Com economia estagnada, consumo em baixa, investimento privado fortemente contraído, 12,5% da população desempregada e subutilização recorde da força de trabalho, o Brasil beira a recessão, como reforça a sequência de rebaixamentos do Produto interno Bruto (PIB). Para muitos estudiosos e as principais entidades da área, o investimento em Ciência, Tecnologia e Inovação (CT&I) é a estrada para sair dessa condição de maneira consistente.
Em 2018, o então candidato Jair Bolsonaro (PSL) endossou esse entendimento, mas parece que o presidente Jair Bolsonaro não pensa assim.
Ao responder um questionário da Academia Brasileira de Ciências (ABC) e da Sociedade Brasileira pelo Progresso da Ciência (SBPC) na campanha, ele prometeu elevar a 3% os investimentos em pesquisa e desenvolvimento, que depois de período de crescimento vêm patinando em torno de 1,2%. As ações do novo governo, no entanto, vão na direção oposta. O corte orçamentário para a área, anunciado em 29 de março, foi de 42,3%, quase o dobro da média do contingenciamento orçamentário, que foi de 23%.
Um levantamento obtido pelo Brasil de Fato constatou que apenas 16,9% do orçamento de CT&I do ministério foram liquidados até 29 de abril (uma ação é considerada liquidada quando cumpriu todos os trâmites para ser paga). Esse acompanhamento diz respeito ao Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDCT), à administração direta da pasta, ao CNPq e à Comissão Nacional de Energia Nuclear (Cnen) – exclui, portanto, as rubricas relativas à área de comunicações.
“Nos últimos dois a três anos vem ocorrendo uma queda muito forte, de mais de 40%, nas duas principais fontes que financiam a ciência e tecnologia no Brasil: o FNDCT, que é administrado pela Finep (Financiadora de Estudos e Projetos), e o CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico), que financia basicamente a formação de pessoas – bolsa de doutorado, pós-doutorado etc.”, diz a pesquisadora Fernanda De Negri, do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Avançada)
Autora de livro sobre os desafios da inovação, ela pondera que, embora seja importante aumentar a injeção de recursos privados em pesquisa, nos países em que esse indicador alcança taxas mais elevadas isso se dá principalmente por conta do desenvolvimento de produtos. “A fonte pública é essencial na pesquisa científica de alto nível”, analisa.
No questionário respondido na campanha, Bolsonaro se comprometeu também a não contingenciar o FNDCT. Entretanto, na análise das contas, o fundo consta com apenas R$ 217,7 milhões liquidados, o correspondente a 5% dos R$ 4,2 bilhões previstos no Orçamento. A pujança do fundo já havia sofrido um abalo estrutural com a Lei 12.858/2013, que redirecionou os royalties do petróleo à educação e à saúde.
Desconstrução
Uma carta de seis das maiores entidades da área, encaminhadas a quatro ministros e aos presidentes da Câmara e do Senado, ressalta que a pesquisa pública proporciona um retorno de 3 a 8 vezes o valor do investimento. O documento aponta a “desconstrução” do desenvolvimento científico e tecnológico do país, e afirma que são as equipes de pesquisa que permitem “enfrentar epidemias emergentes, aumentar a expectativa de vida da população, buscar novas fontes de energia, garantir a segurança alimentar, estruturar empresas inovadoras com protagonismo internacional, reforçar a segurança nacional e aumentar o valor agregado das exportações”.
“Cortar gastos não é a única maneira de reduzir a relação entre dívida pública e PIB”, assinala o texto. “Outros países já descobriram que existe uma alternativa: investir em pesquisa e desenvolvimento para aumentar o PIB. É imperiosa a revisão desses cortes, que atingem o desenvolvimento, a segurança e a soberania nacionais”.
Entre as nações que optaram por essa outra trilha, costumam ser lembrados os exemplos de Estados Unidos, Reino Unido, Alemanha, Japão, China e Coreia do Sul.
“Nos anos 70, Brasil e Coreia tinham mais ou menos o mesmo nível de renda per capita, o mesmo nível de produtividade, e a Coreia decolou e o Brasil parou”, compara Fernanda De Negri. “Eles investiram num plano de longo prazo de educação que faz sentido – que não é ideológico, como alguns estão querendo agora, é um plano de educação de formar as pessoas – e um plano de ciência e tecnologia no longo prazo também.”
Há duas semanas, a Alemanha anunciou uma injeção extra de 2 bilhões de euros por ano no ensino superior e em pesquisa científica, de 2021 a 2030, para garantir a “prosperidade em longo prazo”.
“É um paradoxo”, diz o reitor da Universidade Federal do Pará (UFPA), Emmanuel Tourinho, sobre a austeridade aplicada à CT&I. “É como se estivéssemos condenando o país a ficar muito mais tempo nessa crise.”
De Negri, do Ipea, destaca que o problema vai além de deixar a descoberto iniciativas importantes para o futuro do país – passa pela necessidade de um cenário estável ao longo do tempo dessas atividades.
“O processo de formação de pesquisadores leva tempo. Reduzindo muito o orçamento de uma hora para a outra, você interrompe a formação das pessoas no meio. E as próprias linhas de pesquisa precisam ter certa previsibilidade”, diz.
“Nos Estados Unidos, alguém que faz pesquisa na área de câncer sabe que o Instituto Nacional do Câncer vai ter US$ 5 a 6 bilhões por ano para financiar. No Brasil, você não sabe se vai ter recurso na área de saúde – seja em câncer, em AIDS, em dengue. Pesquisas de fôlego exigem um prazo maior para realmente ter impacto social.”
Na Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), que acaba de lançar uma tecnologia de testagem rápida para dengue, zika e chikungunya, as investigações científicas sobre esses e outros problemas sanitários encontram-se em risco.
“A formação de grupos de pesquisa competentes custou décadas de esforço nacional”, alerta a carta das entidades científicas. “Se essas restrições orçamentárias não forem corrigidas a tempo, serão necessárias muitas outras décadas para reconstruir a capacidade científica e de inovação do país.” As signatárias encabeçam a Iniciativa para a Ciência e Tecnologia no Parlamento (ICTP.br), que reúne 60 organizações para um corpo a corpo visando sensibilizar parlamentares para essas questões.
Planejamento versus incerteza
A doutoranda Marina Fonseca, de 28 anos, confirma que desestabilizações como as deste trimestre estressam quem está na ponta das políticas públicas. Fonseca formou-se em Biologia na Universidade Federal do Ceará (UFC), em 2014. Seu período na Universidade de Liverpool, Inglaterra, pelo Ciência sem Fronteiras, levou-a a se mudar de Fortaleza para a capital paulista, para cursar mestrado no Laboratório de Genética Molecular Bacteriana da Universidade de São Paulo (USP).
A pesquisadora recorda que teve que trabalhar numa loja para se manter nos períodos em que ficou sem bolsa. Hoje ela recebe R$ 3.100 mensais da Fundação de Apoio à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), R$ 900 acima do pago pela Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior), cujo auxílio está há seis anos sem reajuste e vem passando por intermitências.
“Meu sonho de vida é um dia ser professora de uma universidade pública no Brasil, para retribuir tudo que o governo já fez por mim”, comenta. “Mas nesse cenário fica complicado, porque a bolsa da Capes é indispensável para prosseguir na formação. Para o meu plano de vida, não tenho como fugir: o pós-doutorado é o caminho, é a minha promoção.”
Ela diz que é usual professores universitários cursarem dois ou três pós-docs e que, diante das atuais incertezas, pensa em cumprir essa etapa fora do país, com remuneração pela instituição de destino.
A situação se repete no CNPq, a outra principal agência de fomento, que, além dos problemas no apoio direto aos pós-graduandos, cancelou sua Chamada Universal – o carro-chefe do fomento à pesquisa, tradicionalmente anual – em 2015 e pulou 2017. A de 2018 está com o pagamento pendente, e a de 2019, suspensa.
“Nossos pesquisadores não estão conseguindo captar recursos para projetos”, relata o reitor da UFPA, Emmanuel Tourinho, afirmando que o CNPq está sem condições de honrar até compromissos assumidos no passado. “Temos equipes competentes de pesquisa parcialmente ociosas em todos os campos do conhecimento.” Para a Associação Nacional de Pós-Graduandos (ANPG), o sistema encontra-se à beira do colapso. O assunto vem tendo repercussão negativa de alcance internacional.
O Brasil de Fato procurou o Ministério para se posicionar sobre a situação dos institutos, agências e grandes projetos ligados à pasta; sobre as reiteradas declarações do presidente Bolsonaro e do ministro da Educação. Abraham Weintraub contra as ciências humanas e a produção científica; e sobre a busca de alternativas que evitassem os cortes. As questões não foram respondidas.
Crises gêmeas
A crise da CT&I se entrelaça fortemente com a do ensino superior. Segundo o Jornal da USP, as universidades públicas representam 43 das 50 instituições que mais publicaram trabalhos científicos no Brasil nos últimos cinco anos – uma contribuição que supera 95% do total, afirma o presidente da Academia Brasileira de Ciências (ABC), Luiz Davidovich.
“A situação dos laboratórios de pesquisa, em especial daqueles que precisam de insumos, equipamentos mais sofisticados, animais etc., está cada vez mais grave”, relata a bioquímica Débora Foguel, do Laboratório de Agregação de Proteínas e Amiloidoses (Lapa) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Ela explica que muitos editais preveem recursos para dois a três anos, de modo que, quando um projeto sofre um corte, tais recursos representam “gordura acumulada” para queimar. Porém, depois de muitos anos sem aporte, não dá para evitar “cortar na carne”.
“Isso significa deixar de fazer experimentos, novos projetos ou, como no meu caso, mandar um aluno e o projeto para o laboratório de um colaborador (foi para a Alemanha)”, descreve a pesquisadora. Sua unidade procura entender processos que são componentes de doenças como Parkinson, Alzheimer, catarata e diabetes tipo 2.
“Os estudantes estão desanimados e trazem no rosto estampada a mácula da dúvida e do desalento com a carreira acadêmica e seu baixo prestígio no país”, lamenta. Ela acrescenta que a seca de concursos se soma à falta de mercado para doutores nas empresas, enquanto em outros países elas absorvem 80% a 90% dessa mão de obra qualificada.
Segundo conta, muitos jovens recém-contratados retornam para o laboratório de seus ex-orientadores fora do Brasil. “Perder um doutor para o exterior tem um impacto incalculável num país que precisa de doutores. Além de tudo que já se investiu na formação daquela pessoa, ela deixará de formar mais dez a 20 doutores em sua vida de trabalho acadêmico útil.”
A situação não é diferente nos cinco institutos ligados a ministérios (Embrapa, Fiocruz, CBPF, Inpa e Inpe) que integram a lista dos 50 líderes em produção científica. Além das restrições orçamentárias - que cancelam colaborações internacionais, adiam reformas inadiáveis e trancam os espaços voltados ao público -, o quadro de pessoal é um problema à parte.
Diagnóstico divulgado pelo Fórum Nacional das Entidades Representativas das Carreiras de Ciência e Tecnologia (Fórum de C&T) previa redução do quadro à metade até 2020 por aposentadorias, deserções e falta de concursos. O levantamento contabilizou 24.625 servidores na ativa em maio de 2017, dos quais mais de metade já perto de pendurar os microscópios. A entidade conclui que “as instituições de CTI nacionais estão em pleno processo de extinção por causa da ausência de uma política de manutenção da força de trabalho”.
Premissas
O presidente da República e os ministros da Educação e da Casa Civil, Onyx Lorenzoni, têm atribuído baixa eficácia à pesquisa e ao ensino superior brasileiros, defendendo a priorização de áreas de retorno supostamente imediato para a economia e a sociedade. Os entrevistados desta matéria indicam que essas simplificações levam a premissas erradas.
Emannuel Tourinho põe em xeque a subvalorização dos campos de conhecimento humanos e sociais. “Qualquer dos problemas centrais para as sociedades contemporâneas exige esforço multidisciplinar para ser enfrentado. Os processos que levam ao aquecimento global, as populações nas áreas de conservação ambiental, o debate de mobilidade urbana”, lista.
Marina Fonseca argumenta que a fronteira entre ciência básica e aplicada não é definida, e que as duas dimensões compõem uma via de mão dupla.
“Eu estava estudando os elementos genéticos da bactéria Proteus mirabilis, para entender as mutações dessa espécie, e descobri que muitas tinham resistência a um antibiótico muito usado contra infecção urinária”, exemplifica.
Fernanda De Negri questiona a cobrança de “retorno imediato”: “Pesquisa científica e tecnológica dá retorno sim, na sociedade, a longo prazo – dá muito retorno, os países ricos são ricos por causa disso. É uma visão míope investir achando que você vai ter retorno no dia de amanhã”.
Edição: João Paulo Soares