São Miguel do Gostoso, no Rio Grande do Norte, é uma praia paradisíaca famosa por sua longa faixa de areia e ventos fortes, que a torna ideal para a prática de kitesurf e windsurf. Por esse motivo, ela é conhecida internacionalmente. Bem pertinho do mar, um outro cenário se apresenta. A cerca de dois quilômetros do centro da cidade, encontramos um terreno onde, em meio a muitas dificuldades, brota o verde da agroecologia.
Em julho de 2010, mais de cem famílias organizadas pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) ocuparam hectares de terra improdutiva no município e montaram o acampamento Maria Aparecida, em homenagem a uma lutadora do movimento. Depois de muitos despejos e ameaças, a terra é hoje habitada por 32 famílias que produzem hortaliças e criam animais.
Seu Bastos, 69, um dos que participaram da ocupação inicial e que, até hoje, resiste nesse espaço, nos conta um pouco dessa história: “a vida aqui é boa, mas já esteve muito difícil. Eles já destruíram tudo umas três ou quatro vezes, passaram por cima de batata, de macaxeira, de tudo que nós tínhamos. Uma das vezes nós passamos um mês dormindo debaixo das moitas, levando chuva e picada de muriçoca, feito bichos brutos”.
As ameaças e possibilidade de despejo ainda rondam as famílias, pois a terra está sob disputa. Segundo Márcio de Melo, coordenador de Produção do MST, “o Incra diz que não há possibilidade de desapropriação, porque a propriedade é considerada de porte médio”. Uma propriedade para ser desapropriada pelo órgão, na região de São Miguel do Gostoso, precisa ter acima de 900 hectares. “Essa propriedade tinha isso, mas, diante da demora do próprio Incra e de outros órgãos governamentais para resolver a questão, parte do terreno foi ocupado com turbinas de energia eólica e agora a área que ocupamos é de cerca de 400 hectares”, explica Márcio.
Em resposta, o MST decidiu desenvolver em Maria Aparecida uma lógica de assentamento. “Resolvemos fazer aqui uma reforma agrária diferente, uma reforma agrária já produtiva: hoje todas essas famílias já estão na terra, a divisão das casas é em modelo de assentamento, como uma agrovila, com área comunitária, os quintais produtivos e a área de produção coletiva”, afirma Márcio.
Em meio às casas de taipa e de cimento batido, sem água encanada e energia elétrica - infraestrutura só possível de ser instalada com a titulação da terra - se produz mandioca, macaxeira, feijão, milho, inhame e se criam galinhas e porcos.
Para celebrar a resistência desse lugar, na última sexta-feira (31), foi celebrada uma missa que inaugurou a capela Nossa Senhora Aparecida e a bodega agroecológica, espaço de venda dos produtos da reforma agrária popular.
A missa foi ministrada pelo Arcebispo de Natal, Dom Jaime Vieira Rocha, que em sua homília relembrou as palavras do Papa Francisco: “nenhuma família sem casa, nenhum camponês sem terra, nenhum trabalhador sem direitos”. Para o arcebispo, “vivemos em um tempo que toda a sociedade deveria dar as mãos. Nós não podemos continuar em um Brasil com tanta virulência, revolta e intolerância. Precisamos de entendimento: direitos para todos, vida para todos, dignidade para todos! Os direitos fundamentais, saúde, trabalho, educação, terra, tudo, o Brasil tem condições de garantir”.
Colaboraram com a celebração, os diáconos Franscisco Adilson da Silva e Márcio Francisco de Andrade, do Serviço de Assistência Rural. Diácono Adilson denunciou que “o país está na mão dos pistoleiros que matam, derrubam vidas de quem luta por direitos e terra”.
Em frente à capela, 400 pessoas participavam ao ar livre da missa. Estavam presentes as famílias da ocupação, moradores de assentamentos e comunidades da região, moradores da cidade de São Miguel do Gostoso, secretários do estado, representante do gabinete civil da governadora Fátima Bezerra, parlamentares de mandatos populares, lideranças do MST, representantes de movimentos sindicais como a Central Única de Trabalhadores (CUT), representante da Frente Brasil Popular (FBP) e membros de movimentos sociais parceiros como o Movimento de Mulheres Camponesas (MMC), a Marcha Mundial das Mulheres (MMM), pastorais, o Levante Popular da Juventude e Amélias – Mulheres do Projeto Popular.
Após a missa, houve um ato político, com a presença do Coordenador Nacional do MST João Pedro Stédile. Em seu discurso, Stédile, em ação simbólica, transformou o acampamento Maria Aparecida em assentamento. “De hoje em diante não podemos mais chamar isso aqui de acampamento, essa terra é, a partir de hoje, o assentamento Maria Aparecida e nós todos viemos aqui não só para celebrar a missa e inaugurar a bodega e a capela, nós viemos aqui selar um compromisso com vocês, de garantir que essa terra seja de vocês”, declarou a liderança do movimento.
Ele deixou palavras de animação para os, agora, assentados: “nenhuma família que resistiu em assentamento de forma unida com seus vizinhos e seus companheiros perdeu a terra, e essa é uma lição histórica. Mantenham-se unidos, mantenham-se organizados que a terra já é de vocês”.
Divaneide Basílio, primeira vereadora negra do município de Natal, se deslocou até São Miguel do Gostoso para prestigiar o evento. Em sua fala, lembrou a memória de Maria Aparecida, que dá nome ao lugar. “Maria Aparecida era uma mulher negra que lutava muito, que plantou essa semente que agora colhemos coletivamente”, afirmou.
Animado com a produção do assentamento, o deputado Estadual Francisco do PT afirma a importância de apoiar a luta por uma melhor distribuição das terras do nosso país, pois são “os agricultores e as agricultoras familiares que produzem a comida que chegam cotidianamente nas nossas mesas, e na maioria das vezes produzem com a prática de uma agricultura saudável e menos agressiva ao meio ambiente”.
A deputada estadual Isolda Dantas também destacou que “em nível nacional 70% do que a gente come vem da agricultura familiar. Aqui no Rio Grande do Norte quem mais emprega é a agricultura familiar. A maioria do território do Rio Grande do Norte é ocupado por agricultores familiares”. Isolda declarou que comer é cada vez mais um ato político e que só a agricultura familiar permite a soberania alimentar.
Questionada sobre a importância daquela celebração, a deputada federal Natália Bonavides afirmou que o ato foi muito importante para reforçar os laços comunitários e de solidariedade entre os acampados, em um ambiente de muita resistência e luta. Segundo ela “as palavras de Dom Jaime reforçaram no nosso povo a esperança de dias melhores e demarcam o fato de a igreja estar ao lado dos oprimidos. A presença de diversas lideranças políticas evidenciou o peso do Movimento Sem Terra no Rio Grande do Norte”.
A arquiteta Ana Paola Alves, 46, veio de longe e acompanhou a atividade. A mineira está passando uma temporada, junto com amigos, em São Miguel do Gostoso e estava a passeio quando viu o (então) acampamento se organizando para o evento: “a gente ficou muito afim de saber o que estava acontecendo, descemos, conversamos com as pessoas, vimos a produção de alimentos”. Ela e os amigos, então, resolveram participar: “tá sendo maravilhoso, foi o ponto alto da nossa viagem. Fiquei emocionada porque aqui existe uma solidariedade que a gente não costuma ver nas relações”.
Seu Bastos, que está no Maria Aparecida desde o primeiro dia, ficou entusiasmado com os discursos de compromisso que ouviu na noite. “Hoje é o dia mais feliz da minha vida”, afirmou. As falas o encheram de esperança de dias melhores: “tô me achando muito feliz, hoje eu me acho aqui acampado, sou pai de onze filhos e minha felicidade maior é essa, tenho sete filhos acampados aqui e dois netos, e amanhã ou depois eu vou poder dizer que eles têm onde morar e trabalhar”.
O dia terminou em festejo com o som dos músicos Fernando Régis (viola e voz) e Felipe Nunes (violão e voz), que colocou todo mundo para dançar. Além do Brasil de Fato RN, a Televisión del Sur (teleSUR) registrou o momento. Assista à matéria completa aqui.
Edição: Marcos Barbosa