O sociólogo e professor da USP Octavio Ianni (1926-2004) explicou detalhadamente no livro A Ditadura do Grande Capital como a ditadura empresarial-militar foi um período de consolidação de um padrão de dominação e de acumulação, favorecendo a burguesia brasileira.
Ganhador de dois prêmios Jabuti e outras condecorações da Academia Brasileira de Letras, Ianni apresentou um surpreendente cenário no qual a violência contra cidadãos, trabalhadores, sindicatos e partidos políticos tinha relação direta com a agenda econômica a ser implantada no país. Tudo com o objetivo de incentivar o agronegócio e o capitalismo monopolista.
A Ditadura do Grande Capital é uma das obras-primas de Octavio Ianni, um dos fundadores da Escola de Sociologia da USP. A primeira edição do livro é de 1981. A obra agora é relançada pela editora Expressão Popular, mantendo o frescor e o rigor de análise que se encaixa perfeitamente em vários pontos da conjuntura atual em pleno governo de extrema-direita.
O livro explica também o passo a passo do desenvolvimento econômico do Brasil, às custas do subdesenvolvimento da população, durante a ditadura militar, que teve amplo apoio da classe burguesa, do setor financeiro e das empresas privadas.
O Brasil de Fato entrevistou Rodrigo Castelo, professor da Escola de Serviço Social da Universidade Federal do Estado Rio de Janeiro (Unirio) sobre a obra, que é considerada um marco na literatura de pensamento crítico e social sobre o país.
Confira os melhores momentos:
Brasil de Fato: Como pode ser comparado o período histórico abordado no livro e a atual conjuntura?
Rodrigo Castelo: São conjunturas bem diferentes. A ditadura empresarial-militar é um período de consolidação de um padrão de dominação e de acumulação. O Brasil tinha passado por uma crise orgânica, a partir dos anos 1950, com muita instabilidade política e econômica. No livro, o professor Ianni mostra como se consolida o bloco de poder dominante com hegemonia do capital financeiro internacional junto com os setores da burguesia brasileira, isso tudo orquestrado pelo Estado Brasileiro.
Hoje, temos a ruína de um padrão de acumulação e padronização que vem desde o Fernando Henrique Cardoso [PSDB], passando pelo PT, mas com diferenças entre o PT e o PSDB, mas estrategicamente é o mesmo padrão de acumulação neoliberal. E hoje, desde o golpe de 2016, ou um pouco antes, nas jornadas de junho [2013], temos a abertura de uma crise orgânica. Atualmente não há um padrão de acumulação e dominação, não está instituído, isso dificulta a análise, porque estão frágeis as bases de acumulação e dominação capitalista.
Por que frágeis?
A gente está vivendo “a quente” o desenvolvimento da crise orgânica. Inclusive, as próprias classes dominantes batem cabeça entre si. No livro, Ianni mostra que as classes dominantes já tinham aparado as arestas entre si desde o suicídio do Vargas [em agosto de 1954] até a deposição do Jango [1964], e começa a andar com pernas próprias com a ditadura empresarial-militar, e como as classes subalternas reagem a isso.
Como é essa abordagem no livro?
O livro mostra como a ditadura estrutura a base econômica. A gente está acostumado a relacionar a ditadura, corretamente, a partir dos assassinatos, mortes, exílios, atos terroristas da própria ditadura, a supressão de direitos, a censura, e tudo mais. Isso é parte da questão, o Ianni vai para além do debate da repressão e vai explicar como essa opressão e repressão se relaciona com as expropriações e a superexploração da classe trabalhadora. O Ianni mostra as formas intervencionistas do Estado para criar o padrão de acumulação.
Como foram essas intervenções?
O Estado, apesar do discurso liberal, na prática, sempre faz intervenções muito pesadas na economia e não só no momento desenvolvimentista. Nos anos 20 e 30, na primeira República, o Estado fez investimentos em infraestrutura, no café, na política cambial para garantir os ganhos dos latifundiários. No neoliberalismo também vamos ver um investimento pesado no Estado. É uma das marcas do trabalho do Ianni, não somente neste livro, A Ditadura do Grande Capital, mas em Estado e Capitalismo, Estado e Planejamento Econômico no Brasil e Ditadura e Agricultura. É um conjunto de livros e artigos que mostra um método de análise que sempre relaciona economia e política, em especial, vendo como o Estado, a serviço das classes dominantes, variando quem tem a hegemonia do Estado a depender do momento, como o Estado atua em favor da acumulação capitalista.
A ditadura militar aqui no Brasil serviu então para defender a burguesia?
Existe um dado interessante sobre a ditadura militar-empresarial no Brasil -- e aí tem até a ver com hoje -- que os militares ocupam diversos cargos-chaves, a presidência, vários ministérios, mas os aparelhos econômicos são ocupados por civis indicados pela grande burguesia. O primeiro plano de combate à inflação, de 1964 a 1967, foi feito por Roberto Campos e Otávio Bulhões, dois representantes da burguesia, feito este ajuste recessivo, muito parecido com o que é feito agora, e depois assume o Delfim Netto, que é um grande representante da burguesia paulista. O Delfim era um agente histórico de grande poder, que articulava os interesses tanto da burguesia agrária como da burguesia industrial como dos setores financeiros. Ele fazia a ponte entre a burguesia nacional e a burguesia estrangeira.
E foi assim por toda a ditadura?
Depois do Delfim, veio o Mário Henrique Simonsen. São poucos economistas que estão nos postos do governo, da Fazenda, do Banco Central, do Tesouro Federal, da Receita Federal, etc. Isso mostra que é esse o espaço que a burguesia vai ficar e com uma estabilidade muito grande. Ficando, inclusive, para além dos “mandatos” dos ditadores. O Delfim Netto, por exemplo, começa no Costa e Silva e vai até o Figueiredo. Isso mostra que ele era o indicado pela burguesia para dar o viés econômico, independentemente das brigas internas entre os generais.
Como era essa atuação na economia para responder às expectativas da burguesia?
O Estado brasileiro faz um conjunto de políticas econômicas que visava favorecer essas grandes empresas, mantendo os seus privilégios, mas tendo em foco o desenvolvimento da acumulação do capital no Brasil, que vive um momento realmente de salto impressionante. Na época, o Brasil se torna a oitava maior economia do mundo, posto que a gente conserva até hoje.
O interessante do livro é a revelação que é a marca do capitalismo dependente brasileiro na época, não é a ausência de desenvolvimento, mas como ele se deu. Foi um desenvolvimento desigual e combinado onde teve desigualdades abissais entre classes sociais, entre regiões, entre grupos sociais, no campo e na cidade, mas também tem a combinação de formas extremamente modernas de produção capitalista com formas arcaicas. O subdesenvolvimento no Brasil nunca foi barreira para o desenvolvimento. Pelo contrário, a forma como se desenvolve, incorpora, inclui e impulsiona o desenvolvimento.
Como é o método do trabalho do professor Ianni?
São análises estruturais a partir de análises conjunturais. O Ianni vai colocando em movimento esses padrões mais estruturais que ele chamava de padrão de acumulação e dominação, mas junto com isso como é que se dão as diferentes conjunturas dentro deste padrão. Esse método de análise, que é riquíssimo, vale para o momento histórico do livro A Ditadura do Grande Capital, vale para a Primeira República e vale para o período de neoliberalismo.
O livro vai para além da economia quando se trata da influência estrangeira?
Embora ele coloque muito peso na questão econômica, ele trata da questão das artes, da cultura, da educação, mostrando que junto do padrão de acumulação vem também um padrão de dominação. O Estado fez diversos acordos com os EUA, o livro fala da formação da Rede Globo, intimamente ligada à ditadura empresarial-militar no Brasil. Certamente, o Brasil tinha uma ligação de subordinação ao imperialismo estadunidense, que vem desde o pós Segunda Guerra Mundial, com o financiamento da CSN [Companhia Siderúrgica Nacional] e tem o seu ápice agora no governo Bolsonaro. No entanto, a subordinação do Brasil, lá na ditadura, tinha muito mais conflitos com o imperialismo do que hoje.
Na ditadura, apesar da subordinação, tinha áreas de conflito com os EUA porque o Brasil queria estabelecer zonas de influência nesse período. O Brasil, para se tornar influente em determinadas áreas geopolíticas, teve que se posicionar contra os EUA. Não é isso que vemos hoje. É uma total e clara subserviência. A imagem disso é o nosso presidente eleito batendo continência para a bandeira americana. Isso é impensável para um general da ditadura. Seria impossível imaginar, o Delfim ou Simonsen, dizendo, em inglês, que temos que vender tudo para os americanos.
Edição: Rodrigo Chagas