Na minha infância, nos idos dos anos 60, no bairro das Laranjeiras no Rio de Janeiro, onde morávamos, recebíamos uma publicação da comunidade judaica intitulada “Aonde Vamos?”. Tratava-se de uma publicação que pretendia discutir os caminhos da comunidade judaica durante a Diáspora — judeus espalhados pelo mundo que não residiam em Israel. Nos dias atuais, pós-golpe de 2016, que rompeu com o frágil pacto entre as elites brasileiras construído com a Constituição de 1988, nós, da esquerda, também devemos nos perguntar: aonde vamos?
O pacto de 88, representado pela Constituição Cidadã, não foi capaz de fazer com que os diversos segmentos políticos do país respeitassem os ditames do Estado de Direito, da mesma forma como ocorreu -- guardados os limites dos diversos processos históricos -- com a Constituição alemã de Weimar. Talvez o dilema histórico que está presente nas discussões que permearam os anos pré-Revolução Russa e que integra o campo da esquerda, ou seja, a distinção entre os caminhos traçados pela social-democracia e pelo socialismo, esteja vivo entre nós.
Na década de 1920 do século passado, a Alemanha tentava se reerguer da derrota da primeira Guerra Mundial, e ainda tinha que dar conta dos pesados encargos do Tratado de Versailles. Naquele caldeirão, a disputa política entre a social-democracia, aliada da burguesia e, de outro lado, os socialistas, culminou com a derrocada de ambos quando da quebra da Bolsa de Valores em 1929. Diante da iminência do caos econômico, a burguesia se alia aos nazistas para evitar o retorno dos confrontos pós-guerra. Hitler, na tentativa de unificar o povo alemão contra o inimigo, que, segundo ele, levara a Alemanha à destruição, responsabiliza o povo judeu, como já estava desenhado no “Mein Kampf” [Minha Luta], escrito quando da prisão após a tentativa de golpe em 1923. Ocorre que a redução do inimigo judaico à condição específica de serem judeus foi obliterada por outro ataque perpetrado pelos nazistas: a associação entre o judaísmo e o bolchevismo russo, que, segundo os nazistas, era uma criação judaica. O objetivo dos nazistas era não só destruir o povo judeu, mas destruir a esquerda, identificada pela Revolução Russa .
Esse foi o motivo da associação da burguesia alemã aos nazistas: a destruição da esquerda para sempre. Alguma similaridade com os eventos atuais em nosso país? Quantas vezes já escutamos, desde a posse de Bolsonaro, que a crise brasileira tem sua origem nos governos Lula e Dilma? Que o desastre econômico atual é resultado das políticas de esquerda que quebraram o país? Que a corrupção dos governos petistas é a fonte da falência econômica do Estado brasileiro? A única diferença entre os nazistas e Bolsonaro, nesse aspecto, é que na Alemanha nazista o ataque era também contra os financistas, mas é bem possível que, assim que Paulo Guedes deixar o governo por força do fracasso de suas propostas, haverá uma guinada populista na tentativa da redução do desemprego e novos inimigos serão alçados junto com a esquerda e, entre eles, os banqueiros que mantém juros altíssimos.
O que a história alemã e a história recente europeia pós crise de 2008 nos ensinam é que o capitalismo em crise e, sua classe, a burguesia, se voltam contra o Estado de Direito e por consequência, contra os setores populares. No atual estágio, os protagonistas que deram o golpe de 2016, na tentativa de resolver a crise de 2008 transferindo a responsabilidade para as camadas populares -- haja vista a reforma da previdência, o congelamento do salário mínimo e dos gastos com saúde e educação e, recentemente, o contingenciamento dos gastos da área educacional -- começam uma luta entre si já antevendo o fracasso do sonho da Terra Prometida que vislumbravam com a eleição de Bolsonaro.
Os setores midiáticos aproveitam esse momento para apresentar a conta do apoio dos bolsominions às mídias evangélicas, com o eterno discurso do ataque à democracia perpetrado pelos governistas, esquecendo que foram eles mesmos que se uniram em 2016 para romper com a democracia e retirar Dilma Rousseff do poder. A pergunta inicial “Aonde Vamos?” não pode prescindir da análise dos nossos erros históricos que foram semelhantes aos dos sociais-democratas alemães. Enquanto não organizarmos o povo quando a chance aparecer, continuaremos a vivenciar, bestializados, os eventos ao nosso redor.
* Marcio Tenenbaum. Advogado, membro da ABJD-RJ.
Edição: Pedro Ribeiro Nogueira