Um relatório divulgado no mês de abril denuncia a situação alarmante da atenção à saúde dos 52 mil detentos e detentas dos presídios estaduais do Rio de Janeiro. O número de mortes dentro das unidades saltou de 125, em 2010, para 268, em 2017. A maioria delas em decorrência de doenças tratáveis.
Esse e outros dados apresentados em abril pelo Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura do Rio de Janeiro (MEPCT/RJ), ligado à Assembleia Legislativa do Estado (Alerj), apontam para um colapso na atenção à saúde aos presidiários cariocas, que são submetidos a tratamentos degradantes, com consequências, muitas vezes, fatais.
O MEPCT/RJ foi criado em 2010 com objetivo de monitorar as 50 unidades penitenciárias do estado, como forma de prevenir casos de tortura e outros tratamentos desumanos ou degradantes. O órgão atua, desde 2011, na sistematização das informações que embasaram o relatório intitulado “Sistema em colapso: atenção a saúde e política prisional no Estado do Rio de Janeiro”.
Esse estudo foi apresentado no dia 15 de abril, em uma audiência pública convocada pela Comissão de Direitos Humanos da Alerj após a ocorrência de três casos de morte por meningite em unidades prisionais do estado. Além do aumento de 114% no índice de mortes nos últimos sete anos, o relatório denuncia um descontrole nos casos de tuberculose e o aumento de casos de violência obstétrica contra detentas.
Para Vera Malaguti, doutora em saúde coletiva e professora de criminologia da Universidade Cândido Mendes, a disparada no número de mortes por doenças tratáveis nos presídios do Rio não é casuístico e revela uma cultura perversa do sistema penal brasileiro, que contamina a própria população.
“Temos uma escalada tão grande, que o sistema penal não dá conta. Ao mesmo tempo, a maioria dos governantes em nível estadual, e agora nem se fala em nível federal, tem descaso total por essas pessoas que estão nessas condições. De certa forma, a população brasileira foi educada pelos grandes meios de comunicação para achar que a prisão é a grande solução para os problemas do Brasil”, avalia a professora.
De acordo com o subcoordenador do Núcleo do Sistema Penitenciário da Defensoria Pública do Rio de Janeiro, Leonardo Rosa, o índice de mortes começa a crescer justamente quando cessam os investimentos nos presídios do estado.
“O que tem ocorrido, na verdade, é o desaparelhamento completo do parque de saúde do estado em relação aos presos. A secretaria penitenciária, até 2010, 2011, tinha uma boa rede para a assistência à saúde dos presos, com hospitais psiquiátricos e outros que faziam até operações de grande complexidade. Isso foi sendo desmontado com o tempo”, explica Rosa.
O aumento dos óbitos é diretamente proporcional à superlotação das unidades prisionais. Em 2010, a população carcerária do estado era de 25.514 pessoas, quando a capacidade real do estado era de manter sob custódia pouco mais de 24 mil. Em 2018, o estado do Rio tinha capacidade para abrigar 28.617 presos, mas a população já ultrapassava os 51 mil detentos. No caso da tuberculose, o número de casos saltou de 785 em 2015 para 1.415 em 2018, ou seja, quase dobrou.
Atualmente, o Rio de Janeiro tem hoje mais de 52 mil presos. Somente na capital, são 36.692 pessoas no sistema carcerário. Enquanto o número de presos quase dobrou em sete anos, dados da Secretaria de Estado de Administração Penitenciária (Seap) apontam que em 20 anos, o número de profissionais de saúde dedicados à atenção da população carcerária caiu de 1,2 mil para 450, o que pode ajudar a explicar a situação calamitosa.
“O último concurso para técnica da Seap, médico, enfermeiro, assistente social, psicólogo, psiquiatra, foi em 1998, ou seja, há 20 anos que não se faz concurso. As pessoas ganham pouco, vão se aposentando, ficam desestimuladas, além do que há uma precarização material dos equipamentos, remédios, enfim”, afirma Leonardo Rosa.
Além das doenças infecciosas, o relatório chama a atenção para a necessidade de políticas de saúde específicas para grávidas, lactantes e população LGBT, além do combate sistemático à violência obstétrica à qual muitas detentas são submetidas.
Desde 2007, a Defensoria Pública do Rio de Janeiro já moveu 18 ações civis públicas relacionadas com a violação do direito à saúde nas unidades prisionais do estado. Segundo Rosa, as ações buscam garantir o fornecimento de medicamentos e equipamentos médicos. Contudo, ele alerta que ganhá-las na justiça não tem significado seu cumprimento pelo estado.
“Mesmo que já haja decisões favoráveis, inclusive transitadas em julgado, a implementação delas é muito difícil. A gente esbarra na questão da falta de recursos. O estado não tem recursos para destinar às pessoas privadas de liberdade. Então assim, conforme o linguajar popular, a gente ganha mas não leva”, explica.
Recomendações
O relatório do MEPCT/RJ finaliza com uma lista de 58 recomendações dirigidas a instituições públicas como a Alerj, as secretarias de Administração Penitenciária, de Saúde, Ministério da Saúde, entre outras.
Na lista, especialistas recomendam que a Alerj crie uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) para investigar os contratos e repasses públicos a hospitais da Secretaria de Administração Penitenciária (Seap).
O relatório recomenda às secretarias de Saúde e Administração Penitenciária a adequação do atual modelo de diagnóstico e tratamento de tuberculose no sistema penitenciário, bem como a realização “com urgência e de modo sistemático” do rastreamento de pessoas presas com sintomas de tosse há mais de duas semanas.
No entanto, para a especialista Vera Malaguti, é preciso encarar a realidade do sistema penitenciário com regras claras que busquem evitar a superlotação e permitir a aplicação de políticas efetivas de saúde nas unidades prisionais.
“Para se fazer alguma coisa que melhore as condições dos presos no Brasil, a primeira coisa que se tem que fazer é o regime de números clausos: só pode entrar o número de vagas que tem. Pensa o seguinte: uma CTI tem 20 leitos. Nenhum hospital vai colocar o 21º paciente porque só tem 20 leitos, é impossível. Mas na prisão, isso se quintuplica, quadruplica, triplica. Então enquanto a gente não disser: ‘olha, para entrar um tem que sair outro’… Mas com esse pessoal que está no poder no estado do Rio de Janeiro e em nível federal, eu acho difícil isso acontecer”, argumenta Malaguti.
Saúde é um direito dos presos e presas
Quando uma pessoa é presa, perde alguns dos seus direitos enquanto cidadão, como o direito de ir e vir, mas não todos. O direito à saúde é garantido pela Constituição Federal a toda a população, inclusive es egressos do sistema prisional.
O próprio relatório do MEPCT/RJ destaca que a Constituição Federal, no seu artigo 196, afirma que “a saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”.
O relatório chama a atenção ainda para os acordos internacionais dos quais o Brasil é signatário. “O combate à tortura, maus tratos e a garantia a integridade física das pessoas privadas de liberdade, segundo a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (2011), inclui também o respeito à assistência médica adequada, passando desde um acompanhamento regular até a obrigatoriedade de consulta a qualquer momento que o preso ou a presa assim requeira”, diz um trecho do documento.
Também a Organização Mundial da Saúde (OMS) é taxativa a esse respeito, de acordo com o relatório do MEPCT/RJ: “As pessoas privadas de liberdade terão direito a saúde, entendida como o desfrute do mais alto nível possível de bem-estar físico, mental e social, que inclui, entre outros, a atenção médica, psiquiátrica e odontológica adequada; a disponibilidade permanente de pessoal médico idôneo e imparcial; o acesso a tratamento e medicamentos apropriados e gratuitos; a implementação de programas de educação e promoção em saúde, imunização, prevenção e tratamento de enfermidades infecciosas, endêmicas e de outra índole, e as medidas especiais para satisfazer as necessidades particulares de saúde das pessoas privadas de liberdade pertencentes a grupos vulneráveis ou de alto risco, tais como: os idosos; as mulheres; as crianças; as pessoas com deficiência, as pessoas portadoras de HIV-AIDS, tuberculose, e as pessoas com enfermidades em fase terminal.”
O Brasil de Fato entrou em contato com a Secretaria Estadual de Assuntos Penitenciários através de sua assessoria de imprensa, mas não obteve retorno até a publicação dessa reportagem.
*Com colaboração de José Eduardo Bernardes
Edição: Rodrigo Chagas