O julgamento de um processo judicial, envolvendo demarcação de parte da terra do Povo Xokleng, será histórico, já que o STF terá a oportunidade de reafirmar o seu papel de guardião constitucional e ratificar o caráter pluriétnico e multicultural do país. Esta é a análise de Adelar Cupsinski, Rafael Modesto dos Santos e Vanessa Rodrigues de Araújo, assessores jurídicos do Cimi.
Em julgamento no Supremo Tribunal Federal (STF), o Recurso Extraordinário 1.017.365 poderá definir o futuro dos povos indígenas do Brasil. Em decisão publicada em abril, a Suprema Corte reconheceu, por unanimidade, a repercussão geral do caso envolvendo um pedido de reintegração de posse movido pela Fundação do Meio Ambiente do Estado de Santa Catarina contra a Fundação Nacional do Índio (Funai) e indígenas do povo Xokleng, que ocupam uma área reivindicada — e já identificada nos estudos antropológicos — como parte de seu território.
O STF admite, com a decisão, a necessidade de fixar uma tese que servirá de referência a todos os casos envolvendo terras indígenas. O que está em jogo é o reconhecimento ou a negação do direito mais fundamental a esses povos.
É somente na relação com os seus territórios que a imensurável riqueza étnica e cultural ensejada pelos povos indígenas pode existir. A natureza respeitosa desse vínculo se evidencia no fato de que suas terras são ilhas de preservação das matas e da biodiversidade.
A Constituição de 1988 consagrou a tradição legislativa estabelecida desde o período colonial, a “teoria do indigenato”. Ao aplicá-la, os constituintes reconheceram o caráter originário — portanto, anterior ao Estado — do direito dos indígenas sobre suas terras.
Tal reconhecimento garante que os povos que sobreviveram ao genocídio de cinco séculos e ao projeto integracionista da ditadura militar tenham, hoje, o direito de viver em suas terras tradicionais.
Entretanto, setores interessados na exploração desses territórios, ligados especialmente ao agronegócio e à mineração, vêm questionando judicialmente esse direito. Defendem uma interpretação constitucional perversa conhecida como tese do marco temporal, que restringe o direito dos indígenas às terras que estavam sob sua posse em 5 de outubro de 1988 e legaliza as violências a que foram submetidos antes da Constituição Cidadã.
É a disputa entre ambas as teses que deverá ser arbitrada pelo STF ao julgar o caso Xokleng. Temos duas saídas possíveis. Uma é a garantia de um direito determinado pela Constituição, reafirmando o caráter originário dos povos indígenas e pondo fim a conflitos.
A outra é a legalização do esbulho e das violações ocorridas no passado e a exclusão sociocultural dos povos originários. Caso a Corte opte pela tese anti-indígena do marco temporal, pode-se prever uma enxurrada de outras decisões anulando demarcações, com o consequente acirramento de conflitos. Esta decisão ainda incentivará um novo processo de esbulho possessório de terras demarcadas que, de modo ilegal, já está em curso.
Em decorrência da importância do tema, o relator do caso, ministro Edson Fachin, defendeu a ampla participação dos setores interessados, a partir da figura do amicus curiae.
O caso Xokleng será um julgamento histórico, no qual o STF terá a oportunidade de reafirmar o seu papel de guardião constitucional e ratificar o caráter pluriétnico e multicultural do Brasil. Caso contrário, assistiremos atônitos à continuidade do extermínio físico e cultural dos povos indígenas.
* Adelar Cupsinski, Rafael Modesto dos Santos e Vanessa Rodrigues de Araújo são da assessoria jurídica do Conselho Indigenista Missionário (Cimi)
Edição: Marcelo Ferreira