O setor audiovisual brasileiro encontra-se em estado de alerta máximo. Em cena, a necessidade de uma definição sobre o modo de prestação de contas dos produtores audiovisuais junto aos órgãos competentes. Como pano de fundo, a disputa pela política de financiamento do audiovisual brasileiro, hoje em preocupante compasso de espera. O estado de suspensão (e suspeição) coloca em risco o presente e futuro de um mercado de grande importância para o país – além de milhares de empregos, e a vida das pessoas físicas e jurídicas ligadas a ele.
Após experimentar um período de expressivo crescimento, marcado pela realização de produções de sucesso, o audiovisual brasileiro aguarda que a Agência Nacional de Cinema (Ancine) e o Tribunal de Contas da União (TCU) cheguem a um denominador comum sobre o tema. Isso tudo em um cenário político e econômico não apenas complexo como muitas vezes ameaçador.
No coração do impasse, encontra-se uma decisão do TCU, do final de março, determinando que a Ancine reveja seus métodos de conferência da aplicação de recursos públicos repassados a projetos audiovisuais. Com base em auditoria, o tribunal concluiu que a metodologia de prestação de contas Ancine+Simples – instituída em 2015, durante o governo Dilma Rousseff (PT) – é contrária à legislação e não detecta eventuais fraudes.
O relatório aprovado no Acórdão 721/2019 recomenda que o Ministério da Cidadania – que substituiu o extinto Ministério da Cultura (MinC) -- e a Ancine “atentem para a necessidade de só celebrarem novos acordos para a destinação de recursos públicos ao setor audiovisual, quando dispuserem de condições técnico-financeiro-operacionais para analisar as respectivas prestações de contas”.
Em 2018, a agência foi responsável pelo repasse de cerca de R$ 1,25 bilhão a centenas de projetos, financiados sobretudo a partir de recursos do Fundo Setorial do Audiovisual (FSA). Além disso, estima-se que as leis de incentivo tenham assegurado algo próximo a R$ 500 milhões adicionais para o setor. Tudo isso foi impactado diretamente pela decisão do tribunal.
“A gente precisa que ambos se entendam. Nesse desentendimento entre o TCU e a Ancine, quem sai prejudicado é o setor”, afirma Cíntia Domit Bittar, diretora da Associação de Produtores Independendes (API).
Ela defende que, “o importante para nós é que ocorra um entendimento rápido entre TCU e Ancine para que o setor não fique paralisado e nem trabalhando com tanta insegurança jurídica."
Referenciado no Decreto 8.281, da então presidenta Dilma Rousseff, o plano hoje questionado pelo TCU foi implementado para agilizar a análise dos processos. O mecanismo Ancine+Simples previa a não verificação dos comprovantes de dispêndios e o uso de amostragem para selecionar os processos a serem submetidos à análise completa.
Os objetivos declarados pela Ancine, na época, foram “a eliminação do retrabalho, a qualificação das análises e decisões da Agência, a redução dos prazos com aumento da produtividade, o aperfeiçoamento dos controles materiais e formais sobre as operações financeiras, a ampliação da transparência”.
“Minha avaliação é de que o TCU erra do começo ao fim nesse ponto”, afirma João Brant, doutor em ciência política pela Universidade de São Paulo (USP) e ex-secretário-executivo do Ministério da Cultura (MinC) entre os anos de 2015 e 2016. Brant escreveu sobre o tema em parceria com o ex-ministro da Cultura, Juca Ferreira, em artigo publicado recentemente no jornal Folha de S. Paulo.
Em entrevista para o Brasil de Fato, ele registra que o próprio TCU defendeu em decisões anteriores a necessidade de se assegurar eficiência e economicidade nas avaliações de prestações de conta.
Para Brant, a prioridade deveria ser garantir que o dispêndio de recursos financeiros, humanos e de tempo envolvidos em uma prestação de contas seja proporcional aos recursos que serão eventualmente recuperados ou aos desvios que se evitarão com tais mecanismos de fiscalização.
De acordo com ele, há uma série de estudos da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), da União Europeia, que corroboram com esse ponto de vista.
"O TCU apresenta uma série de questionamentos, como se fosse uma obrigação, necessariamente, de a Ancine avaliar cada uma das notas fiscais. Para quem não conhece a gestão pública, pode soar muito interessante. Você fala: ‘não, claro, é uma segurança a mais para o dinheiro público’. Mas, se você pensar o que isso gera em termos de custo e de desperdício de recurso público, vê que isso não faz sentido”, argumenta o especialista.
Pântano cultural
Viviane Ferreira, presidente da Associação dxs Profissionais do Audiovisual Negro (Apan), entende que “para que o acórdão do TCU seja compreendido distante de equívocos, é preciso que a atividade audiovisual tenha as suas especificidades reconhecidas -- e não seja equiparada à atividades como a construção civil, por exemplo”.
Para Ferreira, “no pântano que as disputas políticas transformaram o setor cultural no Brasil, fica difícil identificar todas as motivações ou intenções não-declaradas que envolvem cada decisão”.
“O fato é que não podemos ignorar que o país atravessa um golpe, que se amparou em retóricas técnicas-jurídicas, para arrastar milhões de brasileiros as urnas e legitimar democraticamente um governo sem nenhum compromisso e respeito com a soberania nacional”, assinala a presidente da Apan.
Segundo ela, o que está em jogo é a posição do audiovisual brasileiro no mercado mundial. “Seguiremos fortalecendo e ampliando o espaço conquistado como um país produtor potente, ou retrocederemos ao lugar de, apenas, país consumidor e prestador de serviço do mercado audiovisual estrangeiro?”, indaga.
Impactos e paralisia
Desde 2018, o TCU vem fechando o cerco contra a Ancine. Naquele ano, o órgão de controle abriu um processo apontando risco ao erário -- o conjunto dos recursos públicos -- com editais de fomento da Agência.
Em junho daquele ano, o Tribunal aprovou o Acórdão 4.835/2018, determinando a substituição da Instrução Normativa 124 (Ancine+Simples) por um novo regulamento que exigisse análise integral das contas todos os projetos.
Então sob a presidência de Christian de Castro, nomeado no governo Michel Temer (PMDB), a Agência concordou com as linhas gerais do diagnóstico e deu início a um plano de ação para adequar as normas ao que fora recomendado.
Já depois de instalado o governo de Jair Bolsonaro (PSL), em março de 2019, o plenário do TCU julgou outro processo sobre o Ancine+Simples e endureceu as observações e recomendações.
O relatório – Acórdão 721/2019 – aponta irregularidades em sete produções auditadas e cita, para ser ouvido por sua responsabilidade na aprovação dessas contas, o ex-presidente da Ancine (2006-2017), Manoel Rangel, ao lado de diretores e ex-diretores.
Um prazo de 60 dias foi estipulado para a apresentação de um plano de ação para reanálise das contas prestadas por todos os projetos audiovisuais aprovados, seja na íntegra ou com ressalvas.
Segundo entendimento da Apan a insegurança jurídica gerada pela ação do TCU já está desarticulando a cadeia produtiva nacional e interrompendo políticas da Ancine que visavam a equidade no cenário interno.
“Essa conjuntura culmina em estagnar um processo de reestruturação das relações sociais no setor audiovisual, no qual as questões de gênero, raça e regionalidade esteve dando o tom nos gargalos a serem superados, apontando caminhos e alternativas para o aprimoramento do sistema de fomento, regulação e fiscalização do setor”, explica a presidente Viviane Ferreira.
Projeto nacional
Para Fábio Rodrigo, diretor de cinema e criador do projeto “IRA NEGRA – filmes do gueto para o gueto”, a paralisação de verbas para a cultura no Brasil faz parte de um projeto articulado.
O diretor ressalta que além da Ancine, o governo Bolsonaro cortou patrocínios da Petrobrás e da Caixa Econômica para a cultura e conta estar trabalhando em um novo filme: “é incerto se vamos conseguir exibi-lo no Brasil”.
Nascido na Vila Ede, zona norte de São Paulo, o cineasta utiliza de sua vivência para contar histórias que se passam na periferia. Em sua leitura, “assim como a educação, a cultura tem o poder de abrir a mente das pessoas e a ideia desse governo é manter o povo o mais longe possível da informação, da opinião própria, da avaliação consciente”.
Ele relata os problemas enfrentados por pessoas ligadas ao setor após a decisão do TCU e diante da postura do novo governo para com o setor. “Tem projetos aprovados e parados, tem profissionais só esperando o dinheiro cair para poderem trabalhar e isso é destruidor. Tem festivais de cinema parando, cortando gastos, salas fechando, equipamentos culturais em risco”, enumera.
Com produções reconhecidas em festivais, na quebrada e junto à crítica, ele destaca que a periferia sempre acha meios para viabilizar e difundir seus trabalhos e que, “se não for num grande Festival eu vou exibir na praça, nos muros, nas casas, faço cópias e distribuo nas ruas, sempre pensei assim. Acredito que para as produtoras que nunca pensaram, essa é a hora”.
Eneide Gama, produtora cultural com longa metragem de apoio e gestão de projetos na periferia de São Paulo, considera que o setor audiovisual está paralisado por conta do desmonte da cultura. "Ainda não sabemos lidar. O que precisa ser feito é a grande questão. Nos formamos fazendo a arte. Não nos preparamos para a guerrilha. Os movimentos são tímidos. Na verdade ninguém sabe o que fazer”, arremata.
Com atuação especial na Zona Sul da capital e em cidades do entorno, ela afirma que, em sua área, “está todo mundo correndo atrás da comida no prato". "Não sei como andam as coisas nos grandes produtores... Mas na periferia está faltando comida. Está faltando o básico”, revela.
Tratamento rígido
Uma parte das cerca de 200 empresas representadas pela Associação de Produtores Independentes (API) respondeu a um questionário sobre o volume de recursos e de produções que se encontravam paralisados em meados de maio.
“Só na nossa entidade, a conta chegou a quase R$ 80 milhões que estão parados. É um dinheiro que está deixando de circular na economia brasileira”, calcula Cíntia Domit Bittar, da diretoria da associação.
A Ancine chegou a suspender os repasses e a celebração de convênios, e entrou com embargos de declaração no TCU. A Agência argumentava que já vinha implementando desde 2018 as mudanças exigidas pela corte, inclusive em seu próprio funcionamento – segundo o presidente Christian de Castro, 70% das ações já estavam em curso –, e que sua defesa anterior foi desconsiderada.
Relator do caso no TCU, o ministro substituto André Luís de Carvalho propôs a rejeição dos embargos, aprovada pelo plenário, e questionou a paralisação de atividades – que então foram retomadas – no órgão federal. Chamou, por fim, os responsáveis a se explicar.
A Agência protocolou recurso de mérito -- outro tipo de apelação -- em 2 de maio. Um novo relator será sorteado para apreciar a defesa.
Reportagens publicadas pela imprensa especializada (como esta do portal Tela Viva) destacam que, no meio artístico e entre os servidores envolvidos, é corrente o entendimento de que o Acórdão 721 teve motivação política e soma-se a medidas do governo Bolsonaro que buscam emparedar o setor cultural.
Outra matéria, do Metrópoles, menciona proximidade do ministro do TCU – que é capitão da reserva do Exército – com o presidente da República, e destaca que, em 27 de abril, ambos estiveram em almoço de aniversário na casa de outro integrante do Tribunal. A sessão em que os embargos foram rejeitados aconteceu três dias depois.
Em entrevista ao Brasil de Fato, Carvalho afirma que a decisão teve caráter técnico e passou por sete etapas na casa, além do voto de nove ministros. Ele ressalta que chegou ao cargo por concurso, e não indicação política.
A Ancine informou que aguardará o julgamento para se pronunciar novamente sobre o assunto.
Para Marina Pita, do Coletivo Brasil de Comunicação Social (Intervozes), “é inegável a importância do TCU para fiscalização e controle e melhor investimento dos recursos públicos”. Ela cita como exemplos a análise do tribunal acerca da política nacional de banda larga e a atuação do TCU na tentativa de celebração de Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) com a Telefônica.
Ela registra que “diversos funcionários da Ancine apontam ausência de recursos suficientes para o devido controle e monitoramento da política de fomento à indústria audiovisual” e que recursos de inteligência artificial poderiam auxiliar a detectar desvios do padrão de gastos para análise detalhada.
A integrante do Intervozes ressalta, por outro lado, que houve outras questões de grande importância envolvendo recursos públicos que não receberam o mesmo tratamento rígido por parte do TCU.
Pita cita como exemplo o controle de bens reversíveis, aqueles usados pelas concessionárias de telecomunicações mas de posse da União, pela Anatel. Ela explica que, “há anos, as concessionárias têm vendido bens que poderiam constar na lista de bens da União” e que esses bens reversíveis já foram estimados em nada mais nada menos que R$ 100 bilhões.
“Não seria o caso de impedir a Anatel de autorizar a venda de bens reversíveis até que se resolvesse quais são e quais não são bens reversíveis?”, questiona.
“Não sou o primeiro nem serei o último”
No início de maio, o governo federal adotou outra medida bastante controversa em relação a uma produção de destaque do cinema nacional. A gestão de Bolsonaro confirmou a exigência de que o cineasta Kleber Mendonça Filho devolva ao Fundo Nacional de Cultura R$ 2,2 milhões usados na produção do filme O Som ao Redor (2012).
A decisão, que dá 30 dias de prazo para o depósito, foi publicada pela Secretaria do Audiovisual do Ministério da Cidadania. A primeira notificação pela devolução foi emitida em março de 2018, quando a secretaria pertencia ao hoje extinto MinC.
A produção ultrapassou o limite de um edital voltado a filmes de baixo orçamento, mas o diretor argumenta que a verba excedente foi obtida em âmbito estadual e que a secretaria do MinC respaldou a captação, que estaria em consonância com a praxe do ramo.
Mendonça Filho publicou carta aberta endereçada ao então titular da pasta, Sérgio Sá Leitão, reiterando o pedido de diálogo e afirmando que o pagamento representaria enriquecimento injustificado da União, uma vez que o longa foi entregue.
“O resultado final dessa multa absurda (...) irá inviabilizar, de forma grosseiramente burocrática, nosso trabalho como produtores de cinema”, afirma o texto, que classifica a punição como inédita no país.
Em abril de 2019, ao saber que o último recurso administrativo havia sido negado, Mendonça Filho declarou: “Eu não sou o primeiro nem serei o último artista atacado por pessoas que ocupam posições temporárias de poder”. Ainda é possível contestar a decisão no TCU ou tentar outros recursos jurídicos.
Sociedade quer uso do recurso comprovado, diz relator
Leia a entrevista com o relator do processo no TCU sobre a prestação das contas de projetos audiovisuais, o ministro substituto André Luís de Carvalho. Ao fim da conversa telefônica com o Brasil de Fato, ele informou que só autorizaria a publicação das respostas que fossem reproduzidas na íntegra. (Ele dirige-se a “ouvinte” porque a gravação também foi feita para a Rádio Brasil de Fato.)
Brasil de Fato: A Ancine justificou a implantação do Ancine+Simples como uma forma de agilizar a análise de processos. O que o TCU constatou com relação a essa metodologia?
André Luís de Carvalho: A matéria está em grau de recurso, mas eu posso adiantar o que foi já decidido até agora a partir do parecer da unidade técnica. Veja bem, o que eu vou falar aqui está sujeito a recurso, pode ser até que haja uma evolução de impedimento, mas na data de hoje [quinta-feira, 16] isso é o que está sendo aplicado. A questão do Ancine+Simples é que a partir de um decreto a agência passou a entender que ela não precisaria fazer a análise de prestação de contas de todos os empreendimentos culturais. Ela poderia fazer por amostragem.
Acontece que o decreto não fala isso necessariamente. Você tem duas atividades na área de controle: fiscalização e prestação de contas. O decreto fala em amostragem para fiscalização, mas o decreto não fala em amostragem para prestação de contas. Inclusive, no artigo 3º, onde ele fala isso, ele expressamente comenta da fiscalização, expressamente comenta da prestação de contas e no parágrafo correspondente ele só fala de amostragem na fiscalização. Logo, é o que a gente chama de silêncio eloquente, né? Então não cabe amostragem na prestação de contas.
Isso aí tem uma lógica muito simples, não poderia mesmo o decreto fazer diferente, porque a Constituição não admite e a legislação aplicada não admitiria amostragem na prestação de contas. Fechando aqui já e explicando para os ouvintes, a coisa é muito simples. São recursos públicos destinados a determinados empreendedores. Quando eles recebem recurso público, ele tem que comprovar tudo que ele fez com o recurso público. Cabe a cada empreendedor comprovar e cabe ao agente público que trabalha junto da Ancine analisar essa prestação de contas. Isso, inclusive, é bom de lembrar que é um princípio constitucional, a prestação de contas, né? E muito ligado a um princípio republicano e com certeza toda a sociedade brasileira quer que o recurso público seja comprovado, porque não existe essa questão de algumas pessoas receberem recursos públicos, gastarem, aplicarem esses recursos públicos e não prestarem contas. Lembrando, enfim, que o recurso público na verdade é aquele dinheiro daquela pessoa humilde que mora lá no interior, ou numa zona pobre da cidade urbana, que pagou o seu tributo e esse dinheiro de alguma maneira está caindo na mão de alguém que vai gastá-lo. Então, nada mais justo que esse alguém que vai gastar o dinheiro desse cidadão brasileiro de bem, pobre, e que pagou seu tributo, que ele preste contas mostrando o que ele fez com esse dinheiro.
E não pode ser por amostragem, essa é a posição atual. A fiscalização poderia ser feita. Ou seja, a Ancine vai e dá uma olhada para ver o que aconteceu. Isso pode ser por amostragem. Mas a prestação de contas é integral por força da Constituição.
Algumas das pessoas que se manifestaram em relação a essas decisões – a do ano passado e a de agora – apontam como se o TCU estivesse de alguma maneira legislando ou mesmo redesenhando uma política pública que se baseia em decreto que não teve contestação na época.
O que o senhor comenta a respeito dessa alegação?
Eventualmente, se alguém levantou a questão desse jeito, essa pessoa está bem equivocada, né? O TCU de maneira alguma substitui a definição de política pública, e lembrando que política pública nem é definida por agência reguladora, quem define e quem formula política pública é o ministério. Então não seria, já, a agência reguladora. E nesse caso, inclusive, a Ancine nem atua como agência reguladora, atua como agência de fomento, porque ela está fomentando a indústria do setor audiovisual por meio dos três canais aí que é o fundo – o FSA, né? –, os incentivos fiscais e os recursos da própria Ancine.
Mas o ponto central é o seguinte: o TCU de maneira alguma pretende substituir a formulação da política pública, tanto que pediu que a Ancine apresentasse, em articulação com o Ministério da Cidadania, o plano de ação que vai ser cumprido em 12 meses. Então, veja, não existe nenhuma intenção do TCU em substituir o ministério ou a agência. E também um detalhe importante de destacar é que prestação de contas nem é política pública. Prestação de contas é um dever constitucional de todo aquele que recebe um dinheiro público federal de mostrar para a sociedade brasileira o que fez com o dinheiro público. Vou insistir mais uma vez: aquele cidadão brasileiro pobre que está pagando seu tributo – por exemplo, com o recurso que vai para a Condecine – quer ver o seu dinheiro do tributo comprovado o gasto, esse é um dever constitucional. E o tribunal já sabe disso, o próprio gestor sabe disso, e só o gestor, digamos assim, mal-informado é que poderia pensar diferente na hipótese de gastar o dinheiro público sem prestar contas. Esse gestor público realmente está muito defasado na História. Isso aí talvez acontecesse lá pela Idade Média, mas no século 21 algum gestor pensar nessa possibilidade, ele estaria bem defasado.
Os críticos também falaram, com relação ao TCU, que, apesar de o sr. ter sempre se mostrado gentil e aberto a reuniões, havia entre os funcionários da Ancine e as entidades que estavam acompanhando uma percepção de não existir abertura a mudar nada no entendimento. De que, de alguma maneira, estava reforçando uma diretriz que o governo federal vem adotando, de sufocar o setor da produção cultural com cortes de recursos e outras medidas. Gostaria que o sr. comentasse.
Isso, na minha opinião, é uma tentativa – muito fraca, até – de transformar uma discussão técnica numa discussão política. O TCU jamais entraria nesse ponto. O esclarecimento é até bem simples: eu não invento nada, sou apenas o relator; o tribunal também não inventa nada, ele apenas segue a lei e a Constituição. A Constituição e a lei mandam expressamente fazer a prestação de contas integral. O decreto não podia fazer diferente, também não fez. Ele apenas diz de usar amostragem na fiscalização. Em grau de recurso, isso vai ser novamente examinado pelo tribunal.
Mas o ponto central também de se discutir é o seguinte: primeiro, o tribunal não decide nada sozinho. Eu até falei isso em todas as vezes que recebi no meu gabinete o pessoal da Ancine e o pessoal da comunidade audiovisual, a exemplo do sindicato, do Sicav [Sindicato Interestadual da Indústria Audiovisual]... Recebi todos e sempre expressei o seguinte – só para vocês terem uma ideia, e é bom o ouvinte saber disso aí, o ouvinte brasileiro. A questão é simples: o tribunal quando decide, decide a partir de sete posições técnicas. O auditor federal examina a questão e emite o seu parecer; depois, em segundo lugar, o diretor confirma ou não esse parecer, quer dizer, emite uma segunda opinião; depois o secretário emite a sua terceira opinião, confirmando ou não aquela; depois a matéria tem uma participação ainda, direta ou indireta, do Ministério Público junto ao tribunal, que vai poder se manifestar oralmente ou por escrito no dia da sessão, essa é outra posição; na sequência, o assessor do relator – eu sou o relator, tenho uma equipe de assessoria – emite outra opinião; eu examino a matéria como relator e a partir daí vou orientar o assessor para modificar ou não alguma coisa, mas a opinião dele vai ser considerada, aí vem a minha opinião; e por fim a matéria é submetida a um colegiado, que no caso aí foi o plenário, composto por nove ministros, e quem decidiu foram nove ministros. Lembrando que o TCU, diferentemente de outros tribunais, ele não decide nada monocraticamente. Todas as decisões são colegiadas. Nesse caso nove ministros votaram.
Um detalhe interessante, que também vale a pena destacar para até afastar essa mera tentativa vã, e diria até absurda, de transformar em discurso político uma questão eminentemente técnica, é que eu observo que eu nem votei nessa matéria, porque eu não estava substituindo o ministro nas duas sessões em que teve o voto e o voto dos embargos. Eu estava como ministro substituto sem ser convocado para substituir diretamente o ministro, então apresentei proposta de decisão, ou seja, a minha decisão nem contou. Os nove ministros, que examinaram a minha manifestação, àquela época concordaram.
Observe, é totalmente infundada a colocação nesse sentido e quem tenta fazer isso lamentavelmente tenta enganar as pessoas de bem que trabalham no setor audiovisual com discursos vazios, com viés político, esquecendo que a abordagem é técnica. E lembrando sempre que o meu cargo de ministro substituto no TCU é concursado. Não entrei lá por indicação de ninguém, estou no cargo de ministro substituto há dez anos e não dependo de ninguém para fazer meu trabalho, graças a Deus. É uma felicidade que eu tenho na minha vida: de não depender de ninguém para poder exercer a minha atividade. E tento humildemente, na medida do possível, sempre me esforçando, fazer isso em prol da sociedade brasileira, pois ganho e pagam para isso.
Existe previsão de quando o recurso vai ser apreciado?
O procedimento esperado é que, seguindo o devido processo legal, em respeito à Constituição e à lei, vai ser sorteado um relator, esse relator vai mandar para uma unidade técnica, que é a Secretaria de Recursos, que vai emitir a opinião, e de novo nós teremos sete opiniões de novo sobre o mesmo caso para examinar a questão. Até, para terminar, gostaria de destacar: essa é a grande virtude do Tribunal de Contas da União. Ele não faz nada por decisão monocrática. A decisão é tomada por colegiado, e nesse caso vai ser tomada por colegiado pleno, com os nove ministros. Basicamente é isso. Eu agradeço a oportunidade de me manifestar e me coloco à disposição de todos para esclarecimentos.
Edição: Rodrigo Chagas