DESMONTE

Premiado no exterior e atacado no Brasil, audiovisual movimenta quase 0,5% do PIB

Cinema nacional floresce e ganha destaque dentro e fora do país enquanto amarga cortes e ataques do governo

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |
Cena do filme "Bacurau", de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles
Cena do filme "Bacurau", de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles - Divulgação

Entre os anos de 2007 a 2013, o setor audiovisual brasileiro cresceu a números dignos de economia chinesa. Gerando investimentos e empregos de forma crescente, o setor experimentou um crescimento médio de 8,8% ao ano no período — bastante superior ao da economia do Brasil em geral. Hoje, os valores gerados pelo audiovisual já representam quase 0,5% do PIB (Produto Interno Bruto) do país, que corresponde à soma das riquezas produzidas anualmente pelo Brasil. Esse meio ponto significa algo próximo a R$ 43 bilhões de receita por ano.

Enquanto o impasse entre o Tribunal de Contas da União (TCU) e a Agência Nacional do Cinema (Ancine) não chega a uma definição que permita ao setor audiovisual seguir seu crescimento, o país conquistou no final de maio (24 e 25), dois prêmios inéditos no Festival de Cannes, na França, um dos mais prestigiados do mundo - demonstrando a consolidação do cinema do país, ao menos lá fora.

O filme Bacurau, dirigido por Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, foi vencedor do Prêmio do Júri, que é tido como a terceira categoria mais importante do evento francês. ‘A vida invisível de Eurídice Gusmão’, de Karïm Aïnouz, por sua vez, recebeu o prêmio relativo à mostra Um Certo Olhar do festival. Em ambos os casos, trata-se da primeira conquista do Brasil na história do festival nessas categorias.

Kleber Mendonça falou ao jornal O Estado de S. Paulo sobre a importância da vitória, em meio aos ataques do governo Bolsonaro sobre a cultura brasileira – que dizem respeito ao conflito atual entre Ancine e TCU, corte de verbas da Petrobras e Caixa para o setor e ao próprio fim do Ministério da Cultura. “Estamos vivendo um momento desmonte no Brasil e esse filme acabou abrindo uma boa conversa internacional. Tenho muito interesse em saber como (os brasileiros) vão reagir a ele. O filme, aqui, ganhou a imagem de objeto de resistência.”

>>Essa matéria faz parte de um especial sobre o audiovisual brasileiro. A primeira, Impasse entre TCU e Ancine paralisa concessão de novos incentivos a setor audiovisual, pode ser lida aqui<<

A premiação aos filmes brasileiros em Cannes contrasta com a crise enfrentada pelo setor audiovisual do país neste início de 2019. O impasse entre TCU e Ancine relaciona-se — ao menos oficial e tecnicamente — a como deve se dar a prestação de contas das produções financiadas com recursos da agência, bem como  a fiscalização delas por parte da Ancine. Fontes entrevistadas pelo Brasil de Fato, contudo, questionam não só a eficácia das determinações do TCU, mas também as motivações reais de fundo.

A paralisia — ou a mera diminuição do ritmo — dos repasses feitos pela Ancine impacta o setor de forma substancial. Estima-se que em 2018 tenham sido movimentados mais de R$ 1,25 bilhão em recursos da agência no apoio a produções e iniciativas do setor. E, embora a crise tenha se instalado a partir de uma decisão do próprio TCU, o tribunal convocou a diretoria e servidores da Ancine a dar explicações sobre por que a paralisação dos repasses teria ocorrido.

Cíntia Domit Bittar, da diretoria da Associação de Produtores Independentes (API), destaca a importância crescente do setor para o Brasil (confira alguns dados na tabela abaixo), ressaltando ser uma área que produz não somente riquezas, empregos e renda, mas gera também cultura, cidadania, identidade e até soberania nacional.

“Em outros países, o cinema é realmente tratado como um assunto de soberania nacional”, aponta a diretora da API. “Através do cinema, um país é representado lá fora em eventos importantíssimos. O Brasil vem tendo uma participação histórica nos últimos anos, especialmente em 2019, em festivais internacionais como Cannes e Berlim. Isso é um reflexo desses anos de políticas públicas em prol do fomento e desenvolvimento do setor”.

“O setor audiovisual é não só multidisciplinar, como atinge vários outras áreas da economia: ele consegue movimentar aproximadamente 70 outros setores” explica a diretora da API. “Quando a gente faz um filme, ativa diversas prestações de serviços. Estamos falando de transporte, de hotelaria, de costura, de refeição… Uma série de itens”.

Ela reforça que o setor interage economicamente com vários setores. Em outras palavras, faz a economia girar. “Dinheiro que chega na nossa mão, não fica na nossa mão. É um dinheiro que circula. E que ainda volta uma parte para o governo em forma de imposto”. Ao ano, são cerca de R$ 3 bilhões em impostos diretos e indiretos que voltam para o caixa do Estado.

João Brant, doutor em ciência política pela Universidade de São Paulo e ex-secretário-executivo do Ministério da Cultura (MinC) entre 2015 e 2016, destaca três dimensões principais para afirmar a importância do setor: “Primeiro, uma dimensão simbólica, em seguida, uma dimensão cidadã – de direitos culturais, de acesso a uma produção audiovisual brasileira –, e, por fim uma dimensão econômica, com resultados muito positivos”. No campo da dimensão simbólica, ele destaca, por exemplo, a relevância de o país produzir filmes e séries nacionais, de a população brasileira poder fazer filmes e outras produções sobre si e de se assistir no cinema e na TV.

Luta, raça e fé

Viviane Ferreira, presidente da Associação dxs Profissionais do Audiovisual Negro (Apan) afirma que “tem sido uma briga insana, nos últimos anos, construir experiências pontuais de políticas de ações afirmativas no setor audiovisual”. “Só a partir dessas políticas é que empresas vocacionadas para o conteúdo identitários tem tido a possibilidade de acessar recursos do Fundo Setorial do Audiovisual”, pontua Ferreira.

De acordo com ela, no quadro político atual – agravado pelo impasse entre Ancine e TCU, a paralisia da Agência e o desmonte de um sistema em que já haviam identificado de que forma as ações afirmativas poderiam contribuir para seu aprimoramento, “podem expulsar por completo empresas vocacionadas para conteúdos identitários do mapa do mercado audiovisual nacional”.

Viviane acrescenta que, por se tratar de uma entidade mista, que representa profissionais negros pessoas físicas e também empresas vocacionadas para conteúdo identitário, os associados da Apan acabam sendo atingidos de duas formas diferentes pelo cenário de crise atual: “primeiro, as pessoas físicas, associadas à Apan, são impactadas pelo desemprego, visto que muitas produções estão sendo canceladas no país; segundo, as pessoas jurídicas estão sendo asfixiadas pela paralisação da Agência, visto que seus projetos estão parados em função do não repasse de recursos”.

O jovem diretor de cinema Wesley Gabriel, lamenta o impasse e os cortes, uma vez que “o setor do audiovisual estava crescendo nesses últimos anos”. “Foram [alguns] dos [anos] em que mais se produziu cinema no país, em que mais se assistiu a filmes brasileiros. E agora há o medo de que isso possa não acontecer mais com essa nova gestão”.

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O filme "Fusca azul", de Wesley Gabriel. (Divulgação)

Integrante do Kinoférico, coletivo com forte atuação na periferia de Guarulhos (SP), ele ressalta que a importância do setor para a periferia ainda vem muito por meio de projetos sociais, e que o próprio Kinoférico surgiu a partir de um projeto social de comunicação comunitária: o ComCom Pimentas.

“A proposta do Kinoférico é justamente a de aprender fora e trazer aqui para dentro. Porque a ideia é que a periferia mesmo faça os seus próprios filmes, conte as suas próprias histórias”, diz Gabriel. WG, como também é conhecido na sua área, lançou recentemente o filme Fusca Azul, seu segundo filme. O primeiro, No Rolê, recebeu dois prêmios e foi exibido em Portugal.

"A periferia se vê na tela e pensa que também pode. A gente vê a periferia fazendo um filme e ganhando prêmios em grandes festivais. E isso faz com que a gente acredite que também consiga produzir”, relata.  

Ele destaca, por fim, que a periferia sempre produziu “de uma forma que fosse ‘nóis’ por ‘nóis’, na raça mesmo, na guerrilha, na vontade de fazer. A gente nunca dependeu muito de Ancine ou de editais para produzir filmes”.

Fragilidades e fortalezas

Mesmo com a independência da produção periférica, é inegável a necessidade de fomento. Mais do que isso: de democratização das verbas. Sobre essa questão, a produtora cultural Eneide Gama lembra que “a periferia é sempre o elo mais fraco desta corrente” e que “somos muito sensíveis a qualquer sussurro de corte de verbas”. Ela frisa que “existe não só na periferia mas em toda sociedade uma gama imensa de trabalhadores na área” e que o atual impasse entre Ancine e TCU se reflete “em mais milhares de pessoas capacitadas que se vêem sem nenhuma oportunidade de trabalho.”

Em sua área de atuação mais constante, a zona sul de São Paulo (SP), a partir de 2016, as atividades culturais (as verbas, os projetos, tudo), foram sendo gradativamente encerradas até que muito pouco sobrevivesse. O registro é dramático: “todos os trabalhadores estão desempregados ou dando aula como oficineiro voluntário. Falta comida, pensão, a habitação está difícil. Famílias estão acabando. Os moradores da comunidade morando em situações ainda piores”.

O cineasta Fábio Rodrigo, diretor dos premiados Lúcida e Kairo, destaca a importância do audiovisual em outros aspectos para o país e para a periferia, e como isso muitas vezes pode incomodar os governantes de plantão. (Arquivo Fabio 5). “O cinema e o audiovisual revertem dinheiro pro país, então se um governo paralisa um setor que dá lucro pro país, certamente tem objetivos claros com isso”.

Cena de Kairo, de Fábio Rodrigo. (Divulgação)

Ele acrescenta que, para a periferia, o audiovisual exerce um papel de ajuda no pensamento crítico e de estimular a discussão de assuntos importantes.  “Bolsonaro e seu circo não querem isso”, afirma o diretor e criador do projeto “Ira Negra”. “Muita gente que está há muito tempo ganhando dinheiro público para produzir audiovisual também não quer, nunca quis algo nesse sentido e que poucos levam seus filmes a preços acessíveis e lugares acessíveis para essa camada da população. Então, eu não passo pano”.

Marina Pita, do Conselho Diretor do Intervozes (Coletivo Brasil de Comunicação Social), avalia que “um setor que já tomou muito banho de água fria, sabe que é preciso se preparar para o pior”. Ela ressalta que a situação atual prejudica diversos aspectos importantes do setor, com demissões e cancelamentos de projetos, impacto real na vida dos trabalhadores e trabalhadoras da cultura, além de outros muitos efeitos negativos para a economia.

“Sem incentivo público, toda uma política de descentralização da produção, de editais para garantia da diversidade de gênero e raça em cargos altos do setor audiovisual também vai por água abaixo. Isso significa que o reforço para que grupos a quem tradicionalmente se negou o acesso ao audiovisual estejam mais uma vez desamparados.” O resumo da ópera é que “perde a diversidade cultural e a pluralidade de vozes nas comunicações. É muito triste”, lamenta.

Edição: Pedro Ribeiro Nogueira