O projeto de cooperativas de trabalho, que funciona dentro da Penitenciária do Tremembé, na capital paulista, é uma porta de entrada para que os detentos desenvolvam habilidades profissionais, autonomia financeira e auto-estima. Porém, o projeto de quase dois anos enfrenta entraves burocráticos do governo do Estado de São Paulo e está impossibilitado de repassar a verba das vendas para os produtores dentro da prisão. Mesmo com o corte do repasse de verbas, as iniciativas seguiam funcionando até que nesta quinta-feira (30), o governo proibiu o funcionamento das cooperativas nos presídios do estado.
O Humanitas informou que as atividades de produção para comércio estão paralisadas, mas que o espaço vai continuar funcionando com treinamento e oficinas. Além disso, há o funcionamento da Casa Tereza, também na região do Tremembé, onde cooperadas ex-detentas seguem com a produção enquanto a situação não se resolve.
A cooperativa, que funcionava no Complexo Prisional Tremembé, é registrada na junta comercial sob o nome da marca Tereza. No projeto, as mulheres trabalhavam com produção têxtil e os homens estavam apenas iniciando produção de alimentos orgânicos. A iniciativa também contempla a montagem de um espaço produtivo fora da Penitenciária, para os detentos em regime semi-aberto e para os que já foram libertados. Segundo Ricardo Anderáos, vice-presidente do Instituto Humanitas, responsável por apoiar o projeto, não há razão para o impedimento do repasse, pois além do projeto ser legal, ele é "importantíssimo para a mudança da situação carcerária brasileira".
"O objetivo, na verdade, do trabalho é pra quem sai da prisão. Justamente impedir que eles reincidem no crime, que voltem para as facções, que voltem pro tráfico. Mas se o objetivo é fora, a porta de entrada é dentro".
A ideia de montar uma cooperativa de trabalho com detentos surgiu com a Dra. Carmen Botelho, diretora do presídio feminino de Belém (PA). Ricardo conta que cerca de 200 mulheres passaram pela cooperativa e nenhuma voltou ao crime após sair da prisão. Com o sucesso na reincidência zero, o Instituto Humanitas decidiu apoiar a implementação do projeto de cooperativas em São Paulo e chegou até o Presídio do Tremembé, após encontros com o Secretário da Administração Penitenciária em 2018.
Anderaós conta que reuniões foram realizadas com diretores de unidades prisionais da região, além da juíza da Vara de Execução Criminal local. Segundo o vice-diretor da ONG, todos concordaram com o projeto e um termo de cooperação técnica foi previsto juntamente com o início da montagem de oficinas, compra de equipamentos e capacitação dos detentos e detentas. Porém, conforme a parte prática das oficinas ia evoluindo, a parte jurídica foi deixada de lado.
"O que aconteceu foi que ao longo desse período todo, a Secretaria foi pedindo mais documentos para nós, alterações no termo. Fomos tendo mudanças no contexto do termo, porque originalmente a juíza da Vara assinaria, seria copartícipe do acordo e depois de um tempo ela preferiu não ser mais, aí o termo seria só entre nós e a Secretaria. Essa novela foi se desenrolando ao longo do ano passado", relembra.
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A produção da marca Tereza cresceu, mas o termo não foi firmado. Com a mudança de gestão, a Humanistas teve que dialogar com a nova Secretaria de Administração Penitenciária do governo de João Doria, sob comando do Coronel Nivaldo Restivo. Anderáos relata que "a surpresa veio quando o secretário informou não haver documento algum em andamento sobre a questão" e orientou que o problema fosse levado para a Funap (Fundação “Prof. Dr. Manoel Pedro Pimentel”), que é responsável pela exploração da mão de obra carcerária no Estado de São Paulo. De acordo com a Lei de Execuções Penais (LEP), os detentos podem ser contratados para trabalhar para o Estado ou por empresas privadas, mas sem CLT.
No entanto, Anderaós explica que as regras da Funap vão contra os pilares do projeto que visa o empreendedorismo e acompanhamento dos detentos na progressão da pena.
"Só que o nosso caso, nós não somos uma empresa contratando detentos para trabalhar pra nós e pagando salário a eles. Nós somos uma organização social criando uma empresa dos detentos. É uma cooperativa. A gente é um facilitador e por isso as conversas com o governo anterior nunca envolveram a Funap, porque são coisas de ordens distintas".
Com a situação sem andamento jurídico e administrativo, o diretor do presídio do Tremembé optou em novembro de 2018 por bloquear os repasses para as detentas até que a situação se resolvesse.
Questionada pelo Brasil de Fato sobre as afirmações do vice-diretor da Humanitas, a Secretaria de Administração Penitenciária de São Paulo se limitou a responder somente que “está em tratativas com o Instituto desde o início do ano para regularizar o recebimento dos recursos das reeducandas. Contudo, justamente pelo ineditismo da iniciativa, a Pasta está buscando alternativas para viabilizar a transferência dos valores”.
Para Ricardo, os entraves têm caráter "filosófico e não jurídico". "Firmamos um termo de parceria com o CNJ (Conselho Nacional de Justiça), presidido pelo Dias Toffoli, para levar essa experiência para outros estados brasileiros em parceria com o CNJ. Então como é que a Secretaria Paulista pode afirmar que é ilegal fazer uma coisa que o STF e o CNJ estão indo conosco fazer no Maranhão?", questiona.
Enquanto a situação não se resolve, o Instituto Humanitas tem feito o repasse de dinheiro aos familiares das detentas e detentos, que seguiam trabalhando até ontem.
Criar empecilhos para que detentos não consigam ser donos do próprio negócio e gerir a própria renda, segundo Ricardo, reflete o contexto do país de governos com visão conservadora, que não admitem a autonomia dos presos e preferem manter o modelo tradicional de trabalho com funcionário e patrão. "O projeto da cooperativa da marca Tereza questiona este modelo", finaliza.
Edição: Pedro Ribeiro Nogueira