A história nos ensina que, entre o que é planejado e como as coisas acontecem, tem muita diferença. Talvez seja daí que tenha saído o dito popular, muito comum no interior gaúcho: “com o andar da carroça, as melancias se acomodam”. O dito descreve, com uma boa dose de exatidão, a história recente do ex-juiz federal de Curitiba (PR) Sérgio Moro, o símbolo da Operação Lava Jato, que se tornou sinônimo da luta contra a corrupção no Brasil. A ida do ex-juiz para o governo do presidente da República, Jair Bolsonaro (PSL – RJ), foi articulada pelo superministro da Fazenda, Paulo Guedes. Moro deixou a sua carreira de 22 anos de Justiça Federal para tornar-se ministro da Justiça e Segurança Pública do governo federal.
A presença de Moro no governo foi exibida por Bolsonaro como uma garantia de que a sua administração seguiria pela trilha da Justiça. Na ocasião, o presidente prometeu ao ex-juiz que ele seria indicado para a primeira vaga que houvesse no Supremo Tribunal Federal (STF). Promessa que reafirmou no último fim de semana. Esse era um lado da moeda. Do outro lado, estavam os partidos de esquerda, especialmente o PT, que lembravam que o ex-juiz assumiu um cargo no governo depois de condenar a 12 anos de cadeia por corrupção o ex-presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva (PT – SP), justamente o maior adversário de Bolsonaro.
O que aconteceu em quatro meses de governo? Em primeiro lugar, havia a expectativa na opinião pública que o ex-juiz se tornaria uma espécie de “xerife do Brasil”, um país assolado pela violência urbana administrada pelas facções criminosas que têm no sistema penitenciário nacional uma das maiores escolas de formação de criminosos da América do Sul.
A oportunidade de tornar-se o xerife do Brasil apareceu na primeira semana de governo. Na capital do Ceará, Fortaleza, e em 46 cidades do interior – o estado tem 185 municípios –, as facções criminosas nacionais, o Comando Vermelho (CV), nascido no Rio de Janeiro, e o Primeiro Comando da Capital (PCC), de São Paulo, aliados com organizações criminosas locais, Família do Norte (FDN) e Guardiões do Estado (GDE), durante duas semanas fizeram 209 ataques a ônibus, incendiaram veículos, roubaram bancos e dinamitaram um viaduto na BR 020. O motivo dos ataques foi o endurecimento do governador reeleito, Camilo Santana (PT), com as facções nos presídios, tipo mandar tirar as tomadas de energia das celas para evitar o uso de carregador de celular. A manifestação das facções se iniciou como uma retaliação ao governo do Estado. Mas evoluiu rapidamente para coisa maior, como o que aconteceu em 2013 com as Manifestações dos 20 Centavos, que, inicialmente, eram contra o aumento da passagem de ônibus, mas que se espalharam pelo país, encurralando governos e partidos políticos tradicionais, inclusive o PT.
A diferença da retaliação das facções para as Manifestações dos 20 Centavos é que ela não se espalhou para o país. Mas o que aconteceu no Ceará foi que os bandidos testaram o poder de reação do governo federal. Não esquecemos que Bolsonaro se elegeu com a promessa de “acabar com a alegria da bandidagem”. Os líderes as facções precisavam saber se as palavras do presidente eram lero-lero ou verdadeiras. Moro se limitou a enviar ajuda material para o governo do Ceará: 200 agentes, incluindo 90 da Força Nacional, para ajudar as polícias Civil e Militar. Ele e os seus assessores não entenderam o que estava acontecendo. Tanto que ele limitou-se a fazer uma avaliação superficial dos acontecimentos nas suas entrevistas aos jornais. O governo federal levou um tapa na cara das facções e não reagiu porque não teve capacidade de avaliar corretamente a situação. Moro deixou passar uma oportunidade de mostrar que o país tinha um xerife.
A demonstração de força das facções durou duas semanas – há um farto material disponível na internet. No mês seguinte, Moro deixou passar mais duas oportunidades de colocar a estrela de xerife no peito. Em fevereiro, ele enviou para Congresso o pacote anticrime – um conjunto de medidas de endurecimento contra o crime organizado. Por pressão, ou sugestão, ele deixou de fora a criminalização do “caixa dois”, aquele dinheiro sem procedência que os políticos investem em suas campanhas. Em abril de 2017, durante um evento nos Estados Unidos, ele havia definido o caixa dois como um crime contra a democracia. No final de fevereiro, ele nomeou como suplente, no Conselho de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP), Ilona Szbó de Carvalho, pesquisadora e cientista em Segurança Pública. Ela seria uma das 26 consultoras do CNPCP. Moro voltou atrás na nomeação porque os apoiadores de Bolsonaro o bombardearam nas redes sociais por ter levado para o governo um pessoa contra a flexibilização do porte de armas, uma das bandeiras da campanha do presidente.
Aqui chego ao xis da história que estou contando e quero refletir com os meus colegas repórteres. Por conta do seu trabalho, a figura do então juiz Sérgio Moro foi idealizada por nós, jornalistas, ao estilo dos juízes durões que aparecem nos filmes de Hollywood. Os repórteres velhos, como eu, e os jovens sabem que isso faz parte da nossa profissão. Fomos nós que fixamos na opinião pública a imagem de Moro como “algoz dos corruptos”. Ele não pode ser condenado por ter surfado nessa onda criada por nós. Faz parte do jogo. Moro não é um herói de Hollywood. Mas não é um ingênuo. Ele entrou no governo Bolsonaro porque viu uma “oportunidade” de consolidar o seu prestígio. E o presidente o convidou porque viu nele uma “oportunidade” de mostrar que estava falando sério sobre não admitir corruptos no seu governo.
Então, o que deu errado para Moro? O conjunto da obra: o governo não decolou e está sendo corroído pelas suas contradições internas. Como se estivesse atirando um bote salva-vidas na água, o presidente lembrou que irá cumprir a sua promessa que havia feito a Moro de indicá-lo para a STF. Mas advertiu: “ele vai ter que passar pelo Senado”. São os senadores que aprovam a indicação do presidente. Hoje, a base parlamentar do governo é uma bagunça. Se persistir a confusão, Moro vai estar entregue à própria sorte. E sem a estrela de xerife no peito.
* Carlos Wagner é repórter, graduado em Comunicação Social – habilitação em Jornalismo, pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs). Trabalhou como repórter investigativo no jornal Zero Hora (RS, Brasil) de 1983 a 2014. Recebeu 38 prêmios de Jornalismo, entre eles, sete Prêmios Esso regionais.
Edição: Marcelo Ferreira