Entrevista

Ocupar propriedade não é terrorismo, diz ex-Relator Especial da ONU

Especialista diz que governo Bolsonaro deve usar Lei Anti-terrorismo de maneira “oportunista”

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O PLS 272/2016 tem apoio do presidente Jair Bolsonaro
O PLS 272/2016 tem apoio do presidente Jair Bolsonaro - EBC

Na última quinta-feira, o presidente Jair Bolsonaro afirmou em uma transmissão ao vivo pelo Facebook que nas próximas semanas o governo está escrevendo um novo projeto de lei para tornar ocupações de terra como atos de terrorismo. A ideia é permitir que os proprietários possam, inclusive, atirar para defender suas propriedades.

Já há um projeto de lei que está na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado, representa uma séria ameaça a movimentos sociais como o MST. O Projeto de Lei do Senado (PLS) 272/2016, de autoria de Lasier Martins (PDT/RS), caracteriza como ações terroristas “incendiar, depredar, saquear, destruir ou explodir meios de transporte ou qualquer bem público ou privado”, além de incluir a menção a “motivação política ou ideológica”.

A iniciativa sempre recebeu amplo apoio do presidente Jair Bolsonaro, que há a havia chamado no Twitter de “louvável”. “Suas ações, como incendiar, explodir bens públicos ou privados, devem ser tipificados como TERRORISMO”, escreveu, em caixa alta.

“Eles não deveriam estar usando [as leis antiterrorismo] dessa forma, mas existe um risco alto e muita probabilidade de que vão usar. As leis de Direitos Humanos proíbem governos de usaram as leis antiterroristas de forma tão oportunista,” diz Martin Scheinin, ex-Relator Especial para a Proteção dos Direitos Humanos e as Liberdades Fundamentais na Luta contra o Terrorismo. “Não existe crime de propriedade na definição adequada do terrorismo.”

Responsável pela criação da definição mundial de terrorismo utilizada hoje pela ONU, Martin Scheinin é a pessoa certa para explicar o que configura um ato terrorista. Durante o mandato de Relator Especial que exerceu de 2005 a 2011 redigiu o documento “Dez esferas de melhores práticas na luta contra o terrorismo”, que se tornou um parâmetro da ONU para elaboração de legislação sobre terrorismo no mundo todo. Scheinin também foi membro do Comitê de Direitos Humanos da ONU e integra atualmente o Comité Científico da Agência dos Direitos Fundamentais da União Europeia. Integrou, ainda, como testemunha especializada, o processo da Corte Interamericana de Direitos Humanos que declarou que o conceito de terrorismo não se aplica à luta pelos direitos de terra das populações indígenas.

Em entrevista à Agência Pública, o ex-Relator Especial explica que casos de depredação de bens públicos ou privados deveriam ser julgados na justiça comum. “É um fenômeno bastante conhecido que poderes de combate ao terrorismo sejam facilmente abusados. Eles fornecem mais sigilo, mais poderes de prisão ou detenção e talvez mais confisco de bens do que casos criminais normais”, diz.

Para ele, o risco é ampliar o poder das agências de inteligência – um alerta retumbante em um momento em que foi criada uma força-tarefa permanente de inteligência para combater organizações criminosas e terroristas no Brasil. “Leis antiterrorismo costumam deteriorar a democracia. A tomada de decisões democráticas baseada em uma real objetividade é substituída por uma confiança cega em agências de inteligência. Fica difícil também fiscalizar esses núcleos de inteligência.”

Leia os principais trechos.

Desde o 11 de setembro de 2001, diversas legislações têm sido adotadas em diferentes países para o combate ao terrorismo, mesmo onde não há terrorismo tradicionalmente, como no Brasil. O que os políticos ganham com isso?

Eu diria que existem três tipos de motivação. A primeira delas é a ação simbólica levada a cabo pelos políticos. Ou seja, “a população tem que ver que estamos atuando”. Isso não é uma ação racional e não está baseada em ameaças reais de terrorismo. É um ciclo vicioso de medidas antiterrorismo que são puramente baseadas na necessidade do político de demonstrar que ele é forte diante da população.

O segundo motivo, podemos chamar de complexo industrial de segurança e vigilância. Ou seja: tem tudo a ver com dinheiro. A área da segurança tem se transformado em um negócio altamente lucrativo. Essas empresas se tornaram extremamente poderosas, especialmente nos Estados Unidos, onde você pode traçar ligações diretas entre políticos e essas corporações. Esses são contratos multi-bilionários e obviamente alguém está ganhando com isso. A gente tem que se perguntar: quem é que vai lucrar com isso?

A última motivação é que infelizmente é da natureza humana que qualquer agência do governo querer perpetuar e expandir os seus poderes. E o antiterrorismo tem se tornado uma oportunidade de ouro para os serviços de inteligência. O terrorismo fortalece o poder das agências de inteligência e aumenta a influência que elas têm sobre o governo e sobre a população.

Eu acho que o Brasil pode ser comparado a alguns países europeus. Temos essa mesma situação em vários países Europeus, que não estão sujeitos a ameaças de terrorismo, mas mesmo assim copiam as legislações de outros países. Nesses casos, nós temos aquelas três agendas em curso: uma indústria que vê a oportunidade de lucrar, a agência de inteligência que vê uma oportunidade para ganhar mais poder e os políticos que fazem isso por ganho pessoal. Então é uma situação triste e o Brasil não está sozinho nisso. Muitos outros países enfrentam esse mesmo problema.

Aqui no Brasil o presidente Jair Bolsonaro falou em época de campanha que tínhamos que tipificar as ações feitas pelo MST como terrorismo. Essas leis podem ser utilizadas contra os movimentos sociais?

Bom, é um fenômeno bastante conhecido que os poderes de combate ao terrorismo sejam facilmente abusados. Eles fornecem mais sigilo, mais poder de prisão ou detenção, e talvez mais possibilidade de confisco de bens do que casos criminais normais. Há também a possibilidade de ter um tribunal militar ou um tribunal de composição especial para o julgamento de casos de terrorismo. Portanto, aqueles com esses poderes têm uma tentação, um incentivo, para definir casos comuns como atos terroristas, porque isso expande os seus próprios poderes. O simples ato de definir algo como terrorista, pode ser utilizado para engrandecer os seus próprios poderes.

Na América Latina, nós temos, é claro, a experiência chilena, em que os líderes dos indígenas Mapuches foram acusados e condenados por terrorismo [Em 2003, indígenas que protestavam pela recuperação de suas terras foram condenados a duras penas por supostos delitos terroristas que incluíam incendiar propriedades públicas e privadas]. Houve um conflito de terra em que indivíduos não identificados danificaram uma propriedade privada de alguns donos de terras, e os líderes das comunidades de Mapuches foram processados por terrorismo, mesmo sem provas que os ligassem diretamente a esses ataques. A Corte Inter-Americana de Direitos Humanos encontrou violações por parte do governo do Chile no caso e declarou que o conceito de terrorismo não se aplica à luta pelos direitos de terra das populações indígenas.

Você acha que algo assim, como aconteceu no Chile, pode acontecer aqui no Brasil?

Definitivamente. Eu definitivamente vejo um risco. Sempre que há poderes específicos e legislações específicas, há o risco dessa noção de terrorismo ser expandida, abusada e usada para outros propósitos.

A legislação antiterrorismo deve ser aplicada em alguns casos de dano ao patrimônio?

Foi uma grande parte do meu trabalho como Relator Especial Proteção dos Direitos Humanos e as Liberdades Fundamentais na Luta contra o Terrorismo investigar as definições de terrorismo em um vasto grupo de países. E claro que eu utilizei as convenções das Nações Unidas sobre o combate ao terrorismo e um relatório e uma resolução [a 1566] feitos pelo Conselho de Segurança das Nações Unidas.

Através desses documentos, é possível conceber uma definição adequada do que é terrorismo, que consiste basicamente em dois elementos. Um deles é a intenção, que deve unicamente ser aterrorizar os civis, criando fortes níveis de medo entre a população ou compelindo o governo a agir ou deixar de agir. Como, por exemplo, criar uma situação de refém em que você tenta chantagear o governo a fazer algo. Esses são os elementos intencionais do terrorismo. O segundo é o elemento objetivo de um crime, que deve ser violência grave ou mortal contra indivíduos. E ponto final.

A situação a que você se refere não tem nenhum desses elementos. Se são simplesmente manifestações políticas, não são esforços de ilegalmente compelir o governo.

Não existe crime de propriedade na definição adequada do terrorismo. Claro que existem situações em que ataques contra propriedade privada são realizados na intenção de cortar a energia de hospitais ou de inundar um vilarejo… Isso é uma forma de terrorismo porque, através desses atos, há a intenção de causar a morte de pessoas. Mas não é pelo ataque à propriedade em si, e sim pela intenção de matar pessoas.

Um dos casos citados como exemplo pelo autor do Projeto de Lei, Lasier Martins, foi uma manifestação contra a reforma da Previdência, em maio de 2017. O protesto saiu de controle e alguns manifestantes atearam fogo ao prédio do Ministério da Agricultura. Você acha que esse caso configura uma ação terrorista?

Bom, se, em seu desenrolar, uma manifestação levar alguém a pôr fogo em um prédio do governo, eu diria que isso não se parece com terrorismo. Um ato terrorista é sempre planejado como um ato terrorista. Então, caso houvesse um plano de que nós, como grupo terrorista, utilizamos e tomaríamos controle de uma manifestação pacífica para outros propósitos e, durante a manifestação, incendiaremos uma escola e matássemos crianças dessa escola, esse seria um ato premeditado de terrorismo. Mas não pelo ato em si de pôr fogo em um edifício, mesmo sendo esse um edifício público. Não. Alguém teria de investigar e ter provas de que houve uma intenção terrorista por trás disso.

O projeto em discussão no Senado brasileiro prevê punições a quem “louvar” ou der abrigo a pessoas classificadas como terrorista. Como você avalia essa medida?

Eu acho essa medida está sujeita ao abuso de poder, porque significa que pessoas serão punidas não pelo seu envolvimento com terrorismo. Para mim, é totalmente suficiente haver leis penais sobre auxílio em crimes. Se alguém abrigar um terrorista no propósito de ajudá-lo, isso deveria ser considerado um crime. Não tem como essa pessoa saber que abrigou alguém que futuramente vai cometer um ato de terrorismo.

O que você apontou pode se tornar uma forma coletiva de punição, o que foi uma questão bastante extrema em Israel, onde familiares de terroristas foram punidos, inclusive através da demolição de suas casas. A punição coletiva deve ser excluída, e as pessoas devem ser punidas pelas suas próprias ações.

Durante a campanha, Bolsonaro disse: “Vamos botar um ponto final em todos os ativismos no Brasil”. Existe a possibilidade do governo brasileiro utilizar as leis antiterrorismo contra manifestações?

Eles não deveriam estar usando [as leis antiterrorismo] dessa forma, mas existe um risco alto e muita probabilidade de que vão usar. Isso não deveria ser permitido. As leis de direitos humanos proíbem governos de usaram as leis antiterroristas de forma tão oportunista. Isso acontece em diferentes partes do mundo, e é uma trágica lição de que sempre há a tentação de abusar dos poderes de combate ao terrorismo para outras finalidades. Esse risco de abuso em si é uma boa razão para que haja restrição as entidades que aplicam as leis antiterroristas e para que sejam submetidas a revisões periódicas por terceiros.

A guerra ao terror tem causado danos aos direitos humanos no mundo?

Logo depois do 11 de setembro, houve um recuo bastante grave em que governos ocidentais esqueceram de suas promessas relacionadas aos direitos humanos e fecharam os olhos às violações ocorridas em outros países e começaram a se envolver em práticas que claramente violam direitos. Nós nunca nos recuperamos dessa fase. Até 2001, os países ocidentais, talvez de maneira hipócrita, agiam como se fossem os protetores dos direitos humanos no mundo, exigindo prestação de contas de outros países. Mas depois alguns dos mais sagrados direitos humanos foram comprometidos, como a proibição à tortura. Hoje em dia, ouvimos o discurso de que, sim, de vez em quando [se tortura]. E com frequência, temos um cenário em que pessoas veem como justificável sacrificar um direito individual.

Então houve um grande retrocesso.

De que forma as leis antiterrorismo podem enfraquecer a democracia?

Leis antiterrorismo costumam deteriorar a democracia, sim. Uma das razões é o sigilo. Ou seja, as pessoas, e nem mesmo os legisladores, são informados dos fatos verdadeiros. A tomada de decisões democráticas baseada em uma real objetividade é substituída por uma confiança cega em agências de inteligência.

Fica difícil também fiscalizar esses núcleos de inteligência porque alguns cargos ficam sujeitos a avaliações de segurança. Por exemplo, você não pode se tornar membro de uma comissão de ética a não ser que passe por uma avaliação de segurança, o que significa um enfraquecimento do poder de fiscalização dessa comissão. Os membros da comissão têm menos autonomia porque são supervisionados por aqueles que deveriam estar sujeitos à supervisão. Aí, nem todas as informações são repassadas aos legisladores já que apenas um círculo interno tem as informações, mas não as repassa. Então, a democracia se deteriora.

Alguns críticos dizem que o combate ao terrorismo deve-se dar mais na questão do financiamento das organizações terroristas do que no recrudescimento da legislação. Você concorda com essa visão?

Sim. Eu definitivamente acho que os esforços devem ter como foco investigativo os rastros do dinheiro e as armas, munições e explosivos utilizados na construção de bombas. Há muito a ser feito em termos de rastreamento de substâncias e de itens físicos. Portanto, a fiscalização também deve ficar em cima do dinheiro, das armas, produtos químicos e bombas, não somente das pessoas.

Como podemos aprender com a lição de outros países que cometeram erros no campo do antiterrorismo?

Um dos outros países com quem o Brasil pode aprender é a Espanha. Na Espanha, temos uma questão bastante problemática de um tribunal especial com jurisdição nacional para casos de terrorismo, a Audiência Nacional. Por isso, no país Basco, protestos comuns de rua, como atirar pedras ou grafitar, resultaram em sentenças muito duras de terrorismo. Portanto, a lição que tiramos da Espanha é de que, para casos de terrorismo, devemos confiar em tribunais e legislações normais em vez de confiar em tribunais e procedimentos especiais.

Como segundo exemplo, acho que é possível tirar ensinamentos da experiência de Israel. Fiz uma visita ao país e apontei para a importância do profissionalismo no combate ao terrorismo para que não sejam alienadas minorias, ou até famílias inteiras, através de fortes violações de direitos humanos em controles de segurança e de fronteira.

Quando introduzidas as éticas profissionais e humanitárias, se consegue conter os danos causados pelo combate ao terrorismo. Humilhar mulheres nos pontos de verificação, por exemplo, mais tarde, pela frustração e pelo ressentimento, transforma os homens de suas famílias em terroristas. Essas táticas mais geram terrorismo do que previnem. 

Edição: Pública