Da beleza à poética que ecoam na inconfundível voz da cantora mineira Titane, pelos timbres e arranjos, sorriso e presença de palco de uma intérprete por excelência, não fica dúvidas sobre o poder da arte de nos cativar e despertar os mais diversos sentimentos, individuais e coletivos.
Com o linguajar do sertão brasileiro da música do baiano Elomar Figueira Mello --- onde a cultura oral e popular se impõe para contar as histórias de “homens e mulheres inquietos e fortes, que se aventuram mundo desconhecido afora” ---, Titane abre e encerra o espetáculo de lírica mineira chamando a atenção para a “mineração criminosa” que ceifa todas as formas de vida, e “que a gente conhece desde que o Brasil é Brasil”.
O show “Titane Canta Elomar: Na Estrada das Areias de Ouro” sela cerrado e caatinga pelo primor estético e celebra o primeiro álbum (2018) da música brasileira dedicado inteiramente à obra de Elomar, protagonizado por uma voz feminina.
“Sempre que eu subo no palco para cantar --- ou foi assim até muito recentemente --- eu não tava pensando se era homem, mulher, bicho ou planta, eu era tudo ao mesmo tempo”, conta Titane em entrevista ao Brasil de Fato, durante um ensaio com os instrumentistas para a curta temporada no Teatro da Universidade de São Paulo (USP), que aconteceu de 30 de maio a 02 de junho.
“A sociedade vai andando, vai caminhando, e a bandeira feminina foi nos ocupando a todas. E não é só uma luta, não é só vontade de justiça e de igualdade, é prazer, é alegria. A gente tem alegria em estar juntas. Pensar como seria o mundo onde o jeito feminino de ser pudesse se impor, ia ajudar a humanidade a se salvar. Então, hoje, eu realmente subo no palco para cantar como mulher”, elucida a artista.
O encontro da cantora da cidade de Oliveira (MG) e do compositor de Vitória da Conquista (BA) aproxima universos diferentes, mas complementares: ancestral e contemporâneo, sertão e cerrado.
Junto à canção de ninar “Acalanto”, segunda faixa do álbum dedicado a Elomar, Titane emenda trechos da obra “Dom Quixote”, de Miguel de Cervantes, que manifestam a força feminina através da paixão de Crisóstomo à personagem Marcela, “uma mulher muito bonita e desejada pelos homens que decide se retirar para as montanhas e se tornar pastora”.
Para Titane, o texto de 1605, além de contemporâneo é feminista, já que Marcela defende seu direito de viver livre e a escolha de não se submeter. Foi o que Elomar fez com Dassanta da ópera “Auto da Catingueira” (1983), obra-prima do cantor e compositor baiano que conta a história da pastora de cabras Dassanta, mulher que de tão bela “matava mais qui cobra de lajêdo”. Na ótica da artista mineira, Dom Quixote de La Mancha e Elomar “são almas gêmeas”.
Titane se sente mais como fã de Elomar do que como intérprete. Diferentemente de outros trabalhos, Titane diz que não se apresenta para a plateia, mas se reúne com o público para celebrar a obra do cancioneiro popular, que conta e canta músicas muito conhecidas em Minas Gerais.
Em mais de 30 anos de carreira, com um vasto repertório de artistas homenageados, recentemente, a cantora decidiu se dedicar a um autor só, após uma provocação de Kristoff Silva, que divide com Hudson Lacerda a direção musical do disco. Os dois integraram a equipe de músicos que transcreveu para a partitura o cancioneiro elomariano.
O espetáculo, inédito na capital paulistana, se baseia em referências dos negros trazidos para trabalhar no garimpo do ouro e do diamante no Sudeste brasileiro com a herança ibérica espalhada pelos europeus no Nordeste. Titane aposta no formato acústico, que apresenta tanto a sofisticação das formações camerísticas quanto a simplicidade de um recital de música popular.
Trajetória
A cantora faz parte da geração que renovou a música brasileira a partir da década de 1980, unindo canções de domínio público, anônimos, compositores clássicos ou emergentes, em uma mescla com as interfaces do corpo, as artes cênicas, o contato com o coletivo e o ativismo por um mundo mais humano. Sempre entre opostos culturais, Titane vive no interior mineiro, mas trabalha país e mundo afora.
No processo criativo, entre momentos de angústia, comunhão e celebração, Titane projeta a cultura do congado mineiro, manifestação cultural e religiosa afro-brasileira.
A linguagem musical de Titane se reflete na arte como política e resistência, que, inevitavelmente, reverbera no coro da plateia. “A gente tem que trabalhar para se informar e informar as pessoas, porque o que a mineração traz é nada perto de tudo o que ela tira. Ela é criminosa e não pensa duas vezes para matar pessoas”, diz a cantora em alusão às tragédias socioambientais nos solos mineiros de Mariana e Brumadinho, com o rompimento das barragens de rejeitos da mineradora Vale.
Além do mergulho no universo mítico de Elomar, Titane tem feito shows-manifestos em áreas de mineração, ao lado de artistas como Túlio Mourão, para alertar sobre os impactos ambientais e humanos da atividade exploratória em Minas Gerais. “Nós temos que confiar em nós e acreditar que a mineração não é um monstro imbatível”, afirma.
A cantora mineira ainda integra a Escola Itinerante de Artes do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), onde colabora com aulas de corpo e voz.
“Quando eu estou dentro dos cursos do MST, quando eu estou dentro de um acampamento, eu acho que a revolução já é aquilo, já está em curso. Viver essa experiência da luta já é uma revolução em si. Quando canto Elomar eu sei que estou operando dentro desse sistema, apostando em uma outra via. Inclusive, em uma via menos urbana, porque o mundo urbano também não é o futuro. Eu acredito que o futuro passa por pequenas cidades, passa por quem sabe plantar e por quem sabe colher. Plantar mesmo, terra, por quem sabe lidar com nascentes de água.”, conta.
Confira trechos da entrevista:
Brasil de Fato: Titane, por que você escolheu Elomar para homenagear? Você comentou que ele é uma figura muito particular para a música brasileira. O que essa escolha representa? Qual o peso de uma voz feminina interpretar a obra de Elomar?
Titane: Eu conheci e comecei a ouvir Elomar ainda na década de 1980. Eu já estava cantando e ouvia muito Elomar no Vale do Jequitinhonha (MG). E eu ouvia muito nas vozes do Saulo Laranjeira, Dércio Marques, Xangai e Doroty Marques --- que sempre foi uma referência muito forte para mim, eu era e sou encantada com a figura da Doroty Marques. E ela foi a primeira mulher que eu ouvi gravar Elomar. Mas, enfim, ela era uma exceção, porque o Elomar sempre foi cantado por vozes masculinas.
Elomar é importante não só pelas suas melodias, não só como cancionista, pelos seus textos, mas ele dá uma contribuição muito grande para o violão brasileiro. É um violão muito particular. A música brasileira é feita pelos grandes violonistas. Eu acho que fui aos pouquinhos decidindo por esse caminho, não foi uma decisão brusca. Eu experimentei muito com o Hudson, fui tomando gosto e algumas coisas, de cara, se revelaram importantes para mim.
Primeiro, o estranhamento que causou a mim mesma cantar as canções dele que eu sempre ouvia em vozes masculinas. Para o intérprete, é muito bom quando isso acontece. Eu falei: “ah, então é porque minha versão surgiu”. Era um desafio técnico, são canções com uma extensão muito grande, basicamente, muito texto.
Sempre que eu subo no palco para cantar --- ou foi assim até muito recentemente --- eu não tava pensando se era homem, mulher, bicho ou planta, eu era tudo ao mesmo tempo. Acontece que a sociedade vai andando, vai caminhando, e a bandeira feminina foi nos ocupando a todas. E não é só uma luta, não é só vontade de justiça e de igualdade, é prazer, é alegria. A gente tem alegria em estar juntas e conversar sobre nós mesmas. A gente tem prazer, dá sentido para nossa vida falar sobre nós mesmas. Pensar como seria o mundo onde o jeito feminino de ser pudesse se impor, ia ajudar a humanidade a se salvar. Então, hoje, eu realmente subo no palco para cantar como mulher.
Eu não consigo nesse momento fazer nada que não contenha essa discussão feminina, do feminismo. Como eu disse, primeiro porque me dá alegria. Segundo, porque eu acredito realmente que se existe algo de novo na história da humanidade que pode vir a nos salvar o protagonismo feminino é um deles. Acho que o protagonismo do trabalhador também. Se a gente for pensar que lá atrás, mulher, trabalhador, escravo, ninguém participava da democracia, isso são coisas relevantes, historicamente.
E o Elomar tem um público masculino muito grande, porque eu acho que os homens se identificam com aquela verve dos personagens elomarianos, porque eles são aventureiros, apaixonados, se jogam no mundo atrás de alguma coisa. E eu fui perceber que, na obra dele, as mulheres também são. São mulheres nordestinas que criam seus filhos, são princesas que andam, largam o reino do seu pai a ponto do rei morrer. Tem uma história que chama “Acalanto” que a princesa vai embora e o rei morre de tristeza e de loucura, porque a princesa foi embora. Mas, ela foi embora atrás de alguma coisa, atrás de um outro reino.
Então, as mulheres também têm esse desejo de viver, de buscar alguma coisa. A gente não sabe exatamente o que esses personagens do Elomar procuram, mas eu acho que, quando eu canto, eu sinto que a canção está buscando um sentido para a vida, está buscando o senso de beleza, de justiça.
Quando canto Elomar eu sei que estou operando dentro desse sistema, apostando em uma outra via. Inclusive, em uma via menos urbana, porque o mundo urbano também não é o futuro. Eu acredito que o futuro passa por pequenas cidades, passa por quem sabe plantar e por quem sabe colher. Plantar mesmo, terra, por quem sabe lidar com nascentes de água.
Qual a importância de dialogar sobre questões como a mineração através das manifestações artísticas, como os shows com o Túlio Mourão?
A gente tem que trabalhar para se informar e informar as pessoas. Para elas enxergarem, com coragem, sem medo do desemprego e principalmente sem medo de perder os impostos pagos pela mineração, que o que ela traz é nada perto de tudo o que ela tira. Ela é criminosa e não pensa duas vezes para matar pessoas.
Em Congonhas (MG) fica muito nítido que a gente tem dois caminhos a seguir. Um é o da arte, da criação, da memória, do estudo. Do turismo, talvez, como atividade econômica limpa. E, do outro, a mineração criminosa que a gente conhece desde que o Brasil é Brasil. Que a gente tem as mesmas tecnologias rudimentares, irresponsáveis, que não se preocupam com a vida. E todos nós sabemos que agora vão avançar essas atividades mineradoras porque o golpe foi dado para isso.
É evidente. Parece que eles decidiram que Minas Gerais realmente vai fornecer minério, a custo de vidas humanas. Eles pensaram isso, só que nós não concordamos. Então nós estamos discutindo mesmo junto ao movimento social e ambientalista. E isso tem vários efeitos.
Por exemplo, cidades pequenas, quando você está com uma mineradora lá dentro, pressionando, as pressões são de todo tipo. E tem momento que elas começam a pressionar famílias, uma por uma, pressionar os trabalhadores.Tem momentos que discutir a questão dentro da cidade fica insuportável, porque a tensão é tão grande que vira uma espécie de tabu.
Olha só, teve lugares que depois que o show passou a discussão abriu igual mágica. São canções que colocam o dedo na ferida, que falam de perda, de angústia, de tragédia, mas não só. Porque a gente tem canções que também falam o contrário. As canções que vêm depois têm alegria, perseverança. Mas a gente não tem medo de pôr o dedo na ferida.
São canções que apontam uma luz no fim do túnel. E que luz é essa? É a ação de nós todos. Nós temos que confiar em nós, nós temos que acreditar, por exemplo, que a mineração não é um monstro imbatível. Que existem experiências muito importantes que são vitoriosas. Esse show conta a história dessas batalhas ganhas contra a mineração, porque as tragédias a gente já sabe e sofre tanto com elas.
Ele sensibiliza as pessoas, ajuda a abrir a cabeça, a mente, os sensores, para entender não só o lado da tragédia, mas o lado da possibilidade de construção e de reverter essa situação. As canções e os depoimentos fazem isso, a gente leva muita informação objetiva.
E tem que ser um esforço da sociedade toda, porque é preciso virar o jogo da economia. Porque onde a mineração entra, ela expulsa todo tipo de atividade econômica e passa a dominar o lugar. E é isso que não pode acontecer. Ela tem que deixar de existir em várias áreas. E nas áreas que ela permanecer deve seguir novas regras.
Você comentou que faz parte da Escola Itinerante de Artes do MST. Como funciona esse projeto?
O MST hoje tem um trabalho muito sério e discussões muito aprofundadas sobre a dimensão cultural da vida e da sociedade. Inevitavelmente, ele discute e pensa a arte que é feita dentro dos territórios do MST. Então, em Minas Gerais, já foi criada a Escola Itinerante de Artes do MST. E eu tenho a alegria de trabalhar com a escola, de ser colaboradora. É uma discussão infindável sobre a criação artística, que já acumula muitas ações e se discute que arte a gente quer fazer. Porque você pensa em arte, mas você pensa também em agitação e propaganda e em uma série de outras coisas que dialogam com a criação artística.
O MST é uma cultura nova em gestação também, eu acredito, sinto e vejo isso. A gente aposta muito, eu particularmente trabalho, desde a primeira vez, com a música e com a voz. A ideia é de um grande coro, que possa cantar e tocar ao mesmo tempo e se deslocar pelo espaço cênico, que pode ser um palco, uma rua, uma marcha ou um espaço cênico, cantando coisas que gostaria de cantar. E o trabalho vocal está muito ligado ao trabalho do indivíduo também, da expressão individual de cada uma das pessoas. E parece que não, mas é possível o fazendeiro do MST desenvolver um trabalho técnico de verdade. Agora está sendo criada a bateria de guerrilha. Então, tem um monte de coisa, na música, no teatro, na poesia. Enfim, o MST pára para pensar sobre arte. Não é maravilhoso?
E me impressiona muito a disciplina dentro do MST. E de formação pensada também, não só a curtíssimo prazo. É uma formação pensada a médio e longo prazo. Existe muita disciplina e eu acho que ela é muito sustentada por uma confiança que existe entre as pessoas, dentro do movimento. É realmente uma vida em comunidade, uma vida coletiva, e as pessoas trabalham juntas, confiam umas nas outras e têm um desprendimento para entender o outro e para aprender. Então, quando eu estou dentro dos cursos do MST, quando eu estou dentro de um acampamento, eu acho que a revolução já é aquilo, já está em curso.
Viver essa experiência da luta já é uma revolução em si. Acho que é isso que a gente tem que entender. Porque a luta eu não sei se um dia vai acabar. O ser humano é muito complexo, eu não sei se algum dia a gente vai chegar realmente em uma sociedade que nós desejamos. Nós trabalhamos para isso, agora o que eu sinto é que a luta em si já justifica muita coisa, ela já significa muito, já é uma grande conquista. Nós vivemos uma cultura de luta.
Edição: Pedro Ribeiro Nogueira