O 13 de maio não nos tornou economicamente livres nem politicamente autônomos
Por Maysa Carvalhal Novais*
‘Contra-atacar, contra-atacar
Eu vou traçando vários planos
Pra poder contra-atacar
Nas veias abertas da América Latina
Tem fogo cruzado queimando nas esquinas
Um golpe de estado ao som da carabina, um fuzil
Se a justiça é cega, a gente pega quem fugiu
Justiça é cega (contra-atacar)
Justiça é cega (eu quero contra-atacar)’
Não é por acaso que para falar de resistência popular inicio com versos de Baiana System, banda ritmada com os tambores africanos e radicada em Salvador (BA), pequena África de malês, bantus, geges, nagôs, que guarda a memória ancestral de lutadores (as) como Luiz Gama, Tia Ciata, Maria Felipa e que sob o comando de Luisa Mahin organizaram a grande revolta sob o alerta de esperança na língua dos orixás: “é aminhã”.
O golpe jurídico-parlamentar-midiático que abriu caminho para a ascensão conservadora que culminou na eleição fraudulenta do clã bolsonarista vem deflagrando golpes diários contra a classe trabalhadora, representada em sua maioria por uma população negra. O racismo estrutural ganha contornos mais perversos com a violência do discurso e das práticas racistas de um governo atrelado aos interesses da elite branca conservadora.
Consta nos dados, nos atlas, nos anúncios, nas notícias, nos plantões de meio-dia: está lá o corpo negro estendido no chão, na mira do Estado-policial, é alvo, ora do gatilho, ora da caneta que condena ao encarceramento ou à execução sumária nos morros onde a lei do asfalto não tem vez. O cano do fuzil que dispara 80 vezes sem a existência de confronto e a possibilidade de defesa escancara a chaga aberta da desvalorização das vidas negras encaradas como a carne mais barata do mercado.
Seja pelo perfil da nossa população carcerária (atualmente a terceira maior do mundo) em que a matéria punível é a própria racialidade negra como elucida Suely Carneiro, seja na eleição racial como bode expiatório para uma desastrosa política de segurança pública, os mecanismos de controle social apontam para uma prática de genocídio**. Para Vilma Reis, em relação à juventude negra, "quem não é preso, já foi morto". Vivemos uma política criminal com derramamento de sangue e nesse sentido precisamos desvendar quais as funções declaradas e as funções reais dos mecanismos penais em nome da segurança pública.
O racismo como motivação da política de (in)segurança pública se encarrega da formação ideológica dos inimigos públicos e da criminalização da pobreza centrada na repressão punitiva marcada por ilegalidade e abusos. O fortalecimento da ideia do inimigo tem um papel também na produção do medo: o ‘caos’ da criminalidade demanda uma ação radical do governo que, herdando o legado do modelo da Segurança Nacional, exalta o heroísmo representado na militarização (sem revelar as consequências funestas com as vidas em risco e a má formação do corpo policial).
Na contramão dos estudos a respeito da alta letalidade de comunidades negras vítimas de intervenções policiais, o chamado “Projeto de Lei Anticrime” proposto pelo então Ministro da Justiça e Segurança Pública, entre outros problemas, configura a ação de policiais em determinadas situações de combate como legítima defesa, pretendendo dar carta-branca em uma espécie de blindagem jurídica para a atuação de policiais.
Esta previsão minimizaria a responsabilidade penal dos agentes, importando na não aplicação ou redução da pena pelo juiz se a justificativa para a reação do agente de segurança decorrer de medo, surpresa ou violenta emoção. Isto é ainda mais problemático em casos onde flagrantemente não há sinais de confronto, como os recentes casos no Rio de Janeiro de homicídio do músico Evaldo Rosa dos Santos, morto com 80 tiros e da chacina no morro do Fallet. Na prática, é o agravamento do genocídio negro em curso.
Há seis dias da data em que a historiografia oficial elegeu como marco da abolição da escravatura pela suposta realização benevolente da casa imperial, devemos reivindicar esse marco histórico para dizer que “treze de maio não é dia de negro”, já que não nos tornou nem economicamente livres nem politicamente autônomos. Além de atender exclusivamente aos interesses econômicos da classe dominante sem se preocupar com a integração do negro no mundo do trabalho, a estigmatização do negro associada à condição escrava fez com que deixassem de ser escravos e se tornassem criminosos e, como criminosos, escravos do Estado***.
O 13 de maio que se aproxima é dia de recordarmos os levantes negros e o surgimento dos quilombos como organização da resistência denunciando a falsidade da libertação oficial e cobrando, como dizia Florestan Fernandes, por uma segunda abolição erigida pelos negros e para os negros.
Sabemos que a história provém do contexto, mas as soluções vêm da realidade e da nossa atuação para transformação dela, de modo que a agenda de resistência popular deve estar cada vez mais pautada na luta antirracista que também é anticapitalista e antipatriarcal. Se lembrarmos da luta organizada contra o apartheid e as palavras de ordem que agitaram as massas, atentaremos para uma lição central no momento político atual: a emancipação é poder nas mãos do povo. Os sonoros gritos ecoavam “Amandla! Awethu!”(“poder em nossas mãos”) e diziam, em outras palavras, “quem conhece a liberdade sem olhar no dicionário está traçando vários planos para poder contra-atacar”.
* Maysa Carvalhal Novais é advogada e mestre em direito pela UFRJ.
** O uso sem restrições do conceito de genocídio aplicado ao negro brasileiro foi cunhado por Abdias do Nascimento, em que o autor denuncia as variadas estratégias históricas de apagamento da identidade negra como projeto de genocídio físico e simbólico dos negros em diáspora.
*** DAVIS, Angela. A democracia da abolição: Para além do império, das prisões e da tortura. Rio de Janeiro: DIFEL, 2009.
Edição: Daniela Stefano