazo") e a irrupção de uma vanguarda militar e política liderada por Chávez expressou, antes mesmo de ganhar as eleições, uma forte contradição interna entre as maiorias marginalizadas e as classes beneficiárias do modelo produtivo rentista exportador. Esta luta de classes esteve no centro da disputa iniciada no golpe militar de 2002, para além dos apoios internacionais com os quais a direita contava, que cooperaram com a conspiração.
O fato de que o enfrentamento entre chavistas e antichavistas nos primeiros anos do governo tenham tido um forte caráter de classe, com um componente racial – é também a luta dos negros, mulatos e povos originários contra os brancos – não invalida que, por um lado, o governo de Chávez tenha desenvolvido uma forte iniciativa diplomática promovendo a multipolaridade e buscando alianças na América Latina e nas potências emergentes. Por outro lado, as minorias oligárquicas contaram com o apoio dos Estados Unidos.
O aprofundamento do processo revolucionário nos últimos anos de Chávez, com leis paradigmáticas como a Lei Orgânica do Trabalho, dos Trabalhadores e das Trabalhadores (LOTTT), colocou a Venezuela em uma situação parecida pela qual outros processos transformadores passaram, vistos como “maus exemplos” por todas as forças capitalistas do mundo e, por isso, foram punidos por sua audácia. Na Venezuela, foi registrada uma queda do investimento com diferentes níveis entre aqueles que paralisaram suas aplicações (Rússia e China) e aqueles que se retiraram, esvaziaram suas empresas e criptografaram suas máquinas, como os Estados Unidos e todas as potências ocidentais. Os Estados Unidos deram um passo adiante quando Barack Obama demonizou a Venezuela como "uma ameaça incomum e extraordinária" antes de deixar o cargo de presidente.
A retirada de investimentos para a produção e comercialização de bens de consumo combinou-se, na Venezuela, com uma queda acentuada dos preços do petróleo, colocando a economia nacional em uma situação difícil a partir de 2015, por não ter sido capaz de modificar sua matriz produtiva pois apesar dos muitos esforços realizados a partir da economia comunitária e estatal estava com os mercados desabastecidos por parte das empresas que fugiam ou realizavam sabotagens, e sem dólares suficientes para realizar importações.
Nessa encruzilhada, começou a ser desenhada, no alto governo, uma tendência que costuma ser caracterizada como reformista, que propõe resolver a questão do autoabastecimento de produtos de consumo popular recriando uma aliança com setores da burguesia local (Grupo Polar, El Tunal, etc.) e tratando de atrair capitais de países e mercados marginais, ou modificando a legislação estrangeira e criando “zonas especiais” para atrair novos investimentos. Essa orientação política que inclui devolver algumas empresas e terras a seus antigos donos sofreu resistência por parte dos trabalhadores e camponeses que aumentaram o acirramento entre classes. Cada vez mais, e com mais frequência, acontecem invasões do capital às empresas nacionalizadas e terras de camponeses e, no sentido contrário, invasões de trabalhadores e camponeses nas empresas e terras do capital. O conflito desenvolvido nos últimos tempos no Estado de Portuguesa, onde a propriedade estatal produtora de arroz Arrocera del Alba foi entregue a empresas privadas e recuperada por comuneros, com o saldo de detenções de ocupantes populares é muito ilustrativo. Também é bastante ilustrativo o fato de que em torno deste episódio iniciou-se uma forte polêmica pública na qual os dirigentes do chavismo se enfrentam com posicionamentos importantes.
O enigma de Trump
Sem dúvida, a ascensão de Donald Trump nas eleições presidenciais dos EUA gerou enormes expectativas de mudanças na política mundial. Diante da evidência de que se Hilary Clinton ganhasse, a política de guerra de Obama teria continuidade, os povos de países que estavam na lista de alvos sentiram certo alívio diante da ascensão deste personagem pouco conhecido, salafrário, e de linguagem misógina. Trump criticava as “guerras inúteis” e centrar-se na tarefa de recompor seu próprio capitalismo doméstico.
Os EUA tinham saído da Segunda Guerra Mundial como o grande vencedor em um universo do qual as demais potências antecedentes e emergentes saíram estropeadas. Mas a rápida reconstrução econômica militar da União Soviética impediu que o país norte-americano pudesse impor seu sonho de construir uma ordem unipolar. Depois da queda do Muro de Berlim, o velho sonho do que os yankees reinariam a sós no mundo pareceu renascer. Mas o rápido crescimento da China que, em poucos anos, passou de representar um terço do PIB dos EUA a ultrapassa-lo, e a reconstrução do poder militar da Rússia parecem ter voltado a manchar seus planos. Diante desta nova situação, o discurso de Trump afirmando que sustentar a globalização, inclusive pagar seus gastos militares, estava saindo muito caro para seu país, parecia ter alguma lógica. No entanto, depois de ganhar a presidência este discurso original sofreu algumas mudanças. A primeira modificação foi a advertência de que recompor seu país incluía, claro, assegurar seu quintal (isto é, a América Latina) e assim a Venezuela voltava a estar no olho do furacão.
Sou daqueles que pensam que no tabuleiro da disputa geopolítica entre as velhas potências e as emergentes, a Venezuela teria sido reduzida a mera moeda de troca se não tivesse produzido sucessos extraordinários que incentivaram o envolvimento da China e da Rússia na ofensiva iniciada pelos Estados Unidos contra o governo de Nicolás Maduro.
Motivos esses que, como comentei, não são ideológicos, parecem muito mais uma autodefesa diante de algumas decisões tomadas pelo governo de Estados Unidos, que parecem adiantar movimentos de levar as disputas pela hegemonia mundial ao plano militar. Por exemplo, a decisão de designar John Bolton, conhecido por seu belicismo, como assessor da Segurança Nacional da Casa Branca, ou a decisão de se retirar do acordo de não-proliferação de mísseis de médio alcance, algo que que parece útil à tentação dos assessores de Trump de promover uma guerra nuclear tática “limitada e localizada” contra a Rússia, cujo cenário seria a Europa.
Colocada esta hipótese aos Estados Unidos bastaria que o petróleo e todas as riquezas minerais da Venezuela não estivessem disponíveis para as potências que possam confrontá-lo-lo, para que seus planos se voltassem à destruição do Estado Nacional e sua transformação em um país instável devido a confrontos internos. Como afirma o analista político Thierry Meissan, a estratégia que os Estados Unidos aplicaram nas guerras do Afeganistão, Libia, Iraque, Líbano, Síria e Iêmen, foi a de “destruir previamente as estruturas estatais nos países considerados ‘tanques’ de recursos, de modo que não pudessem se opor à vontade da primeira potência mundial, nem prescindir dela”. Neste projeto de destruição dos Estados-nacionais, as políticas de promoção de destruição das identidades nacionais cumpre um papel importante, como no paradigmático caso da Iugoslávia.
Lá, mobilizando diferenças internas étnicas e religiosas, destroçaram um país que representava um dos experimentos sociais mais inovadores e progressistas do mundo para convertê-lo em seis republiquetas subordinadas às potências ocidentais (Bósnia e Herzegovina, Croácia, Eslovênia, Macedônia, Montenegro e Sérvia). Também tentaram aplicar esta fórmula na Venezuela, promovendo a desintegração dos estados de Táchira e de Zulia, na zona ocidental, e promovendo o separatismo da etnia Los Pemones no Estado de Amazonas.
É evidente que alguma coisa aconteceu no cenário internacional para produzir uma virada nos posicionamentos políticos da China e da Rússia e a consequente decisão de proteger a Venezuela. A viagem de Nicolás Maduro a Pequim, em setembro de 2018, representa um ponto de inflexão na relação entre esses país, superando o que, nas palavras do presidente da Venezuela, tinham sido “dificuldades de relacionamento” nos anos anteriores.
O ataque imperialista contra a Venezuela em um novo cenário mundial e latino-americano
Os fatos do ataque imperalista contra a Venezuela são bem conhecidos, menciono apenas alguns deles:
- Campanha diplomática midiática e global de demonização do processo e do governo bolivariano
- Sanções contra empresas estatais e principais funcionários do governo e chefes das Forças Armadas
- Tráfico de remessas de medicamentos e alimentos importados para agravar a crise do povo venezuelano
- Roubo da refinaria CITGO nos Estados Unidos e fundos públicos em bancos estrangeiros
- Tentativa de assassinato do presidente Maduro usando drones com explosivos
- Deslegitimação do presidente democraticamente eleito e apoio a um presidente autoproclamado
- Ataques cibernéticos na barragem de El Guri, afetando o suprimento nacional de eletricidade e água potável
- Promoção do paramilitarismo e da entrada de mercenários, armas e drogas para fins desestabilizadores no país
- Ameaça permanente de intervenção direta tentando envolver outros governos na América Latina na aventura militar
As razões pelas quais o povo e o governo venezuelano resistem a esses ataques merecem algumas explicações.
Em primeiro lugar, o crescimento do ataque imperialista fez a oposição evaporar como sujeito político. O dilema para o povo venezuelano há alguns anos não é mais se quem governa é Maduro ou uma coalizão de direita (a Mesa de Unidade Democrática, já inexistente), mas: "se governa Maduro ou os Estados Unidos". E, nessa alternativa, as críticas que podem surgir no seio do chavismo em relação às orientações promovidas por Maduro estão em posição secundária diante do reconhecimento de que o governo venezuelano não se rendeu às pressões externas. Para aqueles que não se reconhecem como chavistas (cerca de 40% da população), essa alternativa os desarma politicamente porque lhes faltam opções que garantam a não intervenção estrangeira. O fato do governo dos EUA não estar por trás, mas ter se colocado à frente das tentativas de derrubar Maduro, transformou a disputa em uma questão de soberania nacional.
Essa é a melhor explicação para o fato de que milhões de venezuelanos – que não se identificam com o chavismo e que estão sujeitos a condições de escassez e colapso dos serviços públicos – não compareceram aos protestos de forma massiva, nem impuseram a autoridade do fantoche Guaidó nas ruas. Como aconteceu em Cuba, no ataque em Playa Girón e nos momentos duros do Período Especial, a defesa da pátria é a última trincheira dos processos revolucionários.
A circunstância pela qual os Estados Unidos ainda não apelaram a uma intervenção direta também merece alguns comentários pontuais.
Em primeiro lugar, está fora de questão que os Estados Unidos são a principal potência do mundo em termos de sua superioridade militar. Tem 800 bases militares em 70 países e exércitos implantados em quase todo o mundo, com gastos militares três vezes maiores do que a China. Se o confronto tivesse um caráter global como as duas primeiras guerras mundiais, certamente os EUA seriam invencíveis. Mas acontece que o desenvolvimento tecnológico alcançado coloca a questão de que, se este tipo de confronto se repetisse, colocaria em risco a sobrevivência do planeta.
Pensando em confrontos localizados, outras variantes entram em jogo, como a inserção militar nos lugares de disputa e desenvolvimento tecnológico e, nesse sentido, surpreende que, em termos de tecnologia militar avançada, a Rússia ultrapasse os Estados Unidos. Foi o que o país euro-asiático demonstrou quando interveio na Síria.
Se pensarmos em uma guerra regional envolvendo exclusivamente Colômbia e Venezuela, por exemplo, está claro que há 15 anos o exército colombiano – reserva dos Estados Unidos –, tinha o potencial de aniquilar a Venezuela em poucas horas; mas hoje essa situação se reverteu graças ao poder antiaéreo e de aviação da Força Armada Nacional Bolivariana (FANB) com tecnologia russa.
O segundo aspecto a considerar é que, com a China se posicionando em defesa da Venezuela, os Estados Unidos têm dificuldade de construir uma ampla aliança que envolva diretamente a intervenção militar nos países da região, por razões econômicas. A China é o principal parceiro comercial dos países da América do Sul e sua influência na América Central tem crescido. A influência estadunidense é forte na política, que se expressa nas decisões dos presidentes pró-Estados Unidos de sair da Unasul e ingressar no PROSUL, mas suas burguesias locais estabelecem limites como já ficou claro no caso do presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, que teve que recuar em algumas decisões.
Um análise dos números dessa nova realidade econômica mostra que, entre os anos de 2017 a 2018, o comércio latino-americano registrou que as exportações e importações para os Estados Unidos cresceram 7,5% e 6,5%, enquanto que, no mesmo período, as importações e exportações com a China aumentaram 30% e 23%, respectivamente. Os interesses do capital mais propenso a buscar políticas de complementaridade e maior lucro intervêm na disputa entre governos que continuam agarrados a um mundo unipolar e uma economia que promove a multipolaridade, colocando limites às aventuras militares.
O futuro da Venezuela continua em jogo no país
Numa perspectiva de médio prazo, eu ousaria interpretar que as reservas políticas acumuladas em um país onde Chávez promoveu uma revolução e conseguiu incorporar esse projeto nas maiorias populares, particularmente nas organizações de base lideradas por mulheres dos bairros populares, foram suficientes para resistir à onda neoliberal que, na segunda década dos anos 2000, devastou os governos progressistas da região (Argentina, Brasil, Paraguai, Honduras e Equador) e às pressões e ameaças internacionais em uma situação de isolamento internacional quase absoluta (as exceções foram Bolívia e Cuba), para entrar em uma nova etapa muito mais favorável.
Nesta nova etapa, por razões pragmáticas e geopolíticas, as potências emergentes (China e Rússia) vieram em auxílio, vetando as possibilidades de uma intervenção militar direta e fornecendo pontes que possam aliviar o estrangulamento financeiro. Mas também o futuro está inserido em um universo onde a trama começa a se afrouxar e cresce a convicção entre as burguesias locais que embarcar no trem de Trump traz mais dificuldades do que benefícios. Isto se expressa nos posicionamentos agressivos da União Européia contra o Irã e a Venezuela, na sobrevivência da nação síria, mas também na América Latina com a eleição de López Obrador no México e a quase certa não continuidade do governo de Macri.
Num cenário em que o plano A dos Estados Unidos foi promover um golpe de Estado por parte de um setor das Forças Armadas, o anúncio feito por autoridades colombianas em 23 de fevereiro, de que fariam os militares desertores perder o status de refugiados e os expulsariam em poucas horas, é ilustrativo de como as coisas vão mal para aqueles que embarcaram nos planos de derrubar Maduro.
Essa evidência de que o golpe fracassou e que a intervenção militar está bloqueada, não significa ignorar as condições de deterioração econômica, social e política com as quais o povo e o governo emergem depois de terem passado por anos tão difíceis.
Quando se trata de fazer um balanço das forças disponíveis para avançar, é preciso reconhecer que a melhor notícia econômica parece ser que a de que a economia chegou ao fundo, com os preços do dólar Dicom muito semelhantes ao dólar de hoje, com salários que não podem mais diminuir e um crescimento incipiente de produções de subsistência, que têm a possibilidade de se expandir diante da da evidência de que, do lado da assistência oficial e das importações, não se pode mais esperar por milagres.
O reconhecimento da decisão do Presidente Nicolás Maduro de não se render, de suportar ataques, ameaças, pressões e queixas, apelando a limites extraordinários de resistência e o reconhecimento de seus acertos, não deve invalidar as críticas a algumas de suas decisões que não contribuíram para aliviar a situação do povo. Não é difícil concordar que ele estava certo ao convocar a Assembleia Constituinte, ao criar os CLAPS [Comitês Locais de Abastecimento e Produção], ao manter sua relação com a FANB, que contribuiu para que não se rendessem a manobras golpistas, e ao administrar os tempos para enfrentar encruzilhadas difíceis como a autoproclamação de Guaidó ou a manobra intervencionista disfarçada de missão humanitária.
Também não é difícil concordar que ele estava equivocado em seu apoio a receitas monetaristas para conter a hiperinflação, ao manter no governo ministros por um longo tempo, como o da Energia, que não demonstraram estar à altura das circunstâncias, ou alguns outros, que continuam em seus cargos, que prometiam colocar a burguesia local de volta nos trilhos ou atrair investimentos estrangeiros que nunca chegaram. Finalmente, deve ser reconhecido que, forçado a colocar os sapatos de Chávez, onde a diferença de liderança é mais perceptível, é no exercício do diálogo direto com o povo, em não compartilhar a confiança ilimitada com a qual o comandante contava.
O que resta para seguir adiante é um governo ferido e um povo exausto, mas com algumas vitórias preciosas, como nunca ter perdido a mobilização das ruas e a convicção de ter vencido a batalha contra aqueles que hoje vagam por labirintos mais escuros e sem esperança.
Tempos melhores se aproximam. Ao final de duas décadas do novo século, aqueles de nós em diferentes países da América Latina não renunciamos à Revolução, seremos motivados a fazer um balanço. Em 1999, Chávez assumiu o governo da Venezuela, em 2001, na Argentina, expulsávamos Fernando De la Rua aos gritos de: "Fora todos!!". O que restou daqueles incêndios, vinte anos depois?
*Guillermo Cieza é escritor argentino, coordenador da cátedra Che Guevara na Universidade Nacional de La Plata e militante popular.
Edição: Resumen Latinoamericano | Tradução: Luiza Mançano