Um estudo do perfil de raça e renda da população afetada pelo rompimento da barragem da Vale em Brumadinho (MG), há três meses, indica que os maiores afetados pela tragédia foram a população negra e de baixa renda.
Na área atingida pelos primeiros quilômetros do caminho do rejeito, 63,8% da população era de não brancos. Esse índice é superior às médias da população municipal (52,5%) e estadual (54,6%). Nas áreas indicadas como as que têm populações e residências mais atingidas, os percentuais são ainda maiores. Em Parque Cachoeira, não brancos chegavam a 70,5%.
Já a renda média na região, em 2010, ano de realização do último censo, era de R$ 475,25; ou seja, 7% a menos que o salário mínimo do período.
Os dados constam no relatório Minas não há mais: avaliação dos aspectos econômicos e institucionais do desastre da Vale na bacia do rio Paraopeba. O documento foi lançado em abril por um grupo de oito pesquisadores de diferentes universidades do país.
O Brasil de Fato conversou com o pesquisador Lucas Magno, professor no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Sudeste de Minas Gerais e integrante do PoEMAS, o grupo multidisciplinar e interinstitucional que realizou a pesquisa. Por causa da análise, o pesquisador afirma que é possível dizer que a tragédia também foi um caso de racismo ambiental.
“Há um padrão no Brasil e no mundo também de que grandes impactos acontecem, geralmente, em lugares onde a população negra e não branca é majoritária. E, no caso do desastre em Brumadinho, isso se repete.”
Ele explica que o relatório tem o objetivo de mostrar o alto grau de poder da mineradora Vale e sua pressão sobre as instituições de controle. Segundo os pesquisadores, isso tende a aumentar o risco de grandes desastres, como o que ocorreu em Brumadinho e deixou 233 mortos identificados e 37 desaparecidos.
Confira abaixo a entrevista com o pesquisador.
Brasil de Fato: Quais os objetivos do novo relatório do PoEMAS?
Lucas Magno: O grupo PoEMAS surge para pautar esse debate da mineração no cenário brasileiro. Ele foi feito por muitas mãos: são oito integrantes de sete instituições diferentes que pensam esse debate mineral no contexto brasileiro.
O relatório foi uma demanda que surgiu depois que começamos o ano com o desastre [de Brumadinho]. Foram três meses de estudo de documentos públicos, institucionais, de licenciamentos ambientais, documentos sobre a Vale que estão disponibilizados na internet, sobre o estudo ambiental da barragem e sobre o complexo do Córrego do Feijão e de Jangada, como um todo.
Então, são várias cabeças, de várias instituições, que pensam a mineração no contexto brasileiro a partir do seu lugar — seja sudeste de Minas Gerais, Goiás —, e que sentimos a necessidade de falar alguma coisa para abrir o debate. O relatório vem muito mais para abrir o debate com a sociedade do que para mostrar respostas prontas ao que aconteceu.
Quais os destaques do conteúdo do relatório?
O relatório “Minas não há mais” traz dados novos com relação à governança corporativa da Vale, de 2017 a 2019; dados sobre o processo de licenciamento ambiental em Minas Gerais, que teve mudanças significativas da legislação — que se tornou mais flexível para as grandes empresas; e também dados relativos aos trabalhadores da Vale, terceirizados, que foram os principais atingidos com esses desastres.
O grande argumento do relatório é que, quando as grandes corporações, como a Vale, obtêm um alto grau de poder sobre outros agentes, as instituições deixam de funcionar como deveriam. Um exemplo disso é o financiamento de campanhas eleitorais. Embora ele tenha sido proibido, as mudanças na legislação ambiental mineira, por exemplo, foram fundamentalmente influenciadas pelos deputados da legislatura passada, que foram financiados, boa parte deles, pelo setor. Inclusive o governo de Fernando Pimentel — que recebeu R$ 1,5 milhão da Vale. Foi o poder executivo que fez a proposta da mudança de legislação ambiental do estado.
E, para além do financiamento, tem uma mudança de governança da própria Vale, que passou a atender muito mais seus acionistas do que a investir em segurança operacional, por exemplo. Ou seja, ela atende muito mais às instituições financeiras e deixou de lado atender as atividades operacionais, incluindo o sistema de segurança.
O relatório também traz o perfil das vítimas do desastre de Brumadinho. O que foi encontrado?
A primeira coisa é que a gente não quer diferenciar atingidos brancos ou pretos, todos são atingidos. Mas há um padrão no Brasil e no mundo também de que grandes impactos acontecem, geralmente, em lugares onde a população negra e não branca é majoritária. E, no caso do desastre em Brumadinho, isso se repete. Então, todos são atingidos, em maior ou menor grau, mas a gente vê a predominância de pretos e pardos nessa região, segundo dados do IBGE. Então, a maior parte dos moradores era de populações não brancas.
E muitos trabalhos terceirizados também têm esse padrão: são os de menores salários e são geralmente ocupados pela população negra. Grande parte dos mortos foi de trabalhadores terceirizados. Então, há uma predominância. Isso ocorreu em vários acidentes no Brasil, mas em Brumadinho ficou evidente isso.
Outra questão que o relatório traz é a relação da Vale com a elaboração e a formulação de políticas públicas. O que foi possível concluir sobre a relação política da mineradora?
Na parte das relações de trabalho, o relatório mostra que, no município de Brumadinho, 26% das relações de trabalho são ligadas à Vale. Isso sem contar os terceirizados que entram no setor de serviços. Então, você tem uma dependência muito grande em relação à empresa. O município fica praticamente refém da empresa — como aconteceu em Mariana, onde há um movimento hoje de "Volta Samarco", porque boa parte da renda dos trabalhadores do município vem da mineração e a mineradora acabou demitindo seus funcionários.
No caso de Brumadinho, a gente tenta antever esses problemas. Se eu tenho um município em que de 20% a 25% das pessoas trabalham na mineradora e a mineradora está parada, 25% da população vai estar sem emprego. Então, isso também vai ser um problema para o município.
Mas, para além disso, uma série de recursos que voltavam ao município por causa da mineração acaba cessando. E a mineradora tem grandes poderes e acaba influenciando decisões na Câmara Municipal, na Prefeitura... A mineradora acaba sendo uma grande ordenadora do território. E a gente indicou isso no relatório, mostrando que isso vai ser um problema que Brumadinho vai passar a enfrentar.
O relatório finaliza com recomendações para limitar esse poder das mineradoras. Quais são as principais?
A gente indica uma série delas. Uma das principais é o problema que chamamos de automonitoramento de barragens pelas empresas. Hoje são elas que contratam outras empresas de auditoria para fazer a avaliação da estabilidade da barragem ou não. A gente pede o fim do processo de automonitoramento das barragens, que os auditores sejam escolhidos de forma independente e que, mesmo que sejam monitorados pelas empresas, o estado tem que reivindicar e fazer o sorteio.
Outra recomendação é a constituição de comissões mistas de monitoramento de segurança de barragens, que inclui técnicos, trabalhadores e representantes das próprias comunidades. As comunidades levantam muitas questões com relação às barragens, e a gente precisa ouvi-las.
Com relação à legislação, a gente pede essas mudanças no processo de licenciamento ambiental de forma a tornar o processo mais rigoroso. O que a gente viu a partir de 2015 foi uma flexibilização dessas leis. Se antes o licenciamento de determinados empreendimentos passava por três fases — licença prévia, licença de instalação e licença de operação —, agora eles passaram a fazer o que chamam de LAC, Licença Ambiental Concomitante, que faz as três fases numa única. É necessária uma mudança no processo de licenciamento ambiental, de modo a torná-lo mais rigoroso, particularmente no estado de Minas Gerais.
Outro ponto é o fortalecimento dos órgãos de fiscalização e controle, tanto no setor mineral quanto na área ambiental. Hoje temos uma precarização desses órgãos, não há mais concurso público porque, se não engano, são 35 funcionários no Brasil inteiro para fiscalizar barragens que não dão conta na Agência Nacional de Mineração (ANM). A gente precisa fortalecer esses órgãos fiscalizadores.
Por fim, outra coisa que destacamos é a obrigatoriedade das mineradoras em prover recursos direcionados ao fechamento das minas, um plano de fechamento das minas para que a barragem não fique abandonada e, mais cedo ou mais tarde, ela acabe se rompendo e novos desastres ocorram.
Também há um conjunto de legislações que estão desconexas ou perdidas. Propomos uma legislação que explique as normas e as diligências operacionais das barragens, ou seja, o que é descaracterização, descomissionamento, desativação... Com o desastre de Brumadinho, a ANM soltou uma portaria definindo algumas coisas, mas ela não define esse conceito de forma clara, o que ainda acaba causando várias confusões. Então, a gente precisa de uma legislação que defina isso de forma muito mais clara, que hoje a gente não tem, entre outros muitos pontos.
Edição: Cris Rodrigues