A Venezuela é um dos poucos países no mundo em que trabalhadores temem um aumento salarial ao invés de celebrá-lo. Isso porque, pelo menos desde 2017, junto à subida do salário mínimo vem um aumento generalizado dos preços, que nem sempre correspondem a um aumento dos custos de produção, distribuição ou importação.
Desde os governos de Hugo Chávez, para celebrar o 1º de maio, é comum o presidente anunciar novas medidas econômicas voltadas para os trabalhadores. Foi num 1º de maio, há sete anos, a promulgação da Lei Orgânica do Trabalho, dos Trabalhadores e das Trabalhadoras – conjunto de normas que regem todos os direitos laborais dos venezuelanos e que foi fruto da organização dos movimentos sociais e sindicais.
Para esse mês de maio, o aumento salarial também era esperado. Todos especulavam de quanto seria e que outras medidas poderiam ser anunciadas por Maduro. No entanto, de maneira inédita, a medida foi publicada no Diário Oficial, sem pronunciamentos presidenciais e quatro dias antes da data comemorativa. De 18 mil bolívares o salário mínimo passou a 40 mil (cerca de R$ 30), e o vale alimentação passou de 1,8 mil a 25 mil bolívares (cerca de R$19). Ao todo um aumento de 228% em relação ao mínimo estabelecido no dia 15 de janeiro.
Nesse mesmo dia, conversamos com Alexainer Pinto, uma das mais de 700 mil moradoras do bairro Petare -- que está entre as maiores favelas da América Latina -- e servidora da empresa Corpoelec, a estatal venezuelana responsável pela geração e distribuição de energia no país.
“Na minha casa recebemos dois salários, que somados são 66 mil bolívares (cerca de R$50), e é difícil sobreviver à guerra dos preços. Eu não sei como, mas conseguimos fazer o dinheiro render. O que nos ajuda muito é que recebemos a caixa CLAP [cesta básica fornecida pelo governo] tanto no trabalho, como na nossa comunidade”, conta Alexainer.
A servidora pública vive com seu companheiro, Humberto Fernández, que trabalha na mesma empresa, e dois filhos, Misael Guzmán, de 8 anos e Yulianger Guzmán, de 18. Alimentar os quatro representa um consumo mensal de cerca de 5 kg de arroz, 4 kg de macarrão e 15 kg de farinha de milho, enquanto cada cesta básica do governo é recheada, entre outras coisas, com 3 kg de arroz, 3 kg de farinha e 2 kg de macarrão.
Em meses que ambos, Alexainer e Humberto, recebem a cesta no trabalho e no seu bairro, de maneira regular, os alimentos básicos ficam garantidos por um custo de 1 mil bolívares cada (cerca de R$0,76).
Os CLAP
Os Comitês Locais de Abastecimento e Produção (CLAP) foram um mecanismo criado em 2016 pelo governo Maduro para combater a crise de abastecimento gerada pelo boicote dos comerciantes nacionais. Nesse ano, o Estado importava os produtos ou concedia dólares subsidiados para que empresários o fizessem, no entanto, os produtos nunca chegavam à prateleira dos supermercados – eram retidos nos estoques ou contrabandeados para Colômbia e para o Brasil.
Com os CLAP, é o povo quem recebe e organiza a distribuição dos alimentos, seja no seu local de trabalho, no caso das instituições públicas, ou no seu local de moradia, através dos Conselhos Comunais -- criados durante o governo de Hugo Chávez.
Alexainer é líder do Conselho do CLAP da sua quadra. Através de pessoas como ela, em 2018, foram distribuídas quase 120 milhões de caixas (119.822.000), cerca de 30 mil combos diários.
Em 2019, o governo decidiu que os produtos devem ser entregues quinzenalmente e chegam a cerca de 6 milhões de lares, atingindo, segundo cifras oficiais, cerca de 50% da população venezuelana.
Guerra econômica
Nestes 20 dias desde a publicação do novo salário, houve produtos, como a banana terra, que quintuplicaram de preço (de 1 mil para 5 mil bolívares), ou o quilo da cebola (de 3 mil para 6 mil) e da carne (de 15 mil para 29 mil), que dobrou de valor.
Esse incremento geralmente é vinculado ao aumento do câmbio do dólar ou da inflação. No entanto, na primeira semana de maio, o câmbio do dólar diminuiu (de mais de 6 mil bolívares o US$ 1 para 5,2 mil o US$ 1). Também, pela primeira vez desde novembro de 2017, divulgou-se uma taxa inflacionário inferior a 50% -- o que foi considerando o fim da hiperinflação.
A cifra foi divulgada pela comissão de finanças da Assembleia Nacional (AN), que se encontra em desacato ante a justiça, mas continua atuando. Segundo a AN, o Índice Nacional de Preços Consumidor (INPC) de março foi de 18%. O Ministério da Economia não tem publicado dados atualizados desde 2015.
Para o sociólogo e ex-ministro de Economia, Luís Salas Rodríguez, “A diminuição da inflação se deve a uma contração do consumo muito grande. Como os preços subiram tanto em dezembro e janeiro, o câmbio disparou e os ingressos ficaram para trás, a família venezuelana diminui o consumo. Então, se gerou essa contradição social: a queda do consumo, gerada pelos altos preços, provocou uma diminuição da inflação”.
Também no último mês, de acordo com a Organização de Países Exportadores de Petróleo (OPEP), registrou-se um aumento de 4% no valor do barril do petróleo, principal produto de exportação venezuelano e fonte de entrada de divisas estrangeiras no país.
Logo, analisando alguns indicadores centrais da economia venezuelana, não há uma explicação evidente para um aumento de até 500% nos alimentos.
“As expectativas de aumento salarial geram aumentos nos preços, porque, na disputa distributiva, os comerciantes sobem os preços, inclusive em porcentagens muito superiores ao próprio aumento salarial, fazendo com que as pessoas terminem pagando como consumidores os salários que recebem como trabalhadores. Isso tudo também num contexto de confrontação política que vivemos aqui, considerando o impacto negativo das sanções políticas internacionais”, analisa Rodríguez.
No começo de 2019, logo depois do primeiro aumento salarial do ano, o custo da Canastra Básica Familiar (20 produtos: arroz, frango, carne, pão, macarrão, açúcar, café, leite, queijo, mortadela, azeite, farinha de milho, banana, mamão, cebola, aipim, tomate e banana da terra) chegou a representar 19 vezes o valor do ingresso mínimo mensal de uma família, que seria a soma de dois salários com vale alimentação.
Já em maio, uma semana depois do segundo aumento (no dia 26 de abril), seriam necessários 8,7 salários mínimos para adquirir todos os produtos.
“Há um elemento político fundamental no estabelecimento dos índices inflacionários, mas, nesse caso específico, o próprio governo não conseguiu conter essa subida, gerando um efeito de ‘salve-se quem puder’ na população, na qual todos buscam como manter seus ingressos muitas vezes utilizando os instrumentos que tem ao alcance, que é a especulação.”
Entre uma cifra e outra, no cotidiano de quem luta para viver na Venezuela, a guerra se faz presente de maneira muito mais nua e crua. Alexainer Pinto não nega que emagreceu desde o início da crise.
“Mas eu não passo fome, como três refeições diárias. A diferença é que agora eu como menos doces, menos refrigerante, deixamos de comer muita carne e passamos a comer mais verduras. Meu filho até decidiu ser vegetariano”, comenta logo depois de uma gargalhada.
Sorrindo também, Alexainer conta que, nesse mês de abril, seu companheiro ganhou férias, mas, além de alívio por ter essas semanas de descanso, também veio preocupação de que receber um mês por adiantado, num país onde os preços sobem diariamente e o salário desvaloriza, significa perder poder de compra. Humberto recebeu 100 mil bolívares (cerca de R$77) que foram usados para comprar frango e alguns produtos de limpeza para a casa.
“Já gastamos tudo e não faz nem uma semana. No final é algo que te deixa pensativo, porque você começa a pensar em como vai fazer para sobreviver até o final do mês. Mas é o que te digo, sempre resolvemos, seja um arroz com feijão ou uma arepa com queijo, que na minha casa não pode faltar”, finaliza.
Diversificar a economia
Uma das principais críticas da oposição e também do chavismo é de que a Revolução Bolivariana não conseguiu diversificar a base econômica da Venezuela e por isso agora estaria vulnerável às sanções e ao bloqueio econômico dos Estados Unidos. No entanto, dados do Banco Central demonstram que, na verdade, a indústria petroleira representa apenas 16% do Produto Interno Bruto (PIB), no entanto, significa 90% das exportações.
Outra característica é a predominância do Estado como gerador de riquezas. Além de controlar a maior estatal do país, Petróleos de Venezuela (PDVSA), é o Estado venezuelano o responsável por produzir 90% dos produtos exportados que não correspondem à indústria petroleira. O setor privado, sobretudo transacional, foi responsável por 29% da produção do combustível fóssil.
Para a economista Pasqualina Curcio, esse seria o principal fator que gera vulnerabilidade à economia venezuelana. Ela também afirma que o problema reside no aporte mínimo da indústria privada em geral à nação. Empresas que, para produzir, fazem uso dos dólares a preços subsidiados pelo Estado, que cria políticas de incentivo à indústria nacional, oferecendo taxas de câmbio preferenciais para a importação de matéria-prima.
É o caso da gigante Polar, complexo de três indústrias: Cervejaria Polar (CP), Alimentos Polar Comercial (APC) e Pepsi-Cola Venezuela (PCV). Um monopólio da família Mendoza, que se expressa no mercado com 51 marcas. Criado há 72 anos, o grupo reúne 28 centros de produção, 164 de distribuição e é responsável por 18% da importação de produtos da Cesta Básica Alimentar.
Apesar do império construído, a Empresa Polar não produz sequer metade do que comercializa. Tudo é fruto de importação, majoritariamente dos Estados Unidos e Colômbia, logo é processado, empacotado e distribuído pela indústria venezuelana. Essas importações necessitam do subsídio do Estado para garantir liquidez aos Mendonza, já que todo o trigo e a malta, matéria-prima para os produtos Polar, são totalmente importados. Apesar da dependência, a gigante do ramo alimentício só aporta 4% dos ingressos fiscais do país, segundo informes de 2012.
“Embora às vezes isso não seja contado, é uma das principais fraquezas do modelo econômico de produção na Venezuela, não apenas por causa dos efeitos perversos que os monopólios por natureza mostram em termos de fixação de preço e quantidade, mas também especialmente o fato de ter que depender de algumas empresas que produzem, importam e distribuem um produto tão estratégico quanto o alimento do povo, uma situação que aumenta o poder de coerção que essas empresas podem exercer, seja por interesses econômicos ou políticas, como acontece nos últimos anos na Venezuela”, sentencia Curcio, no seu artigo Mitos Sobre a Economia Venezuelana.
Comuna ou nada
A saída para a hiperinflação e a crise econômica provocada na Venezuela estão entre os principais debates atuais da sociedade venezuelana. No metrô, na fila do banco, salas de aula ou nos meios de comunicação todos debatem economia – e política.
Para o ex-ministro de Economia, Luís Salas, a solução para a guerra dos preços atual passa por um acordo nacional.
“A resolução da situação passa por medidas econômicas, mas também pela superação do conflito político. Acredito que deveria ser feita uma espécie de pacto social, com vários setores, encabeçado pelo Estado, algo similar ao que fez Cristina Kirchner, na Argentina, em 2014, combinado à retomada da capacidade de controle e fiscalização do Estado, como já aconteceu aqui, em 2003.”
Já Pasqualina Curcio acredita que é preciso fortalecer a moeda, aumentando as reservas internacionais em ouro, acabando com as máfias na mineração e estabelecendo um sistema automatizado de controle e transparência do uso das divisas a preços subsidiados pelas empresas privadas.
“A classe obreira é o sujeito histórico dessa revolução e o ser humano é o centro. Sigamos pensando na Venezuela independente, soberana, potência e, sobretudo, socialista”, convoca.
Alexainer compartilha o sentimento.
“Eu não quero ir embora do meu país, sinto que além da qualidade humana que nós temos, algo que não se encontra em outro lado, aqui estamos sempre nos ajudando. Com um pouquinho de farinha, um pouquinho de arroz. De alguma maneira nós resolvemos”, finaliza.
Edição: Aline Carrijo