O caso do ex-combatente e hoje liderança da Força Revolucionária Alternativa do Comum (FARC) Jesús Santrich na Colômbia revela o descaso do governo de Ivan Duque com a implementação e promoção das mudanças democráticas que o país precisa, muitas delas estampadas no documento de acordo das conversações de Havana para uma paz estável e duradoura que culminaram em outubro de 2016.
Com efeito, na última sexta-feira (17), ainda cedo, a grande mídia colombiana veiculava a possível decretação pelo presidente de um “Estado de exceção”, que seria caracterizado como contexto de “grave comoção interior”. Vale a pena advertir que esta é uma situação constitucional excepcional, à qual somente pode-se apelar em tempos de crise, diante de fatos que atentem contra a estabilidade institucional, a segurança do Estado ou a convivência dos cidadãos.
Singularmente, a oportunidade da “comoção” faculta ao presidente a emissão de decretos legislativos que suspendem temporariamente várias leis do país. Esse rumor veio acompanhado da possibilidade da “extradição administrativa” de Santrich aos Estados Unidos, através de um destes decretos. É claro que tais circunstâncias geraram uma reação imediata em todas as forças da nação colombiana, especialmente porque isso significaria um golpe grotesco, irracional e profundamente negativo para a conquista da paz.
A causa da decretação do Estado de comoção seria a suposta “crise institucional”, orquestrada desde os cantos da ultradireita mais reacionária do país, da qual faz parte o presidente formalmente eleito, isto é, Ivan Duque, e aquele a quem todos reconhecem como seu mentor e real detentor da criação das diretrizes governamentais, o Sr. Álvaro Uribe, ex-presidente tristemente conhecido nacional e internacionalmente pelo seu compromisso com os grupos paramilitares de extrema direita que ainda atuam no país, liquidando a vida de mais de 150 lutadores e lideranças sociais e pelos famosos “falsos positivos”, tática que consiste em recrutar jovens desempregados, levá-los para lugares distantes dos grandes centros, para depois assassiná-los e fantasiá-los de membros das guerrilhas mortos em combate com o Exército.
É sabido que, na Colômbia, há em curso processos de investigação por mais de 5.500 execuções extrajudiciais contra membros das forças armadas. Convém advertir que essas execuções ainda não cessaram, ao contrário. A Organização das Nações Unidas (ONU), observadora do cumprimento dos acordos de paz, revelou a existência de reuniões de altos mandos para coordenar com grupos ilegais o assassinato seletivo de lideranças sociais, como noticiou o New York Times.
Há que dizer, sem meias palavras, que Duque foi eleito com o apoio explícito do governo de Donald Trump, nos Estados Unidos, e de setores comprometidos com a guerra na Colômbia. Por isso, seu compromisso é, como ele mesmo declarou em campanha, despedaçar o Acordo de Havana e a implementação da paz. E certamente, toda sua ação de governo se limita e dirige a obstaculizar a ação dos órgãos que nasceram dos acordos, como a Jurisdição Especial de Paz (JEP), que tem a responsabilidade de conduzir a justiça de transição, a Comissão da Verdade (CV) ou as entidades que promovem projetos territoriais para construir zonas de reconciliação em lugares que padeceram e que hoje, com a ação paramilitar, continuam a padecer da violência e as violações aos direitos humanos.
Mas o que ocasionaria, na perspectiva do governo, a “crise institucional”? A decisão da JEP de negar o requerimento de extradição de Santrich.
Para entender o caso, há que lembrar que o ex-combatente foi formalmente acusado pelo Ministério Público de haver sido o agenciador da exportação de toneladas de entorpecentes aos Estados Unidos. A agência de combate ao tráfico de drogas desse país (DEA) teria provas contundentes da participação de Santrich nesse fato. No entanto, Santrich foi detido em abril de 2018 para fins de extradição e, até a última semana de maio deste ano, nem a DEA nem a promotoria colombiana havia demonstrado as provas ou culpabilidade de acusado. Ou seja, em mais de um ano nada foi provado e, quando a JEP pediu aos Estados Unidos que enviasse documentos ou ferramentas nesse sentido, as autoridades americanas nada fizeram nem entregaram.
Por outro lado, nos termos do Acordo de Paz, somente poderia haver extradição se as ações das quais se acusa Santrich fossem cometidas após 1º de dezembro de 2016, quando a Colômbia já se encontrava na etapa posterior à assinatura. Entretanto, os magistrados da JEP deram a conhecer, em comunicação oficial de 18 de maio, que foi aplicada a garantia de não extradição, constante no artigo 19 da Constituição da Colômbia, porque não teve provas que permitam estabelecer a data da conduta que o Ministério Público lhe imputa.
Note-se que a providência da JEP não somente é legítima, porque respaldada pelo acordo que lhe outorga competência para decidir esses casos, mas fundada na legalidade e no fato de que o próprio acordo está inserido no bloco de constitucionalidade. Isto é, o acordo está na própria Constituição.
Conforme decisão da Corte Suprema de Justiça da Colômbia, a JEP tem, como qualquer jurisdição, capacidade e competência para coletar e valorar provas. Entretanto, apesar da decisão da JEP, Santrich não foi solto. Seus advogados foram obrigados a ingressar com pedido de habeas corpus, que lhe foi deferido de imediato por um magistrado do Tribunal Superior de Bogotá.
Ainda assim, Santrich não ficou livre, permaneceu sob o controle do Estado. E logo no momento em que se tentou, por ordem judicial, efetivar o alvará de soltura, de imprevisto, sem mediar nenhum tipo de razões jurídicas ou tempos do devido processo, o Ministério Público anunciou “novas provas” para que se determinasse a continuidade da sua prisão.
Não há, em sã consciência, como acreditar que a DEA e a Promotoria tinham em seu poder provas da culpabilidade do acusado e aguardaram até a última hora, quando o Santrich estava saindo da prisão por ordem da JEP, para apresentá-las. Mesmo que não fossem inventadas, deveriam respeitar os prazos processuais e a sentença da JEP. O que fica claro para qualquer mortal é que se trata de uma ação premeditada, para criar instabilidade jurídica e política na implementação dos acordos. Trata-se de uma ação clara de perseguição política.
Como aponta o ex-chefe da negociação de paz em Havana, Humberto de la Calle, em resposta às afirmações de Uribe de que a extradição de Santrich deve ser um fato para começar a reforma da Justiça no país, a providência da JEP não merece reparos. Todavia, diz De la Calle, é até absurdo pensar que, no caso de ter havido alguma violação ao acordado — no sentido de que se comprovassem condutas realizadas depois da assinatura, o que ainda não aconteceu —, a pessoa seja julgada nos Estados Unidos por isso.
Obviamente, tudo isso configura uma agressão, não somente à liberdade de um ser humano, mas ao processo de paz, à procura de caminhos e alternativas para conquistar cenários de desenvolvimento dos direitos fundamentais. A cabeça de Santrich parecer estar a prêmio para servir de motivação para pautar novas confrontações que somente interessam aos agenciadores da guerra. Pretende-se tornar o Judiciário e a JEP cenários de manipulações e manobras para, estando vulneráveis, respaldarem planos de maior militarização e fascistização da sociedade.
O Estado colombiano abandonou a constitucionalidade, os tratados internacionais e a legalidade para impor arbitrariamente sua vontade de manter preso o ex-combatente e, nos termos das denúncias que já circulam amplamente mundo fora, prosseguir gerando violações aos direitos dos colombianos.
Defender a paz não só na Colômbia, mas a paz regional, que inclui a defesa da vida no Brasil diante das exigências das transnacionais das armas, constitui uma tarefa do momento que une os democratas do continente.
*Pietro Alarcón é doutor em Direito. Professor da Pontifícia Universidade Católica (PUC/SP). Assessor do Comitê Permanente de Colômbia para a Defesa dos Direitos Humanos (CPDH).
Edição: Diálogos do Sul