O argumento do combate à corrupção oculta a intenção de promover assepsia social
Por Marília Lomanto Veloso*
A Revista Brasileira de Cultura, em sua edição 244, trata, com muita propriedade, de matéria que denominou “Pacote de Troia”, em referência explícita à Lei Anticrime apresentada em fevereiro pelo ministro Sergio Moro, da Justiça e Segurança Pública. O conteúdo da Revista recupera uma das mais “lendárias” (ou verdadeiras?) estratégias do mundo antigo, elaboradas pela criatividade de um povo para o acesso (sorrateiro) ao território inimigo, derrubando suas defesas e destruindo suas forças de combate.
A narrativa poética da Ilíada, de Homero, registra o cavalo de Troia, artefato de madeira construído pelos gregos, que teria sido utilizado como um “presente” que induziu os troianos à falsa crença de rendição, de um símbolo de “paz”. Desse modo, carregaram o cavalo para dentro das muralhas da cidade, sem saber que seu interior ocultava os inimigos, os quais, durante a noite, dominaram os sentinelas, abriram os portões para o exército grego, permitindo que dominassem e arruinassem a cidade.
Fruto da imaginação ou lenda para uns, possibilidade de existência real para outros, reconstruído em diversas linguagens desde o Mundo Antigo, transitando por todos os tempos e espaços, o afamado cavalo foi ressignificado para nominar um engodo destrutivo, recebido como oferenda e de consequências nefastas para quem recebe o “presente de grego”, como também é identificado.
O cavalo de Troia é o registro histórico de uma farsa que ludibriou o espírito e a inteligência de um povo guerreiro. Isso, “há mais de mil anos”.
O Brasil do século XXI saltou com passadas gigantescas (para trás). Recuou para a antiguidade e buscou, entre os gregos e troianos, reconstruir a biografia do ilusório “presente” para se inspirar no que demonstra de mais esfaimado na prática de conquista, ou seja, a invasão do espaço de poder (legal) penal e processual penal, usando um modelo mais sofisticado e menos colossal do cavalo, não se apartando, entretanto, de sua natureza de “reedição da cilada grega”.
O Anteprojeto de Lei Anticrime (ou Pacote de Moro) é exatamente essa versão contemporânea codificada do cavalo de Troia, o embuste com roupagem legal que transita enfrentando severas críticas de estudiosos do direito e de outras áreas de conhecimento, incluindo as organizações populares e movimentos sociais que se insurgem contra as graves e inaceitáveis transgressões a princípios e paradigmas penais e processuais consolidados nos comandos repressivos.
Trata-se de um aglomerado de disposições perversas e desencontradas, fincadas em roteiros de práticas medievais, truculentas, adversárias das conquistas civilizatórias a respeito de institutos que sangraram por um percurso histórico impossível de admitir recuos.
O “transtorno punitivo” que Sergio Moro tenta infiltrar no sistema penal já infectado por uma prática seletivista, estigmatizante, opressora, aliada das forças que sustentam o capital especulativo nacional e estrangeiro, para além da inevitável impugnação legal que certamente recairá sobre seu conteúdo de efervescente recrudescimento da resposta penal, valida e legitima a “matança” de corpos negros, periféricos, vulneráveis e “invisíveis” para as politicas públicas de segurança, de respeito à vida, à integridade física, direitos e princípios constitucionalmente garantidos.
O argumento pífio e biltre do combate à corrupção, ao crime organizado e aos crimes praticados com violência contra pessoa, embrenhado na Justificativa do Pacote significa um dos recursos ardilosos escondido no ventre do “equino”, escamoteando verdades que se ocultam na intencionalidade do sistema punitivo, em especial, a de promover a assepsia social, tornando limpos e esteticamente aspiráveis os espaços por onde fluem corpos brancos, esguios e economicamente empoderados.
Pautar debates sobre esse Pacote é fundamental para fazer emergir os sintomas da morbidez do que está proposto como solução para um contexto de criminalidade construído, no seu universo maior, pela presença do próprio Estado e de sua capacidade ímpar de se instituir como principal agente da violência que promete combater.
*Marília Lomanto Veloso é baiana, advogada, doutora em Direito e membro da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD)
Edição: Daniela Stefano