Entre o disco Telemática e o novo trabalho do cantor pernambucano China, há um espaçamento de tempo de quatro anos -- que corresponde ao turbulento período político e social pelo qual o Brasil passa. Em "Manual de Sobrevivência para Dias Mortos", o cantor e compositor visceral, irreverente e crítico traz à luz uma fina análise desse período e seus personagens do cotidiano.
Segundo ele, nunca foi tão necessário se discutir política e os rumos da nação. Na poesia de China, a indignação e preocupação se transformam em verso, ritmo e melodias. Um aceno de esperança aos dias tristes atuais e aos que estão por vir.
Ex-apresentador da MTV e líder do grupo Sheik Tosado, uma das bandas de rock que fez história no início do movimento Manguebeat, na primeira metade dos anos 1990, China mostra um amadurecimento e um senso crítico apurado ao retratar sua visão de mundo.
Confira a entrevista exclusiva para o Brasil de Fato.
Brasil de Fato: O que mais te surpreendeu nas mudanças políticas do Brasil nesses últimos quatro anos?
China: Acho que voltar a ouvir palavras como golpe, ditadura, extrema direita, intervenção militar, isso me surpreendeu bastante, pois achei que essas palavras tinham ficado nos livros de história como exemplos de coisas que não seriam repetidas jamais. No quadro político a gente já sabia que existia muita maracutaia, agora ela está escancarada e mais descarada do que nunca.
Mas o que mais me impressionou foi a nossa própria ignorância política. Ver o povo saindo nas ruas para pedir fim do STF, do congresso, ou seja, pedindo o fim da nossa democracia, pedindo a volta dos militares sem parar e pensar que, quando os militares estiveram no poder, foi o momento mais truculento da nossa história e que afundou o país economicamente falando.
Obviamente e ainda bem, temos muita gente inteligente, e cada vez mais se fala de política no Brasil, o que é bastante importante, mas essa ignorância política ainda predomina. É só olhar para quem está no poder agora, né?
Precisamos falar mais de política, debater com as pessoas, mostrar várias fontes de informação e não nos calar. Assim vamos criando uma educação política consciente nas pessoas.
Como é que pintou a ideia de escrever mais sobre questões amplas da vida social e política do Brasil?
O disco parte de um único tema, a sobrevivência. Se viver hoje no país já é um luxo, imagina sobreviver? São tempos bem difíceis mesmo e precisamos falar sobre essas questões. Vejo o compositor como um cronista da realidade, e essa realidade que está no disco são de coisas que vejo e escuto todos os dias. Esse discurso não é só meu, é de muita gente que está insatisfeita com a situação do Brasil e, sim, precisamos falar sobre isso. A arte também cumpre o papel de mostrar as belezas e mazelas do tempo.
O seu novo álbum está mais politizado, mais crítico. No geral, você consegue fazer uma separação entre a política no Nordeste e no Sudeste? As eleições, principalmente dos governadores, aponta uma diferença entre as duas regiões?
Acho que apontar valores entre Nordeste e Sudeste é cair nesse separatismo equivocado que estamos agora. Somos um mesmo país e temos os mesmos anseios como povo.
O Sudeste sempre teve uma inclinação política mais a direita, enquanto o Nordeste mais a esquerda, e isso é muito saudável para a democracia. Não dá pra apontar o dedo entre certo e errado, são preferências políticas, equivocadas ou não, mas saudáveis em uma democracia, e nossa democracia é muito nova, ainda teremos muita coisa pela frente até acharmos uma unidade interessante para todo o país. O mais importante é que os cidadãos saiam das suas bolhas sociais, se eduquem e enxerguem além, e percebam que, se nos unirmos como povo, e cobrarmos da forma correta os nossos governantes as coisas realmente vão começar a mudar.
O que mais caracteriza os "dias mortos”?
Dias sem esperança, dias sem educação, sem cultura. Dias em que precisamos buscar muita força para lutar contra as barbaridades que estamos vendo hoje, que não são poucas, né?
Durante o segundo turno, muitos cientistas políticos alertavam sobre o uso da palavra "fascismo" para definir uma certa linha política. Você compôs uma música chamada "fascismo tupinambá" que está no álbum. Você acha que os primeiros meses do novo governo confirmam o uso do termo?
O título dessa canção saiu do livro Memórias do Carcere, de Graciliano Ramos. O cara já falava disso lá atrás quando se referia ao movimento integralista, partido de extrema direita dos anos 30.
Vivemos hoje sob essa nuvem fascista no Brasil e no mundo. Até agora esse governo usa as mesmas táticas de governos fascistas como os de Hitler, Mussolini e vários outros líderes da extrema direita, como não vamos comparar esse tipo de posição?
O presidente trata com desdém a morte de Marielle [Franco], mas homenageia torturador, homenageia o MC que espancou a mulher com quem tinha uma relação extraconjugal porque ela estava grávida de um filho seu. É um governo que tem medo de cultura, de informação, da educação e da arte, que quer fazer com que o país rescreva sua história por não concordar com vários pontos que o incomodam, e que historicamente sabemos que aconteceu e precisam ser debatidos e relembrados sempre.
Esse governo usa a mesma tática de governos fascistas. É história, tá nos livros, e por isso eles detestam os livros, professores, gente que pensa. Não tem como não associar as ações desse governo as práticas fascistas.
Em "Consumo", parece haver uma crítica social ao isolamento das pessoas e ao avanço do capitalismo. O que você poderia falar sobre isso?
Consumo fala do quanto somos pequenos para as grandes corporações. Somos apenas moeda sem valor, sem nome, apenas números de uma planilha. Essa falsa sensação de que precisamos consumir tudo o que nos é oferecido engana muita gente todos os dias e faz com que as pessoas fiquem endividadas para ter o próximo lançamento de algum produto. É uma armadilha de mercado. Uma pena que caímos facilmente nessa e nos afundamos em dívidas. No final, viramos juros sobre juros para a alegria das corporações.
Edição: Aline Carrijo