Garganta inflamada, vômito, diarreia, dores no corpo, febre alta. Esses são alguns sintomas que centenas de presas da Penitenciária Feminina de Sant’ana (PFS), localizada na zona norte de São Paulo, estão sentindo desde o início do mês. A denúncia é feita por familiares e amigos das reeducandas, com base em um texto escrito de próprio punho pelas mulheres.
Obtida pelo Brasil de Fato, a carta escrita no dia 12 de maio afirma que mais de 600 presas adoeceram no último período.
Kaique Roberto, 21 anos, vai toda semana à PFS visitar sua irmã e endossa o que diz o documento. “O pessoal está tendo muito problema lá, de doença. É enjoo, febre, garganta inflamada. Falta dar remédio porque a cadeia fala que só pode se tiver receita”, conta o jovem.
“Eu tenho uma preocupação porque mesmo que ela não esteja doente, está em um ambiente fechado com muitas mulheres doentes. E ela pode pegar ainda outras doenças referentes a isso. Falaram até que tinha pombo morto dentro da caixa d'água”, acrescenta.
“O presídio deveria dar uma atenção para as meninas irem ao médico, porque não estão dando atenção nessa parte de medicina [remédios]. E colocar as meninas [doentes] em um local reservado para elas irem melhorando”, sugere Kaique.
Os mesmos relatos foram ouvidos durante visitas da Frente Estadual pelo Desencarceramento de São Paulo e da Associação de amigos e familiares de presos (Amparar).
Em resposta à demanda da reportagem, a Secretaria de Administração Penitenciária (SAP) afirma que a informação não procede. Segundo o órgão, no dia 2 de maio -- dez dias antes das reeducandas escreverem o texto denunciando a situação -- presas foram encaminhadas para a enfermaria com sintomas de amigdalite bacteriana.
“Foram convocados médicos que atendem na unidade para realizarem os atendimentos, que ocorreram até domingo, 05/05. Nesse período, 150 presas foram atendidas, sendo que seis apresentavam sintomas mais graves e foram encaminhadas ao Hospital Mandaqui para atendimento e realização de exames. Elas foram atendidas e medicadas, retornaram à unidade e estão sendo acompanhadas pela equipe médica da penitenciária”, diz o texto.
A SAP alega ainda que a Unidade de Vigilância em Saúde (Uvis) de Sant'anna foi notificada das ocorrências e está acompanhando o caso. No dia 7 de maio, outras três presas foram direcionadas ao mesmo hospital, onde realizaram exames laboratoriais e retornaram à unidade.
Descaso e desrespeito
Integrante da Amparar, que preferiu não se identificar, afirma que o descaso com a saúde das presas é muito recorrente. “De tempos em tempos, temos casos de surtos e epidemias, mas cotidianamente sabemos que existe um descaso em relação à saúde dessas pessoas muito por conta delas serem quem são. O não cuidado é por ser uma pessoa presa, por ser uma pessoa dita criminosa", comenta.
"Eles acham que podem violar todo e qualquer direito dessa pessoa, inclusive o direito à vida. Existe uma lógica de continuação da tortura que atravessa o campo institucional das prisões sem que as pessoas se importem”, lamenta a integrante da Associação.
Mateus Moro, um dos coordenadores do Núcleo Especializado de Situação Carcerária da Defensoria Pública de São Paulo, endossa a crítica. Ele pontua ainda que a situação se estende aos mais de 170 presídios do estado.
“Grande parte das unidades prisionais não contam com condições mínimas de saúde. Entramos com ações civis públicas após fazer inspeções nas unidades prisionais. Quando fazemos inspeção, quase nenhuma unidade prisional tem laudo dos bombeiros, da defesa civil ou da vigilância sanitária. São corpos descartáveis da sociedade de consumo que são armazenados nas prisões. A legislação, não só em relação à saúde mas a todos os direitos da pessoa presa, é totalmente violada”, ressalta Moro.
Em agosto de 2017, devido a cinco suicídios cometidos por presas da PFS, onde 2016 mulheres estão privadas de liberdade, o Núcleo da Defensoria Pública visitou a penitenciária. Após pedido judicial da defensoria, a vigilância sanitária fez várias recomendações de reforma em relação a enfermaria, porém, de acordo com o defensor, há várias melhorias que ainda não foram feitas.
A falta de remédios como dipirona e paracetamol também foram apontadas pelas presas da PFS, que, durante a visita do último dia das mães, optaram por não deixarem seus filhos entrarem no presídio devido à quantidade de mulheres doentes.
“Limitam o tratamento de saúde a dipirona e paracetamol. E chegamos em um nível de barbárie que até o remédio que é a solução de todas doenças pro sistema prisional está faltando agora. As pessoas chegam lá com dor de dente, com dor de estômago, com qualquer dor, qualquer coisa, a receita é dipirona”, diz o representante da Amparar.
Ambiente e alimentação insalubre
Em relação à estrutura da unidade, as presas e familiares denunciam que há proliferação de ratos no local, assim como pombas nas caixas d’água. A água, conforme argumentam, só está disponível nas torneiras das celas aproximadamente das 17h às 21h. Nos demais períodos as mulheres conseguem ter acesso à água apenas quando a guardam em baldes, e, por isso, quem não possui balde fica completamente sem acesso.
Já a SAP alega que não há racionamento de água na PFS, mas que, assim como demais unidades prisionais do estado, a penitenciária em questão “combate o desperdício no uso da água, incentivando seu uso racional, não havendo prejuízo na higienização pessoal, das celas ou no consumo.”
No entanto, a experiência do defensor público Mateus Moro evidencia o contrário.
“Fazemos inspeções e constatamos o racionamento de água. É só girar a torneira e ver que não tem água. O diretor vai falar que não, o juiz e o promotor vão acreditar. Mas a verdade é que vamos lá, giramos a torneira, e não tem água", confirma Moro.
"Até tratados internacionais falam que mesmo durante guerras as pessoas têm que ter água. Vivemos uma suposta democracia mas que não existe para algumas pessoas que são descartáveis”, denuncia o coordenador do Núcleo Especializado de Situação Carcerária da Defensoria Pública de São Paulo.
Outro ponto apresentado pela carta das presas é a alimentação insalubre, que estaria sendo servida estragada e “azeda”, impróprias para o consumo. Legumes com casca, feijão com larvas, garrafas e galões sujos são alguns dos relatos que os familiares ouvem. Presas com dietas restritas, devido a doenças como diabetes, hipertensão e úlceras, também não recebem alimentação adequada.
“Eles não consideram essas pessoas como humanas e as tratam como tratam cachorros de rua. Acho que até os cachorros de rua eles tratam melhor. Ninguém dá comida estragada para cachorro de rua, diferente de uma mulher ou de um homem preso, que são tratados dessa forma”, reforça integrante da Amparar.
A SAP nega que haja distribuição de comida estragada, porque as três refeições fornecidas às presas seguem cardápio balanceado, previamente estabelecido por nutricionistas.
Edição: Aline Carrijo