O debate em torno do chamado “pacote anticrime”, articulado pelo ministro da Justiça, Sérgio Moro, deverá se intensificar em breve no Congresso Nacional. O Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) prepara um documento com contrapontos técnicos que deverão ser apresentados ao Legislativo para aprofundar a discussão sobre a medida, que tramita sob o nome de Projeto de Lei (PL) 882/2019 na Câmara dos Deputados e de PL 1864/2019 no Senado.
A ideia é que o material seja apresentado nas próximas semanas, mas entidades que colaboram tecnicamente com a OAB na elaboração do documento já têm se movimentado contra diferentes pontos da proposta.
É o caso do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim), que produziu uma nota técnica destacando a preocupação com diversos aspectos que cercam o PL. Em primeiro plano, a entidade critica a falta de apresentação de dados técnicos por parte do governo para embasar as medidas propostas. Além disso, se queixa da ausência de debate entre Ministério da Justiça (MJ), academia e sociedade civil organizada antes da elaboração da matéria. Na nota divulgada, o IBCCrim classifica a conduta da pasta como “antidemocrática” por não ter procurado ouvir especialistas da área.
“Poderia ter sido montado um grupo e terem sido apresentadas ideias pra que pensássemos num projeto que efetivamente correspondesse aos anseios garantistas, democráticos, mas não foi o que ocorreu. [Isso] gera um prejuízo muito grande não só à produção normativa que vai sair disso, mas principalmente às garantias de direito, que ficam fragilizadas quando se monta um projeto dessa magnitude sem ouvir o que está ao redor”, argumenta Cláudia Barrilari, coordenadora do IBCCrim.
Prisão após segundo instância
Doutora em Direito Penal pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), Barrilari critica, por exemplo, a execução antecipada da pena. O texto do PL prevê, assim, alterações no Código de Processo Penal para legalizar a prisão após segunda instância.
O tema, exaustivamente debatido no país nos últimos anos, tem tido centralidade na disputa jurídico-política que circunda casos como o do ex-presidente Lula (PT), preso há mais de um ano em Curitiba (PR), sem que o processo tenha tido trânsito em julgado.
“O que ocorre é uma fragilidade que foi sendo conferida ao princípio da presunção de inocência. Esse é um princípio constitucional. Nós temos essa previsão no artigo 5º e ele começou a ser vulnerabilizado, fragilizado com essa possibilidade de execução antecipada da pena”, ressalta Cláudia Barrilari, acrescentando que modificações dessa natureza somente poderiam ser propostas por meio de emendas constitucionais, e não de projetos de lei, como é o caso do pacote de Moro.
Sigilo profissional
Também provoca reações do IBCCrim e de outras entidades o trecho do PL que prevê a interceptação de advogados em parlatório, que significa, na prática, a gravação de conversas entre advogado e cliente preso.
Os especialistas apontam que a medida se contrapõe ao Estatuto da Advocacia, que assegura o sigilo profissional, e também ao artigo 133 da Constituição, que aborda a “inviolabilidade” dos atos e manifestações dos advogados no exercício da profissão.
“Atingir o sigilo profissional é atingir a alma da atividade advocatícia. Não é de aceitar uma alteração nesse sentido”, critica a coordenadora do IBCCrim.
Para a dirigente, ao afetar a atividade dos advogados, a alteração pode trazer problemas de outra ordem. “Qualquer desequilíbrio nessa relação entre advogado e cliente ou qualquer quebra de garantia nesse sentido vai ter reflexo no direito de defesa. Então, é necessário manter o equilíbrio que o sistema exige para permitir o efetivo exercício da atividade”, sublinha.
"Legítima defesa"
Outra organização cujo entendimento deverá ser considerado no material que está em formulação no Conselho Federal da OAB é o Colégio Nacional dos Defensores-Gerais (Condege), para o qual também o PL reúne diferentes problemas.
O presidente da entidade, Marcus Edson, destaca a preocupação com o chamado “excludente de licitude”, que prevê a ampliação do entendimento sobre o que é legítima defesa na atuação das forças de segurança pública. Ele aponta que a medida tende a estimular arbitrariedades.
“Na nossa visão, isso pode vir a incentivar a minoria de maus servidores das forças de segurança pública. A gente vê que isso já vem sendo legitimado por discursos políticos”, afirma o presidente, citando o crime que vitimou o músico Evaldo Santos Rosa no último dia 7 no Rio de Janeiro (RJ).
Na ocasião, o carro em que Rosa trafegava foi alvejado por 80 disparos feitos por militares do Exército. O caso chegou a ser tratado como “incidente” pelo presidente Jair Bolsonaro (PSL), numa declaração que ajudou a endossar o clima punitivista que marca os discursos do governo.
As estatísticas ajudam a ilustrar a preocupação levantada pelo Condege: segundo dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) e do Núcleo de Estudos da Violência (NEV) da USP, em 2017, por exemplo, somente no estado de São Paulo, 19,5% das mortes violentas foram provocadas por policiais. Além disso, três quartos das vítimas eram jovens negros.
“Evidentemente, as pessoas mais atingidas por esse projeto seriam as pessoas pobres, carentes, negras, moradores de comunidades em regiões periféricas das cidades do país”, pontua Marcus Edson.
Execução penal
Outros dispositivos do PL também chamam a atenção da entidade, como é o caso das mudanças previstas para a execução penal. O pacote de Moro prevê mudanças no cumprimento de penas, com endurecimento das normas para a progressão de regime.
Assim como as demais entidades da área, o Condege destaca a preocupação com a superpopulação carcerária. O país não tem dados recentes a esse respeito, mas a última estatística do Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (Infopen), de 2016, mostrou que o número de presos chegou a 726 mil no período, com déficit de 358 mil vagas no sistema.
No que se refere ao delito, por exemplo, 15% dos presos respondem por furto ou receptação e cerca de 24% são acusados de roubo. Para Marcus Edson, a proposta do governo dificulta a administração dos números e prejudica a lógica da reinserção social dos detentos.
“A gente sabe que dificilmente [isso] vai colaborar pra ressocialização do preso e vai aumentar ainda mais o período dele de encarceramento, e essa não é a solução. Nossa ideia é que devemos utilizar meios alternativos pra ressocialização, e não o endurecimento do que já não vem dando certo”, argumenta.
Ministério
O Brasil de Fato tentou ouvir o Ministério da Justiça a respeito das críticas levantadas pelas fontes ouvidas nesta matéria, mas a instituição não deu retorno até o fechamento da reportagem.
Edição: Aline Carrijo