A Índia finalizou, no domingo (19), as eleições gerais do país. O processo, em que cerca de 900 milhões de pessoas puderam decidir o futuro do país, durou dois meses. O pleito, dividido em sete fases distribuídas entre 11 de abril e 19 de maio, é considerado um dos mais cruciais de sua história, tendo em jogo a própria sobrevivência da democracia no país.
As últimas eleições gerais aconteceram em 2014 e viram a ascensão do Partido do Povo Indiano (BJP), de direita. Naquele ano, o BJP e cerca de 40 legendas de centro-direita e extrema direita conquistaram maioria da Lok Sabha, a câmara baixa do parlamento indiano, com 336 das 545 cadeiras. A ascensão desses grupos foi atribuída às políticas ultranacionalistas e da extrema direita hindu, além do sentimento contrário ao Congresso Nacional Indiano (CNI), partido de centro que estava no poder. Na ocasião, Narendra Modi foi eleito primeiro-ministro.
Modi é uma figura polêmica pelo papel que supostamente desempenhou no massacre contra muçulmanos ocorrido no estado de Gujarat em 2002, quando mais de 1.500 pessoas foram assassinadas. Ele era o ministro-chefe do estado quando a chacina aconteceu.
A ascensão da direita na Índia levou ao enfraquecimento das instituições democráticas do país e também ao aumento de violência institucional contra militantes, vozes dissidentes, mulheres, dalits (grupo historicamente marginalizado e oprimido pelo sistema de castas do país), comunidades tribais, minorias e acadêmicos. A Índia tem registrado um aumento da violência, com casos de linchamento e assassinato de pessoas muçulmanas por multidões de direita e membros do Gau Raksha, grupo de protetores de vacas.
Além da violência, as políticas econômicas a favor das privatizações e das empresas levaram à diluição de programas de bem-estar social, ao enfraquecimento da educação pública e da infraestrutura da saúde e a ataques contra os direitos de trabalhadores e pequenos agricultores.
A corrupção no governo, principalmente com a polêmica do acordo para a compra de caças Rafale -- em que o governo de Modi favoreceu o conglomerado Reliance, do bilionário Anil Ambani, para a produção de aeronaves na Índia --, fortaleceu o capitalismo clientelista no país.
Apesar da promessa do BJP de promover um boom econômico, segundo o Centro de Monitoramento da Economia Indiana, a taxa de desemprego no país chegou a 7,6% em abril, ante 6,7% em março. Esse índice não considera a imensa população que está no chamado "setor não organizado" -- micro e pequenos negócios que correspondem a cerca de 90% dos empregos na Índia --, em que a remuneração dos trabalhadores é extremamente baixa.
No contexto das eleições gerais deste ano, o Peoples Dispatch, site parceiro do Brasil de Fato, preparou um artigo especial sobre o processo, com os principais atores, o que está em jogo e em que situação estão as forças progressistas e de esquerda nesse contexto.
O processo das eleições
A Índia tem uma estrutura federal (com um governo central e governos estaduais) e um sistema parlamentarista, no qual o parlamento é a maior autoridade legislativa. No pleito deste ano, os eleitores aptos a votar elegerão diretamente os membros da câmara baixa, a Lok Sabha. Uma vez definido, o partido ou aliança na maioria da casa formará o governo.
Na câmara baixa, dois membros são indicados pelo presidente e 543 são eleitos para um mandato de cinco anos -- mesmo tempo de gestão do governo. Cada estado tem um número de distritos proporcional à população de acordo com dados do censo de 2001, e cada distrito corresponde a um assento na casa. Por exemplo, o estado de Uttar Pradesh, no norte do país, tem a maior população e o número máximo de distritos e, consequentemente, de assentos na Lok Sabha -- 80.
As eleições gerais começam com o anúncio das datas do pleito pela Comissão Eleitoral da Índia, autoridade constitucional encarregada de realizar o processo. Imediatamente entra em vigor o Código de Conduta Modelo, com as diretrizes do que é permitido e proibido nas eleições.
No pleito de 2019, para chegar aos 900 milhões de votos em 29 estados e territórios da União, a comissão eleitoral instalou mais de 1 milhão de urnas em todo o país.
Na Índia, um tipo de urna eletrônica conhecido como EVM (Electronic Voting Machine) é utilizada desde 1999 em todas as eleições nacionais e estaduais. Recentemente, o uso das EVMs passou a receber críticas e alegações de possíveis manipulações para favorecer um partido em algumas regiões.
Embora o processo eleitoral tenha acontecido ao longo de sete semanas, não foi divulgado nenhum resultado parcial durante esse período. Os números finais da apuração devem ser divulgados na próxima quinta-feira (23).
Atores políticos
Uma questão importante nas eleições indianas deste ano é o papel do financiamento privado a grandes partidos políticos. Duas das maiores legendas na esfera política -- o Partido do Povo Indiano (BJP), de extrema direita, que está hoje no poder, e o Congresso Nacional Indiano (CNI), de centro, que esteve à frente do governo na última gestão -- receberam os maiores financiamentos de empresas privadas. As duas siglas defendem um modelo econômico neoliberal e, em seus mandatos, implementaram políticas que aceleraram o processo de privatização e enfraqueceram os direitos dos trabalhadores.
Segundo a Associação de Reformas Democráticas (ADR), em 2018, o BJP recebeu quatro bilhões de rúpias (US$ 56 milhões) em doações de corporações, o que corresponde a 92% de todo o financiamento de empresas privadas recebido por todos os partidos, enquanto o CNI recebeu 190 milhões de rúpias (US$ 2,7 milhões).
Narendra Modi, atual primeiro-ministro da Índia, é o candidato à reeleição do BJP, e Rahul Gandhi, filho do ex-premiê Rajiv Gandhi, concorre pelo CNI.
Além dos dois partidos maiores, outras siglas nacionais incluem o Partido da Maioria Popular (BSP), o Partido do Congresso Nacionalista (PCN), o Congresso de Base de Toda a Índia (AITC), o Partido Comunista da Índia (PCI) e o Partido Comunista da Índia - Marxista (PCI-M). A dinâmica entre partidos regionais, dominantes nos estados, também têm papel fundamental nas eleições nacionais.
Neste ano, tendo como maior desafio derrotar as forças de direita, muitos partidos políticos menores, nacionais e regionais, formaram alianças formais e informais contra o BJP.
O BJP está se apoiando nas narrativas ultranacionalistas e na imagem militarista e truculenta de Modi para vencer as eleições. O partido intensificou a defesa da Hindutva, política hindu de extrema direita, em uma tentativa de polarizar o eleitorado pelo discurso religioso.
Uma das principais candidatas do BJP ao parlamento, Pragya Thakur, responde a acusações de participação em um caso de terrorismo hindu e é um sinal visível da tática de polarização.
O presidente do BJP, Amit Shah, em uma retórica explicitamente contrária às minorias, defendeu durante um comício a implantação de um polêmico Cadastro Nacional de Cidadãos Indianos em todo o país para “remover todos os infiltrados”.
Os fatores econômicos são um ponto fraco no governo de Modi. A economia sofreu um baque considerável depois da desastrosa medida de desmonetização (banindo as notas de 500 e 1.000 rúpias). A decisão de tirar as notas de circulação, além da implantação de um novo imposto sobre bens e serviços, trouxe um impacto negativo de longo prazo na vida de milhões de pessoas.
A crise agrária, com altas dívidas de pequenos agricultores e a queda das subvenções para produtos agrícolas, levou ao suicídio de muitos pequenos produtores rurais -- outra grande questão nessas eleições. Segundo o órgão nacional de registros de crimes, 8.007 agricultores e 4.595 trabalhadores rurais cometeram suicídio em 2015.
O CNI e outros partidos estão pressionando o governo do BJP por causa do aumento da violência promovida pela extrema direita e a incapacidade de cumprir as promessas de desenvolvimento econômico, principalmente sem conseguir reduzir a taxa de desemprego, o imposto de bens e serviços e a desmonetização.
Outro ponto de mobilização contra o BJP é a repressão e caça às bruxas promovidas pelo Estado contra instituições de educação pública, incluindo ataques contra estudantes e o orçamento das universidades. O ataque contra a Universidade de Jawaharlal Nehru, a Universidade Central de Hyderabad, o Instituto de Cinema e Televisão da Índia, a Universidade Muçulmana de Aligarh, a Universidade de Punjab e outros institutos provocou revolta entre estudantes e jovens de todo o país.
A esquerda na Índia
Nos cinco anos de governo Modi, os partidos, sindicatos e entidades rurais de esquerda promoveram campanhas massivas de resistência.
Na frente dos trabalhadores, os sindicatos organizaram, em 2017, o protesto Mahapadav, quando 300 mil pessoas tomaram as ruas da capital Nova Délhi. Em 2019, foi realizada uma greve geral de dois dias contra as políticas privatistas e contrárias aos trabalhadores.
Os pequenos agricultores, dezenas de milhares de trabalhadores rurais promoveram longas marchas em toda a Índia após um chamado da AIKS, ala camponesa do PCI-M, e outras associações de agricultores para protestar contra a negligência do governo com as questões do campo.
Uma questão que chama atenção entre os partidos de esquerda mais proeminentes -- o Partido Comunista da Índia, o Partido Comunista da Índia (Marxista) e o Partido Comunista (Marxista-Leninista) da Libertação da Índia (PCI-ML) -- são os rostos jovens: pelo PCI, Kanhaiya Kumar, ex-presidente da união de estudantes da Universidade Jawaharlal Nehru; pelo PCI-ML, Raju Yadav e, pelo PCI-M, Biraj Deka e VP Sanu.
Para além da corrida eleitoral, a esquerda na Índia sempre foi uma força importante a levantar vozes e unir as lutas populares contra a exploração de trabalhadores, a crise agrária, a violência das castas mais altas contra minorias e a ascensão da extrema direita. O desafio prático para as legendas de esquerda, nesse momento, foi transformar as bases de luta em votos.
O PCI-M e o PCI têm presença forte no estado de Kerala, no sul da Índia, onde as duas siglas e outros partidos menores de esquerda estão no governo. Historicamente, a esquerda sempre foi forte em Kerala, com lutas antifeudais e, mais tarde, o primeiro governo comunista eleito no mundo.
A luta pelo futuro da Índia
O governo do BJP já deixou clara a intenção de acelerar as políticas neoliberais e do chamado majoritarianismo hindu.
Existe um grande desencanto com o governo de extrema direita nas eleições deste ano, mas só será possível saber se esse sentimento se converterá em votos contra o BJP no dia 23 de maio.
As forças progressistas da Índia têm esperança de tirar o governo de extrema direita, mas ao mesmo tempo estão prontas para resistir ao “retrocesso até a barbárie” se o BJP se confirmar como vencedor do pleito.
Assim, as eleições de 2019 da Índia representam uma luta pelo futuro e a democracia no país. A questão crucial aqui é se a Índia conseguirá se livrar da ascensão do populismo de extrema direita que está tomando o mundo ou se voltará a cair nele.
Edição: Peoples Dispatch | Tradução: Aline Scátola