A tentativa de enfraquecer a Lei de Acesso à Informação (LAI), o livre acesso de familiares ao governo, a caixa-preta envolvendo o anteprojeto da Reforma da Previdência, o “chapa-branqueamento” da TV Brasil, a extinção de conselhos, os cortes no Censo, a desautorização do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Representantes de entidades civis identificam retrocessos e incertezas no que diz respeito ao trato da coisa pública no governo Jair Bolsonaro (PSL).
Em entrevista ao Brasil de Fato, o diretor executivo da Transparência Brasil, Manoel Galdino, disse que ainda é pouco tempo para fazer uma análise aprofundada sobre os rumos do governo em relação à transparência. No entanto, os pontos elencados acima podem indicar um recuo em relação a políticas que vinham aprimorando essa questão.
“Nos últimos 25 anos, a gente vê uma crescente evolução na transparência, na institucionalização do país, no aperfeiçoamento dos mecanismos e órgãos de controle. As instituições brasileiras têm avançado no sentido de reduzir patrimonialismo e personalismo, de ter uma atuação mais profissional, menos ‘amadora’, dos mecanismos de controle do próprio Estado. Os governos do PSDB, do PT e mesmo do (emedebista Michel) Temer aperfeiçoaram nesse sentido.”
Patrimonialismo pode ser definido como a mistura entre público e privado. O termo descreve a falta de distinção entre o que pertence ao Estado e o que pertence ao detentor do poder, assim como o exercício da política para proteger interesses e patrimônio próprios.
Como exemplo dos avanços, ele cita a Lei de Lavagem de Dinheiro (1998) e seu aperfeiçoamento (2012) -- que facilitou a associação aos crimes de corrupção; a Lei de Responsabilidade Fiscal (2000); a criação das varas especiais para lavagem de dinheiro (2003); a criação da CGU (2003); a Lei de Transparência (2009); a Lei de Acesso à Informação (2011); e a Lei das Estatais (2016).
Em contrapartida a essas políticas, em abril desse ano, um decreto presidencial prevê a extinção de todos os conselhos e demais colegiados federais não estabelecidos em lei – com exceção daqueles que “provarem” sua natureza indispensável e sua viabilidade financeira. O ministro-chefe da Casa Civil, Onyx Lorenzoni, colocou como meta reduzir o conjunto de 700 para 50.
Já em relação à LAI, um decreto assinado em janeiro pelo vice-presidente, Hamilton Mourão -- durante a ida de Bolsonaro ao Fórum Econômico Mundial, na Suíça --, praticamente dobrava o número de pessoas autorizadas a classificar dados do Executivo federal como informações ultrassecretas e secretas.
O ato foi derrubado no Congresso Nacional, mas a lei esteve no centro de outra polêmica. O Ministério da Economia negou-se a atender uma requisição de informações sobre a Reforma da Previdência oficializada pela Folha de S.Paulo, por meio do caminho criado nessa legislação. A pasta manteve os estudos que embasam a proposta em sigilo e só os tornou parcialmente públicos depois de receber ofício de órgão vinculado à Procuradoria-Geral da República (PGR).
Outro lado
“Ao mesmo tempo há alguns fortalecimentos, como a regulação do lobby no Executivo federal – um decreto que está para sair”, ressalva Galdino.
Ele também avalia que o Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) está sendo fortalecido. “É um órgão muito pequeno que faz um trabalho fundamental de fiscalização e controle para combater lavagem de dinheiro”, ressalta. Antes subordinado ao Ministério da Fazenda, o órgão foi transferido para a pasta da Justiça, que tem Sergio Moro como titular (mas circula a possibilidade de que passe para a da Economia) e teve a equipe ampliada.
O diretor da Transparência Brasil pondera que, pelo histórico de casuísmos aplicados aos episódios em torno do clã Bolsonaro – ele cita os que envolviam multas ambientais, radares de velocidade e a suspeita de lavagem de dinheiro pelo filho do meio, Flávio, quando deputado estadual pelo PSL –, não é possível ter certeza quanto às motivações de consulta pública do Banco Central sobre o Coaf que, segundo os críticos, poderia enfraquecê-lo.
“Então, está um pouquinho ainda confuso, tem sinais contraditórios... Mas é preocupante [o cenário nesse campo].”
"Primeiro-filhismo"
O sociólogo José Antônio Moroni faz uma avaliação mais categórica. A seu ver, está em curso um “retrocesso total” nas questões em torno do espaço público.
Membro do colegiado de gestão do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc), ele conta que a entidade não encontrou a mínima abertura até agora. “Como você cria um espaço de diálogo com um governo que a todo momento diz que quer acabar com você?”, indaga, em entrevista ao Brasil de Fato. “É impossível dialogar com um governo assim.”
“É uma gestão do Estado que é a partir do núcleo familiar. Não tem nada mais monárquico do que isso”, enfatiza o integrante do Inesc. “Não tem absolutamente nada de republicano, nada de transparente nesse processo. Não tem nada de controle social”.
Um dos pontos apontados pelo sociólogo é o lugar que Bolsonaro tem dado a dois de seus filhos, permitindo que eles pratiquem um exercício informal de tarefas estratégicas no governo. Carlos Bolsonaro, o segundo mais velho, é vereador pelo Partido Social Cristão (RJ) e já despachou em Brasília com aliados (e posou para foto) enquanto o pai estava no exterior e o vice, Hamilton Mourão, respondia pelo timão do navio. Em paráfrase ao "primeiro-damismo", praticado em alguns períodos, poderia se falar em um inédito "primeiro-filhismo".
Carlos também posta e “coordena” o Twitter de Jair e, supostamente, mudou a senha à revelia dele após um desentendimento (o que não se sabe se foi jogo de cena). Em repetidas polêmicas com Mourão – de autenticidade também incerta para os analistas políticos – a repreensão foi leve e o pai disse que ele “merecia estar no governo” por tê-lo “colocado lá”.
Eduardo, o filho mais novo e deputado federal pelo mesmo partido do pai, integra todas as missões ao exterior e participou de reunião com o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, em que o ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, foi barrado. Agora, preside a Comissão de Relações Exteriores da Câmara dos Deputados, mas chegou a viajar aos EUA antes disso, sem representantes do governo, como mensageiro. Durante a campanha, protagonizou vídeo em que dizia a aspirantes à Polícia Federal que bastavam um soldado e um cabo para fechar o Supremo Tribunal Federal (STF).
Já Flávio, senador também pelo mesmo partido do pai, passou os primeiros meses do ano fugindo das câmeras e voltou à cena com projeto de lei para extinguir a exigência de reserva legal, área de floresta que as propriedades rurais são obrigadas a manter.
Entre o rigor e os excessos
No entendimento de Manoel Galdino, o saldo da Operação Lava Jato para o combate à corrupção é positivo, com ressalvas. “Ela conseguiu desbaratar um cartel poderoso, um esquema muito forte das empreiteiras que atuavam na Petrobras, e esse legado fica”, opina. “E permitiu outras operações além da inicial, no Rio de Janeiro, por exemplo.”
Ele destaca que a força-tarefa não tem um núcleo único e que cabem aos atores envolvidos papéis diferentes e que se limitam – como aos juízes deferir ou não os pedidos do Ministério Público. “O Judiciário tem errado mais”, avalia. “Tanto na primeira instância como nas superiores tem havido alguns erros que têm politizado excessivamente a operação. A ida do Sergio Moro para o ministério tornou isso mais óbvio e isso só tem atrapalhado o impacto das ações.”
Moro aceitou assumir a pasta da Justiça logo após a vitória de Bolsonaro contra Fernando Haddad (PT) no segundo turno eleitoral – e depois de ter condenado o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que liderava as pesquisas até ter a candidatura negada.
Galdino alerta, ainda, que o combate à corrupção não pode se restringir à punição e que os agentes envolvidos não podem achar que são os protagonistas.
“Quando a força-tarefa trata como uma questão moral dos indivíduos e não vê o caráter sistêmico do problema, isso acaba gerando uma criminalização e uma desqualificação da política, e abre espaço para demagogia, para populismos, para autoritarismos. A gente viu isso acontecer na Itália, com a Mãos Limpas [que inspirou a Lava Jato], e está vendo acontecer no Brasil.”
O cientista político vê alguns dispositivos da Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais como obstáculos adicionais na apuração de esquemas de corrupção. Embora descreva a peça legal como necessária e elogie seu processo de tramitação, diz que a entrada em vigor, no ano que vem, deve tornar mais difícil descobrir quem financiou as campanhas dos políticos.
Metendo a colher
José Antônio Moroni critica o veto do Planalto a campanha publicitária do Banco do Brasil (BB). A mando de Bolsonaro, foi tirado do ar um comercial que celebrava a diversidade racial e sexual, em episódio que custou ainda o emprego do diretor de Comunicação e Marketing da empresa, Delano de Andrade. A peça, voltada à juventude e à abertura de contas digitais, resultou em mais de 5 mil contas abertas e 13 milhões de visualizações de um dia para o outro, maior impacto de 2019, segundo o blogueiro George Marques.
“Aquela fala na linha ‘Eu fui eleito, e eu nomeio o presidente do Banco do Brasil, então ele tem que fazer o que eu quero’ é a essência do patrimonialismo no Brasil. O Estado não é público. É de quem está no poder”, comenta o sociólogo.
A medida recebeu críticas também por caracterizar ingerência numa empresa de economia mista -- ato que o governante já havia praticado ao impedir a Petrobras de reajustar o preço do diesel.
Uma rede de fast food divulgou comunicado ironizando o ato de censura: "Procura-se elenco para comercial. (...) Para participar, basta se encaixar nos seguintes requisitos: ter participado de um comercial de banco que tenha sido vetado e censurado nas últimas semanas. Pode ser homem, mulher, negro, branco, gay, hétero, trans, jovem, idoso. (...) No Burger King, todo mundo é bem-vindo.”
Além de seguidores de Bolsonaro pregarem boicote à rede, ele manifestou-se pessoalmente no Facebook: “Qualquer empresa privada tem liberdade para promover valores e ideologias que bem entendem. O público decide o que faz. O que não pode ser permitido é o uso do dinheiro dos trabalhadores para isso. Não é censura, é respeito com a população brasileira”.
Bolsonaro também exigiu acesso à prova do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), porta de entrada para quase todas as universidades federais. Na última edição, ele criticou questão que citava um dialeto utilizado por gays e travestis. Uma comissão interna de três pessoas foi criada para fazer uma conferência ideológica da prova deste ano. Um delegado da Polícia Federal sem experiência na área educacional é o atual presidente do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (Inep), que organiza o exame.
Moroni, do Inesc, qualifica o corte anunciado pelo ministro Abraham Weintraub para as universidades de Brasília (UnB), Federal da Bahia (Ufba) e Federal Fluminense (UFF) como uso de recursos públicos para chantagem. O titular da Educação depois estendeu a tesourada às demais federais.
Informação na berlinda
Jair Bolsonaro também colocou em dúvida, mais de uma vez, a metodologia do IBGE para aferição dos índices de desemprego. O titular da pasta da Economia, Paulo Guedes, defendeu que o Censo estava superdimensionado e que os países desenvolvidos restringem os seus a dez perguntas.
A mobilização dos servidores da área mostrou que isso não é verdade, mas foi prometida uma redução dos recursos em 25% – o que pode causar um “apagão estatístico”, de acordo com o movimento e com artigo dos pesquisadores Rogério Jerônimo Barbosa e José Szwako publicado no portal Nexo.
Também ali, a pesquisadora Gabriela Lotta, da Fundação Getulio Vargas (FGV) e do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), defendeu que não se pode mudar o método em função de uma restrição de verba que não foi sequer oficializada. Ela põe em dúvida a tese de que reduzir o questionário baratearia a coleta, pois uma das maiores dificuldades consistiria em acessar os domicílios.
“Observa-se, a partir de uma série de artigos publicados na imprensa carioca, uma tentativa de desautorizar o conhecimento do IBGE, afirmando a necessidade de apoio do BID e do Banco Mundial e a convocação de atores externos específicos para assumir o Censo”, constata. “O que pudemos observar analisando o IBGE nos últimos anos foi exatamente o contrário: o IBGE apoiando esses organismos em seu trabalho na realização dos censos, vide o UNFPA [Fundo de População das Nações Unidas].”
Lotta afirma que a experiência de digitalização integral da edição de 2010 virou referência internacional. O médico Dráuzio Varella, a urbanista Raquel Rolnik, a socióloga Esther Solano e o antropólogo João Pacheco são quatro dos apoiadores a gravar depoimento na campanha de apoio à instituição.
Na última segunda-feira (6), a presidenta do IBGE, Susana Cordeiro Guerra, exonerou o diretor de Pesquisas, Claudio Crespo, que seria responsável pelo Censo 2020. Em nota, a assessoria de imprensa disse que a medida teria sido tomada por uma "reorganização de gestão".
Fim da Comunicação Pública
Mais uma medida que vai contra a circulação da informação e a promoção da diversidade é a unificação da TV Brasil – criada para ser de caráter público – com a NBR, canal de veiculação de conteúdo estatal. A Constituição Federal, no artigo 223, determina a complementaridade entre os dois sistemas de comunicação, mais o privado.
O governo Temer já havia alterado a Lei da Empresa Pública de Comunicação (EBC), extinguindo o conselho curador – que reunia representantes do poder público e da sociedade civil – e o mandato fixo do presidente da autarquia.
“Todas essas bases construídas principalmente a partir da Constituição de 1988 estão sendo destruídas numa velocidade imensa”, resume José Antônio Moroni.
Ele pontua que a questão não é o atual governo não dialogar com organizações do campo de esquerda, mas não dialogar com organizações do campo democrático de modo geral. Conforme define o sociólogo, tal escolha deixa clara uma luta ideológica não contra o “esquerdismo”, mas contra a democracia.
“Dá a impressão de que Bolsonaro se utilizou desse processo eleitoral, democrático, para chegar ao poder e, no limite, destruir esse próprio processo.”
Edição: Aline Carrijo