Amor, política, afrofuturismo e violência urbana são alguns dos conceitos que permeiam o álbum Pílula Livre, da cantora Doralyce, além de muitos outros assuntos, que acabam criando um retrato do Brasil de hoje.
Numa conversa com a artista pernambucana, que atualmente mora no Rio de Janeiro, Pílula Livre logo se transforma num filme sobre “o antes” e “o depois” dos avanços políticas públicas promovidas pelos governos do Partido dos Trabalhadores, de 2004 a 2016.
Doralyce, no entanto, não se declara petista. Mas a política é parte da sua compreensão como artista e do seu espaço no mundo.
Confira trecho da entrevista do Brasil de Fato com a cantora.
Brasil de Fato: Você começou a cantar com três anos em igreja e passou dez anos cantando música gospel. Mais tarde começou a compor suas canções. O que a música significa para você atualmente?
Doralyce: A música é a minha ferramenta para fazer a análise de conjuntura. Para propor uma nova sociedade, para praticar o afrofuturismo, que é um movimento estético e cultural e de compreensão dessa ancestralidade africana em continente e africana em diáspora. A arte é o que me tira deste espaço de mulher preta, base dessa sociedade colonizada, e me coloca como centro dessa sociedade, como centro de transformação, como centro pensante.
Quais são os temas que inspiram as suas composições. Sobre o que você gosta de falar nas suas músicas?
Eu queria estar falando de amor, de mar, de céu azul, de surfar, mas a minha realidade abstrata é invadida por uma realidade muito dura, que permite que a polícia cometa uma série de infrações sem ser punida por isso. O pacote de Justiça do Moro, por exemplo, diz que um policial pode atirar se sentir ameaçado. Então, o policial pode dizer que se sente ameaçado por mim e atacar.
Falo sobre um sistema que me oprime, me mata e me silencia. Falo sobre quem são os nossos reais inimigos, que são os donos dos poderes, as instituições religiosas, políticas e financeiras, que tiram os nossos direitos.
A sua música é uma militância política?
Por ter esse viés político, por ter essa necessidade de me posicionar politicamente, de falar politicamente de uma forma mais direta e combativa. Para falar sobre as coisas em que eu acredito, eu acabei tendo que unir a poética à militância.
Na canção “Me perguntaram por que” é uma referência à Marielle. Vocês eram próximas. O que representa a Marielle Franco nessa análise de conjuntura?
O assassinato brutal de Marielle é um estopim para as mulheres de que todos os nossos direitos estão sendo lesados, que as nossas vidas estão sendo ceifadas e se a gente não se posiciona de forma inteligente nessa sociedade, vamos todas morrer. O assassinato de Marielle é um levante que empoderou muitas outras mulheres. Mari era minha amiga, ia aos meus shows, ela quem me apresentou Taliria Petrone, atual deputada Federal.
É importante falar de política nas canções?
Quando a educação não se posiciona, a saúde não se posiciona, quando todas as esferas de poder do Estado estão silenciadas por um governo militarizado, por um governo que é controlado por empresários, o que nos resta é utilizar a cultura para falar sobre política. É a única forma de apresentar a realidade dos fatos para a sociedade. A televisão não vai mostrar, a revista não vai mostrar, o jornal não vai mostrar e a gente vai continuar com uma população semi-analfabeta, analfabeta funcional e alienada.
Sobre o que é importante falar?
Fundamental, hoje, é falar sobre as necessidades do povo brasileiro. A cultura precisa pautar isso. A gente precisa falar que o Lula é um preso político. Porque se você ignora que Lula é um preso político, você está passando a mão no Zezé Perrella, ex-senador, ter um helicóptero e ser pego com meia tonelada de pasta-base de cocaína e ninguém falar disso. É o Aécio Neves ter o seu telefone grampeado e nas ligações ele falar sobre assassinar pessoas e ele estar em liberdade. Você passa a pautar o seletivismo do judiciário. Isso precisa ser falado por alguém.
O que significou o governo do PT para o país?
Eu consigo entender os avanços que o PT trouxe em relação à transparência política e participação popular e também das pauta políticas inclusivas, o Ciências Sem Fronteiras, o Mais Educação. O governo no PT tirou 40 milhões de pessoas da extrema pobreza. Até 2010, fazíamos parte de uma das maiores economias do mundo. Como reparação histórica, a gente construiu metrô em Angola. Ajudamos países do Mercosul a se erguerem. No governo PT, a gente vivia avanços políticos, sociais e tecnológicos.
E como está o país agora. O que aconteceu?
O aumento do conservadorismo, dos bons costumes, dessa diversidade sendo atacada o tempo inteiro, a Damares falando de ditadura gay, isso tudo tem adoecido a população brasileira, tem adoecido as mulheres. A gente tem medo de andar na rua. A gente tem medo de ser violentada, a gente tem medo da polícia. No Brasil se vive hoje uma política de medo.
Mas tem alguma reação para este medo?
A gente vai vir com o contragolpe. O contragolpe é ter eleito a Érica Malunguinho, Talíria Petrônio, Dani Monteiro, Robeyoncé. O contragolpe são todos os avanços que a gente tem conseguido colocando a nossa música. Tem um mulherada que admiro muito que tá cantando minhas composições como Bia Ferreira, Gaby Amarantos, Késia Estácio, Larissa Luz, Preta Rara. Além do Samba Independente Dos Bons Costumes e os blocos cariocas Amigos da Onça, grupo Maracutaia e Tambores de Olokun.
Qual o conceito do álbum Pílula Livre?
É um disquinho maroto, acho que ainda não escoou da forma como tinha que escoar, mas eu entendo que eu tenho um trabalho diferente do que eu vejo no mercado. Como é um trabalho que não tem antecessores. Um trabalho sem antecessores é um trabalho que ainda não cavou o seu espaço. Assim que eu cavar esse espaço, várias outras mulheres que fazem a mesma coisa que eu terão seu espaço garantido e representado.
Edição: Aline Carrijo