ARTIGO

Demolições e remoções no Porto do Capim. O que está em jogo no Parque Sanhauá?

Disputa por terras no centro da cidade revela interesses que marcam conflitos entre poder público e comunidade

Brasil de Fato | João pessoa - PB |
Moradoras do Porto do Capim convivem diariamente com a pressão de serem removidas para longe do seu território
Moradoras do Porto do Capim convivem diariamente com a pressão de serem removidas para longe do seu território - (Foto: Roan Nascimento)

Quem acompanha o imbróglio em curso no Centro Histórico de João Pessoa sabe que os últimos dias foram bem intensos. Em especial para a vizinhança da Vila Nassau, localizada na comunidade do Porto do Capim, nesta segunda-feira, dia 03/06, sendo acordada com as paredes de suas casas demolidas. Logo depois, lideranças comunitárias e algumas moradoras daquela região foram impedidas de entrar no centro administrativo da Prefeitura. Seus portões foram fechados e, com a presença da Guarda Civil, ninguém entrava até que a coletiva de imprensa convocada pelo prefeito Luciano Cartaxo (PV) tivesse acabado. (Foto: Roan Nascimento)
Breve histórico recente 
Desde antes do dia 19/03, ocasião em que a Secretaria de Meio Ambiente da (SEMAM) emitiu notificações dando um prazo de 48h para que famílias da Vila Nassau desocupassem suas casas - além do terror psicológico que se instalaria naquela população,  em função da iminência de serem desalojadas, as obras do "Parque Ecológico Sanhauá" já tinham sido iniciadas nas proximidades da estação ferroviária da capital. A partir de então, servidores da Secretaria Municipal de Habitação Social (SEMHAB) iniciaram um processo de convencimento encaminhado aos moradores mais fragilizados com a situação, oferecendo auxílio-aluguel no valor de R$ 300,00 até que o conjunto habitacional na comunidade Saturnino de Brito estivesse pronto. (Foto: Roan Nascimento)
Segundo relatos de lideranças comunitárias, alguns dos moradores que aceitaram o acordo com a Prefeitura sequer possuem relação social com o território ou se mudaram há poucas semanas para a região, ou nunca tiveram contato com o processo que se arrola desde 2015. Tampouco, sequer representam a maioria ou a totalidade daquela comunidade, pois menos de 20% das famílias que receberam as notificações para desocupação acataram a proposta da PMJP. Sueli Potira Tabajara (Foto: Roan Nascimento)
É importante destacar que esses acordos se fizeram no auge de uma pressão psicológica e capturaram os mais fragilizados emocionalmente ou aqueles menos informados sobre a conjuntura que os cercava. Nessas condições, é natural que sujeitos afetados em cenários de despejo se sintam quase obrigados a aceitar o mínimo que lhes é ofertado. Neste processo, acabam assinando documentos sem qualquer assessoria jurídica ou acompanhamento por parte de alguma Defensoria Pública. Como nunca tiveram acesso pleno aos seus direitos, também não questionam se o que lhes é ofertado tem alguma garantia. Logo, o método persuasivo se apresenta como algo irresistível. Consequentemente, esses indivíduos são cooptados pelo poder público. 
Ainda mais alarmante é o fato de que esses mesmo sujeitos passam a ser “convidados” a participar de campanhas de marketing contra à sua própria condição. Vendem sua imagem para vídeos publicitários a favor da gestão municipal, que deturpa a narrativa do cotidiano e das formas de vida da comunidade, em prol de um discurso leviano de que naquela região não há condições de habitabilidade. Se há ou não condições de se viver de maneira digna deve-se à própria postura do Estado, ao se isentar do papel que lhe compete de prover as qualidades necessárias para tal, sem, contudo, desrespeitar as variáveis culturais atribuídas ao local que fazem com que a luta popular pela permanência se trave junto ao poder público. (Foto: Roan Nascimento)
Com esses acordos firmados, a Prefeitura teria o que precisava para dar início às primeiras demolições na região do Porto do Capim, levadas a cabo no dia 28/05, pouco mais de um mês desde que as famílias da Vila Nassau foram notificadas pela SEMAM. 
Entidades e membros da sociedade civil organizada, que acompanham há anos a situação no Porto do Capim, provocaram e cobraram providências em relação às demolições junto ao Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico do Estado da Paraíba (IPHAEP), à Superintendência de Administração do Meio Ambiente (SUDEMA) e ao Ministério Público Federal (MPF). O ofício conjunto, protocolado no dia 30/05, indicava que as obras em curso do "Parque Ecológico Sanhauá" não possuíam a licença ambiental exigida e nem o parecer favorável do órgão estadual de patrimônio. Acatado o pleito popular, no dia seguinte o IPHAEP providenciou o embargo das obras obrigando a suspensão das demolições das primeiras casas. (Foto: Roan Nascimento)
É importante frisar que todo e qualquer projeto de intervenção que se queira fazer, estando o imóvel ou a área inseridos na delimitação do chamado Centro Histórico de João Pessoa, isto é, sob jurisdição legal do IPHAEP e ou do IPHAN, precisa de aprovação dos órgãos de proteção para ser executado. Sem isso, a intervenção é considerada irregular e está passível de multa,  além da obrigação das reversões dos danos causados. Esse foi o motivo do embargo pelo IPHAEP, pois, até então, nenhum parecer havia sido emitido de forma que autorizasse o início das obras do "Parque Ecológico Sanhauá", incluindo, aí, as demolições na região da Vila Nassau, no Porto do Capim. 
Apesar de tudo, o alívio durou pouco. O medo se restabeleceu na comunidade quando as demolições foram retomadas após retirada do embargo - este a pedido do governador João Azevedo (PSB), no último sábado, dia 01/06. 
O que de fato está em disputa? 
É necessário observar outros vieses dessa trama para se entender o que, de fato, pode estar em jogo. Algumas questões precisam ser levadas em consideração para além do que a mídia corporativa e a própria PMJP se limitam em divulgar. Afinal, quais são as outras variáveis que se podem somar à essa disputa de narrativa? 
Um dos pontos mais importantes de todo esse processo é o fato de que a prefeitura vem desconsiderando o histórico de anos de diálogo com a comunidade do Porto do Capim. A situação está sendo pautada desde 2015. Contudo, nada do que foi construído coletivamente com as lideranças daquela região foi acatado ou levado em consideração. Ou seja, todo o trabalho e o esforço dedicados para que as famílias pudessem ter um destino verdadeiramente apropriado e conduzido de maneira participativa com os moradores foi descartado da noite para o dia. A transferência das famílias afetadas para o conjunto habitacional Saturnino de Brito, ainda em obras, fere os acordos genuínos previamente firmados entre as lideranças comunitárias do Porto do Capim e os membros de associações de moradores daquela região. Além da desvinculação de seu território cultural, reassentar essa população naquele condomínio, a quilômetros de distância, poderia gerar outros tipos de conflitos de ordens econômica e social. 
Ainda merece atenção o fato de que o MPF, por meio de sua Procuradoria Regional dos Direitos do Cidadão (PRDC/MPF), considera o Porto do Capim uma Comunidade Tradicional Ribeirinha. O Parecer Técnico Antropológico é de final de 2015. De acordo com a legislação federal, por esse motivo a comunidade tem proteção garantida por meio da Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais (Decreto Federal Nº. 6.040/2007) e da Convenção Nº. 169, que trata da Organização Internacional do Trabalho (OIT) sobre Povos Indígenas e Tribais (Decreto Federal Nº. 5.051/2014). Fatos totalmente ignorados pela gestão municipal. 
Sempre que possível, há de se trazer à tona que a proposta apresentada pela PMJP para o "Parque Ecológico Sanhauá" é fundamentalmente anacrônica. Com caráter estritamente higienista, possui um claro propósito de limpeza social. Segue, portanto, na contramão dos princípios contemporâneos de planejamento urbano, e acentua as injustiças sociais por meio de um método conhecido pelos urbanistas como gentrificação. Em outras palavras, o projeto em questão reforça o caráter elitista de uma ideia de desenvolvimento de cidade, pelo menos, trinta anos ultrapassada, e baseada essencialmente, no turismo predatório como objetivo econômico. 
Mesmo que o projeto esteja sob análise do corpo técnico do IPHAEP, há fortes indícios de que haja a possibilidade de ser aprovado. Tal afirmação se dá, pese em que o aparato  normativo estadual de proteção patrimonial existente, bem como todo seu leque de instrumentos legais, não identifica impedimento para que a proposta apresentada pela PMJP para o "Parque Ecológico Sanhauá" seja indeferida. Não obstante, dada a complexidade da obra e em razão da lacuna de dispositivos que legislam sobre a imaterialidade dos elementos afetados, tende-se a crer que a análise deva seguir para apreciação do Conselho de Proteção dos Bens Históricos Culturais (CONPEC), vinculado ao IPHAEP. Nesse espaço, entre outras variáveis, dever-se-á levar em consideração a condição de Comunidade Tradicional Ribeirinha. 
O Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB), entidade de classe de arquitetos e urbanistas com quase cem anos de atuação no país, entende que, para situações como essas, o mais apropriado seria um concurso público nacional de projeto. Dada a magnitude e relevância do seu impacto para a comunidade local, a intervenção fruto do certame traria mais qualidade ao produto final. Isso porque se criariam oportunidades para a elaboração de inúmeras propostas, com pluralidades, visões e uma gama imensa de soluções projetuais mais corretas e socioambientalmente justas. As condicionantes de projeto não seriam difíceis de serem construídas. Há um extenso arcabouço teórico produzido pela Universidade e pelos órgãos de patrimônio, contribuindo, assim, para um detalhado termo de referência que pode muito bem ser pactuado entre a Prefeitura e a comunidade. 
Por fim, é importante que a Prefeitura se posicione de maneira transparente. É fundamental explicar o que aconteceu com relação aos acordos firmados entre comunidade e poder público, que teve participação da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), recebeu acompanhamento de várias entidades da sociedade civil organizada e contou com a mediação da PRDC/MPF. A ausência de  posicionamento público gera desconfiança por parte dos setores e agentes envolvidos e  desqualifica qualquer discurso que porventura a gestão municipal venha a se utilizar como sendo o oficial. 
Dadas todas as circunstâncias apresentadas, em certo modo, a postura da Prefeitura Municipal de João Pessoa pode até ser legal do ponto de vista da interpretação jurídica. Contudo, antes de mais nada, é arbitrariamente antidemocrática e preconiza interesses da classe dominante, que exerce seu poder através da legislação urbana e é quem dá as caras por trás do que está em jogo na comunidade do Porto do Capim. 
*Pedro Rossi é arquiteto e urbanista, presidente do Instituto de Arquitetos do Brasil na Paraíba, coordenador do curso de arquitetura e urbanismo do IESP e articulador do Núcleo PB do projeto BR Cidades.


 

Edição: Cida Alves